História da Igreja: Os Movimentos em prol da pobreza

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O brilho exterior da Igreja, sempre crescente até a Alta Idade Média, suscitou escrúpulos e receios em cristãos sinceramente religiosos, que viam nesse esplendor o perigo de mundanização e desviamentos.

Não somente o prestígio do Papa era grande no campo político, mas ainda a riqueza e o luxo, espalhados na Europa pelo comércio marítimo das cidades italianas, invadiam os bispados e as próprias Abadias. – Tais escrúpulos nos séculos XII/XIII, que tendiam a libertar a Igreja do seu enorme envolvimento em assuntos temporais, não eram senão a continuação da reforma que procurara emancipar a Igreja do poder do Estado na luta das Investiduras (ver capítulo 19).

Esses escrúpulos concretizam-se em duas correntes diametralmente opostas:

1. uma que se tornou nociva, porque se revoltou não só contra a opulência da Igreja, mas contra a própria Igreja; não sabia distinguir o acidental (luxo vicioso, mas passageiro) do essencial (o Corpo Místico de Cristo). Dessa corrente fazem parte, entre outros, os cátaros e os valdenses;

2. a outra corrente propugnadora da pobreza é a dos reformadores mendicantes, ortodoxos, que souberam manter-se fiéis à Igreja, embora não hesitassem em combater o seu luxo. Entre estes, devemos citar S. Francisco de Assis e S. Domingos de Gusmão, além de Roberto de Arbrissel (? 1117), fundador da Ordem de Frontevault, e S. Norberto de Xanten (? 1134), fundador da Ordem Premonstratense.

Estudaremos, a seguir, as expressões mais características de cada qual destes dois movimentos em prol da pobreza da Igreja.

Movimentos desviados

1. Os Cátaros ou Albigenses ou Bugros eram dualistas, continuadores do pensamento maniqueu. Admitiam um Princípio mau, criador da matéria, que se manifestou no Antigo Testamento; e um Princípio bom, que criou os espíritos e se manifestou no Novo Testamento. Diziam que o Princípio mau conseguiu seduzir parte dos espíritos celestes, que foram encarcerados em corpos humanos e aqui precisam de Redenção. O Redentor foi Cristo, Espírito superior aos anjos e subordinado a Deus, que morreu apenas em aparência. – Consequentemente os cátaros rejeitavam tudo que é material: o aparato visível da Igreja, o sacerdócio e a hierarquia, os sacramentos, os altares, as imagens, as relíquias; além disto, (…) o juramento, a guerra e a própria autoridade civil. Era-lhes lícito praticar a endura, isto é, deixar-se morrer de fome ou fazer-se matar pelos próprios parentes. Como se vê, os cátaros destruíam não somente a Igreja, mas também a sociedade civil, rejeitando o matrimônio, os sacramentos e a autoridade. Voltaremos ao assunto quando tratarmos da Inquisição; ver capítulos 32 e 33.

2. Os Valdenses durante muitos séculos afirmaram ter origem apostólica (em Tiago Maior ou em Paulo) ou disseram ter surgido no tempo de Constantino em réplica é famosa Donatio Constantini (ver capítulo 5). Na verdade, o seu fundador e o rico comerciante Pedro (?) Valdes, Valdo ou Vaux, de Lião (França) Este, impressionado pela leitura da Bíblia, distribuiu o que tinha no ano de 1176 e começou a peregrinar, pregando penitência; a ele se juntaram homens e mulheres, que ele mandava a pregar em grupos de dois; eram chamados “os Pobres de Lião” ou “Sabbati” (por usarem calçados de lenho ou sabots). Visto que pregavam sem licença do bispo de Lião, criticando os costumes do clero, este prelado proibiu-lhes a pregação Recorreram, porém, ao Concílio do Latrão III (1179), que lhes permitiu pregar, caso tivessem mandato episcopal. Os valdenses, porém, não se sujeitaram a esta cláusula, de modo que foram excomungados. Passaram então a viver as ocultas, granjeando adeptos secretos. Proferiam votos de pobreza, obediência e castidade e submeteram-se aos bispos, presbíteros e diáconos ordenados por Valdes. – Servia-lhes de norma suprema a S. Escritura, que eles traduziam para o vernáculo e recomendavam ao povo. Foram-se distanciando cada vez mais da tradição católica; talvez por influência dos cátaros na Itália, os Waldenses negaram o culto dos Santos, os sufrágios pelos defuntos, o juramento, o serviu o militar, a pena de morte; tornaram-se muito atuantes, expandindo-se para a Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Hungria… No século XVI, os Valdenses da Lombardia anexaram-se ao Calvinismo e subsistem até hoje em pequeno número.

Leia também: Os Movimentos pela pobreza na Idade Média

O que eram Ordens Mendicantes que apareceram na Idade Média?

3. O Joaquimismo deve-se a Joaquim de Fiore (? 1202). Em fins do século XI, era abade cisterciense, muito acatado por sua ascese. autor de uma teoria sobre a história do mundo e da Igreja; haveria três fases da história:

1) a era pré-cristã seria a do Pai, idade da letra, da carne, dos casados e dos leigos;

2) a era cristã seria a do Filho, intermediária entre a carne e o espírito, entre servidão e liberdade; seria a época dos clérigos, que duraria 42 gerações de 30 anos cada qual (cf. Mt 1,17);

3) terminado este período em 1260, viria a era do Espírito Santo e dos monges (carismáticos); seria a época da liberdade e a plenitude dos tempos, sem clérigos nem sacramentos.

Estas ideias opunham-se ao conflito de “Igreja-Cidade de Deus”, tão difundido e acariciado na Idade Média. Encontraram, porém, apoio, dada a exaltação da época, na corrente dos Franciscanos ditos “Espirituais”; estes proclamaram São Francisco como o novo legislador e profeta enviado por Deus, e os Franciscanos Espirituais como a Ordem dos tempos finais. Embora as obras de Joaquim tenham sido condenadas num Sínodo de Arles após 1263, o movimento joaquimista não se extinguiu; a ideia de renovar a Igreja, subtraindo-lhe o poder temporal, dominou até o fim da Idade Média, se bem que não raro fomentada por motivos políticos. Assim, por exemplo, as teorias joaquimistas foram professadas por flagelados (grupos que peregrinavam e se flagelavam em público) em 1260/1; a eleição de um “Papa angélico”, como seria o eremita Pedro de Morone (= Celestino V), foi, em parte, inspirada pelo joaquimismo; não poucos dos adversários dos Papas do século XIV (Bonifácio VIII, João XXII…) estavam impregnados de joaquimismo; ver capítulo 24.

O próprio Joaquim de Fiore morreu muito acatado por seus contemporâneos, que o tinham na conta de Profeta; antes de falecer, sujeitou-se ao juízo da Santa Igreja.

4. Podem-se citar ainda:

– a Ordem dos Apóstolos ou dos Irmãos Apostólicos, fundada por Gerardo Segarelli, rejeitado pela Ordem Franciscana. Com alguns companheiros, pregava a pobreza agressivamente; anunciavam o fim da Igreja para breve. Tiveram que se refugiar no monte Zebello (perto de Vercelli, Itália), donde saiam a saquear as fazendas vizinhas para se sustentar; viviam em comunhão de bens e de mulheres;

– os Irmãos e Irmãs do Espírito Livre afirmavam que quem está unido a Deus, não peca, quaisquer que sejam as suas ações; isto lhes permitia entregar-se as paixões. Oração e sacramentos seriam inúteis ou mesmo prejudiciais para os irmãos perfeitos.

Vejamos agora a corrente ortodoxa favorável é pobreza.

Movimentos ortodoxos Mencionaremos a Patária e as Ordens Mendicantes

A Patária

A Patária (do milanês patta = trapo; donde pattari = trapeiros), teve origem na segunda metade do século XI na Lombardia, especialmente em Milão; congregava o povo simples contra a rica nobreza e o alto clero a ela aparentado. Apregoavam pobreza, tendo em vista especialmente a simonia e o matrimônio dos clérigos, males freqüentes na Lombardia. Entre os chefes do movimento pátaro, destaca-se Anselmo, bispo de Lucca, que foi feito Papa Alexandre II (1061-73), precedendo S. Gregório VII na luta contra as investiduras (ver capítulo 19).

As Ordens Mendicantes

As nobres aspirações à pobreza dentro da Igreja não haviam de perecer por completo no fanatismo e na agressividade. Para salvá-las, Deus quis suscitar no início do século XIII os fundadores das Ordens ditas “Mendicantes” (porque viviam, em grande parte, de esmolas), também eles pregadores ambulantes, mas integrados dentro da S. Igreja. Estes deram origem a famílias que, entre outras, apresentavam as seguintes notas:

1) o culto da pobreza não só individual, mas também comunitária; os irmãos viviam de trabalho manual ou de esmolas, eram provavelmente todos leigos, de início;

2) para tornar mais eficaz a sua pregação, renunciaram a habitar em montes ou: vales retraídos, como os antigos monges, a fim de estabelecer-se em centros populosos; renunciavam também à estabilidade no mesmo lugar, que os antigos monges praticavam;

3) constituíram as chamadas “Ordens Terceiras” (a Primeira era a dos frades; a Segunda, a das freiras), que se abriam as pessoas casadas, proporcionando-lhes algo da vida regular; no mundo obrigavam-se a observar normas de oração e práticas de penitência e caridade. Ainda existem essas Ordens, que podem contar entre os seus membros São Luís, rei da França, S. Elisabete da Turíngia, S. Catarina de Sena… Entre os Terciários inscreveram-se no fim do século XIII pessoas solteiras, que renunciavam a propriedade e viviam em comum; do que resultaram novas Ordens, ditas “dos Terciários Regulares”.

Os Franciscanos

São Francisco, “um dos Santos que abalaram o mundo”, nasceu em Assis (1181). Até os 23 anos de idade levou vida leviana, à procura da glória do mundo; queria ser cavaleiro, como era frequente na Idade Média. Todavia um período de cativeiro e uma doença grave contribuíram para que se convertesse totalmente para Deus. Passou a ser o cavaleiro da pobreza, que amava as aventuras heroicas. A partir de 1204, pôs-se a levar vida de penitência e oração, tratando de pobres e doentes e reerguendo capelas caídas na região de Assis. Juntaram-se-lhe doze companheiros, com os quais foi a Roma pedir ao Papa Inocêncio III licença de pregar – o que lhe foi concedido, contanto que se limitasse a pregação de penitência. Em 1214 quis ir para o Marrocos evangelizar os muçulmanos, mas só chegou até a Espanha. Em 1219/20, foi ao Egito com a intenção de converter o Sultão. Durante esta sua ausência, os irmãos já começavam a disputar entre si sobre a possibilidade de realizar o ideal de Francisco. Este teve que conceder mitigações do seu projeto de vida, o que lhe foi muito custoso. Por isto abandonou o governo da Ordem em 1221. Em 1223 o Papa Honório III aprovou a terceira e última redação da Regra de S. Francisco. Em sua simplicidade, Francisco rejeitava os estudos; queria que os irmãos rezassem mais do que estudassem. Todavia estes pediam licença para utilizar livros e estudar, já que deviam preparar-se para a pregação; tal desejo era vivo especialmente entre aqueles que, vindo das Universidades, se agregavam a Francisco. Finalmente aos 14/09/1224 Francisco, já enfermo, recebeu os estigmas do Senhor Jesus, vindo a falecer aos 03/10/1226.

A Ordem difundiu-se com rapidez extraordinária. No Capítulo geral de 1282 em Estrasburgo, já contava 1083 fundações em 34 Províncias. A sua principal tarefa tornou-se a pastoral e as missões. Embora o fundador tivesse rejeitado os estudos, os seus discípulos adquiriram grandes méritos nas Universidades. O conflito, porém, entre o ideal da pobreza e a realidade, que se iniciou quando vivia S. Francisco, desdobrou-se em longos litígios sobre a pobreza (ver capítulo 26).

A Ordem dos Pregadores Dominicanos

São Domingos nasceu em Caleruega (Espanha) no ano de 1170. Fez-se cônego regular agostiniano, bem formado em Teologia. Por este último atributo, muito diferia de Francisco; Domingos conhecia os erros doutrinários (especialmente os dos cátaros) de seu tempo e quis opor-lhes uma barreira, utilizando seu senso organizador e prático. Francisco, ao contrário, possuía uma alma de poeta, que queria dirigir-se aos corações, ao passo que Domingos visava as inteligências.

Em 1215 Domingos fundou em Tolosa (França), onde mais forte era a heresia dos cátaros, a primeira célula de sua futura Ordem: constava de um grupo de pregadores que, após boa preparação teológica e asiática, se dedicariam a pregação. Domingos foi a Roma pedir a aprovação do seu Instituto; recebeu-a de Inocêncio III em 1215, sob a condição de que adotasse uma das Regras já existentes, pois já eram muitas as Regras Religiosas existentes na época o fundador escolheu a de S. Agostinho.

A Ordem Dominicana ou dos Frades Pregadores foi declarada “Mendicante” em 1220 pelo seu primeiro Capítulo Geral; todavia a pratica da pobreza era a mais branda do que entre os franciscanos o que preservou a Ordem dos litígios que agitaram os discípulos de S. Francisco. – S. Domingos morreu em 1221, deixando uma instituição que logo se propagou até a Escócia e a Síria; o Papa Gregório IX confiou-lhe a Inquisição contra as heresias.

Os Carmelitas

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Devem a sua origem a um cruzado, Bertoldo da Calábria (? 195), que em 1156 se retirou com dez companheiros para a gruta do profeta Elias no monte Carmelo (Palestina), a fim de levar vida eremítica; o Patriarca Alberto de Jerusalém deu-lhes uma regra de vida estritamente contemplativa, que Honório III Papa confirmou em 1226. Em 1238 os carmelitas, repelidos pelo Islã, estabeleceram-se, em grande parte, no Ocidente, onde trocaram a vida eremítica pela cenobítica, segundo o modelo dos Mendicantes.

Os Eremitas de S. Agostinho

Sob a Regra de S. Agostinho, originaram-se na Itália dos séculos XII e XIII diversas Congregações de Eremitas. O Papa Alexandre IV em 1256 resolveu fundir todas essas famílias religiosas na Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, que se difundiu por diversos países e, nos séculos XIV-XVI, se distinguiram pelo estudo das obras de S. Agostinho.

Paralelamente ao ramo masculino, desenvolvia-se em cada Ordem antiga e medieval um ramo feminino, que se submetia a mesma Regra; era a Ordem Segunda dos Franciscanos (Clarissas), dos Dominicanos, dos Carmelitas, dos Agostinianos (…).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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