História da Igreja: As Cruzadas – Parte 2

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Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte mil jovens, dirigidos por certo Alexandre, tão imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram-se sem êxito algum.

Depois desta visão panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.

Cruzadas: idealismo ou decadência?

Os motivos de duvidar

Quem leva em conta a história das Cruzadas, à primeira vista é levado a dizer que constituíram um fracasso ou até mesmo um contra-testemunho dos cristãos. Têm-se catalogado vários capítulos de censura aos cruzados: ambição, traição, vileza de costumes…

É interessante notar que não somente historiadores modernos denunciam falhas tais, mas também pregadores e cronistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séculos XII e XIII, perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele exército de seus servidores ou por que consentira na perda da Cidade Santa Jerusalém. – Em resposta, julgavam que o pecado devia ser a causa de tais insucessos; em consequência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados. Entre outras instâncias, o Concílio de Lião I em 1245 também fez advertências a procedimentos indignos dos cruzados; cf. Mansi, Conciliorum amplissima collectio XXIII, p. 628.

A vista destes dados, dir-se-á que as Cruzadas representam um ponto negro da história medieval. Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo injusto.

Leia também: História da Igreja: As Cruzadas – Parte 1

O que foram as Cruzadas?

Quadro geral: apreciação

Não se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas representam.

Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espírito cavaleiresco, corajoso e magnânimo.

A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram às armas para se exprimir concretamente (…). Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a condená-la. Atualmente os homens têm meios de confrontar suas divergências mediante reuniões, assembleias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teoria…) as soluções violentas (na prática, porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos motivos). Contudo na Idade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituíam barreiras quase intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação física e a superação de suas divergências; julgavam em muitos casos ter que recorrer às armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas mereceria censura.

Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por dois séculos, a custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenazmente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam conseguido realizar plenamente. Assim deixaram eles à posteridade o testemunho de sua fé.

Não se poderiam silenciar outrossim os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasionou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande surto das artes e das ciências ditas “exatas” nos séculos XV/XVI.

Fatores negativos

O entusiasmo que desencadeou as Cruzadas era mais idealistas do que realista; os seus arautos não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta do programa devia acarretar. É o que explica que os cruzados, após haver obtido os seus primeiros resultados,tenham experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:

1. A amplidão da tarefa empreendida pelos cruzados exigiu, com o passar do tempo, o recurso a subsídios novos e necessariamente heterogêneos, a saber:

– Os cavaleiros e outros cristãos que entusiasticamente se ofereciam para assumir a cruz, já não bastavam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercenários, que pugnariam não tanto por ideal cristão, mas, sim, por interesses pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram antigos criminosos detentos, a quem se dava a liberdade à condição de que fossem lutar no Oriente. Ora compreende-se que tais soldados, vendo-se livres, facilmente voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa. Assim foi sendo cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que galhardamente partia para a Terra Santa às próprias custas, porque amava o Senhor Jesus.

– As despesas com os soldados mercenários e seus equipamentos eram ingentes, exigindo dos responsáveis que procurassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes. Ora onde entra dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas paixões, quá levam a abusos e desatinos.

Infelizmente não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma expedição de cruzados. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em média percebia, quanto os reis davam do seu erário e quanto o Papa empenhava nas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, notícias a respeito. Todavia os diversos dados supõem épocas diversas, as quantias são expressas em moedas heterogêneas, as notícias são parceladas, de sorte que é difícil ter ideias claras do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luís IX têm certa contabilidade escrita em livros; sabe-se, pois, que o total das despesas de campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570 libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas: outra documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu 1.053.476 libras de Tours!

– De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais indicado a preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta Cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para Constantinopla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que procuraram servir aos seus interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico II e Luis IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham que utilizar os navios das cidades comerciantes de Itália ou de França (Veneza, Gênova, Pisa, Marselha…), que, em troca, exigiam para si direitos e privilégios nos portos da Palestina.

– O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis, príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cavaleiros, organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis a grandes senhores nem sempre se atendiam entre si; objetivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças previamente contraídas (levem -se em conta a primeira e a terceira Cruzadas). – Notório é o caso de Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.

Assista também: Por que precisamos entender o que foram as cruzadas?

Quem eram os Cavaleiros Templários?

2. Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião I censuravam (…).

O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas a nota característica ou uma das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas “compensações” depois de haver sofrido os rigores de fome, da sede, do frio e de severa disciplina durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chegavam finalmente à costa da Palestina doentes, vítimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem estar e gozo. – Nem por isto tais “compensações” são legítimas.

Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em síntese, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram indicados nestas páginas.

Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas, ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias a possibilidades da época) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé – valor que eles não discutiam – o estímulo e o dinamismo para realizar façanhas heroicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas…!

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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