Revista :
“PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão
Bettencourt, osb
Nº 445 –
Ano: 1999
Em síntese:
A fé é a adesão do homem a Deus que lhe fala, revelando o mistério de sua
vida intima e o seu plano de salvação. Visto que se trata de verdades
transcendentes, a fé é adesão no claro-escuro ou na penumbra. Por isto é um ato
da inteligência que não tem a evidência do que professa, mas é movida pela
vontade para dizer i seu Sim. A vontade, porém, só pode impelir ao sim se está
isenta de paixões e afetos desregrados, pois a fé exige conversão. Vê-se,
pois, que o ato de fé mexe com toda a personalidade do ser humano. Daí
encontrar obstáculos diversos de ordem intelectual e de ordem moral. As crises
de fé tem motivos complexos, muitas vezes ligados a problemas de ordem ética.
* * *
Pode-se
dizer que o ato de fé e o ato mais nobre que alguém possa realizar, pois
procede da inteligência aplicada ao mais nobre objeto, que é o Ser
infinitamente perfeito ou Deus. As crises de fé por que passam muitas pessoas
em nossos dias, tem motivos complexos e variados. No intuito de colaborar na
solução dessas crises, vamos, a seguir, propor o que é propriamente a fé, e
quais os obstáculos que a podem por em xeque.
1. Que é a
Fé?
O Concílio
do Vaticano 1(1870), tendo em vista concepções errôneas do século XIX, definiu
a fé nos seguintes termos, que bem resumem o ensino tradicional da Igreja:
“A fé… e
uma virtude sobrenatural pela qual, prevenidos e auxiliados pela graça de
Deus, cremos como verdadeiro o conteúdo da Revelação, não em virtude da verdade
intrínseca (evidência) das proposições reveladas, vistas a luz natural da
razão, mas por causa da autoridade de Deus, que não se pode enganar nem pode
enganar a nós” (Denzinger-Schoenrnetzer, Enquirídio de Definições… 3008
[1789]).
O Concílio
do Vaticano II, em 1965, retornou o conceito de fé, encarando outros aspectos:
“Ao Deus
que revela, deve-se a obediência da fé, pela qual o homem livremente se entrega
todo a Deus, prestando ao Deus revelador um obséquio pleno do intelecto e da
vontade e dando voluntário assentimento à revelação feita por Ele”
(Constituição Dei Verbum nº 5).
Estas duas
definições convergem entre Si, propondo as seguintes conclusões:
1) A fé não é um sentimento cego, nem
meramente emotivo. Afaste-se a afirmação: “Todos temos que crer em alguma
coisa, qualquer que seja”. Essa “alguma coisa” não pode ser
algo de vago, indefinido, sentimental, mas é algo que o intelecto reconhece
“inteligentemente”.
2) A fé não é mero ato de confiança, mero
ato do coração e dos afetos, que se entregam a Deus como Salvador. Isto quer
dizer: a fé tem caráter também intelectual ou inteligente (não meramente
cerebrino ou frio, sem dúvida). É o ato mais nobre do homem, pois aplica a
faculdade mais digna do ser humano (a inteligência) ao Objeto mais elevado e
perfeito, que é Deus. Afaste-se, pois, todo anti-intelectualismo ao se tratar
da fé.
3) A fé é um ato da inteligência…, mas
não só da inteligência. E uma atitude da inteligência movida pela vontade. Com
efeito; o objeto proposto pela fé não é evidente por Si mesmo (não é claro à
razão, por exemplo, que Jesus é Deus e Homem). A inteligência humana tem o
direito (as vezes… tem mesmo o dever) de estudar cada uma das proposições da
fé: Jesus é Deus e Homem, Deus é Uno e Trino, Jesus está presente na
Eucaristia… Após estudar a documentação respectiva (ou o porquê crer), a
inteligência conclui: não são proposições evidentes como “dois e dois são
quatro, o todo é maior do que qualquer de suas partes”, mas também não são
absurdas e contraditórias como “o círculo é quadrado, o triângulo é
redondo…”. Se fossem evidentes por si mesmas, a inteligência estaria
coagida a dizer-lhes sim, como é coagida a dizer sim a “dois mais dois são
quatro”. Por conseguinte, feito o exame das proposições da fé, a
inteligência diz ao estudioso: “Se queres, podes crer” e passa para a
vontade a decisão final – o assentimento ou a recusa.
4) Vê-se, pois, que a fé não é movida
pela evidência intrínseca das proposições reveladas por Deus, mas ela tem
motivos de credibilidade. Ela pede credenciais; baseia-se na evidência
extrínseca, ou seja, na autoridade e credibilidade de quem ou do que transmite
a mensagem. Antes de crer, a inteligência vê que deve crer; existem preâmbulos
necessários à fé. Diz S. Tomás de Aquino: “0 homem não acreditaria se não
visse que deve crer” (Suma Teológica II/II qu.1, art. 4, da 2).
5) Por
conseguinte, a fé é um ato livre; é um obséquio voluntário prestado pelo fiel a
autoridade de Deus que se revela. É portanto um ato mais nobre do que os atos
cujo objeto é tão evidente que eles se tornam obrigatórios. O ato de fé supõe
reflexão e decisão consciente e responsável.
6) Acontece, porém, que a vontade humana
pode ser influenciada, consciente ou inconscientemente, pelas paixões e os
afetos do indivíduo. Alguém pode ter posições preconcebidas contra a fé, pois
esta exige mudança de vida que o homem desregrado pode não querer realizar;
quando a verdade não lhe convém, a pessoa tenta “provar” que ela não
é verdade e que a evidência não aparece. Escreveu o filósofo Thomas Hobbes (+
1678): “Se nisto tivessem os homens interesse, duvidaram da geometria de
Euclides” (Sistema da Natureza 2, 4).
Em muitos
casos, a falta de fé não se deve a dificuldades intelectuais, mas aos
sacrifícios que a fé impõe. 0 hedonismo, a procura do prazer e a fuga das
renúncias dificultam enormemente o acesso as verdades da fé. Já Sêneca (+ 63
d.C.) dizia: “Muitas vezes ocorrem-me pessoas que julgam ser impossível
fazer o que elas não podem fazer… Tais pessoas, na verdade, podem fazê-lo,
mas não o querem… Não se diga; “Não ousamos fazê-lo por ser coisa difícil”,
mas é coisa difícil porque não o ousamos fazer”‘ (A Lucílio, epistola
104).
7) Vê-se assim que a fé solicita a pessoa
humana e todas as suas faculdades. Ter fé implica a mobilização geral das
virtualidades do indivíduo; “pela fé o homem se entrega todo a Deus”,
diz a Constituição Dei Verbum atrás citada.
Examinemos
agora a fundamentação neotestamentária desta noção de fé.
2. Que diz
o Novo Testamento?
No
Evangelho freqüentemente a palavra crer (pisteuein, em grego) indica, nos
ouvintes, uma atitude de resposta a uma verdade proposta ou a um ensinamento:
Jo 7, 46:
“Se vos digo a verdade, por que não me credes?”
Jo 5, 46s:
“Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mi, porque foi a meu
respeito que ele escreveu. Mas, se não credes em seus escritos, corno crereis
em minhas palavras?”.
Jo 10, 37s:
“Se não faço as obras do meu Pai não acrediteis em mim. Mas, se as faço,
ainda que não acrediteis em mim, crede nas obras, a fim de conhecerdes e
conhecerdes sempre mais que o Pai está em mim e eu no Pai”.
Jo 11, 26s:
“Eu sou a ressurreição e a vida; crês nisto? – Sim, Senhor creio que és o
Cristo”.
São Paulo
professa a mesma concepção em Rm 10, 9: “Se com tua boca confessares que
Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos,
serás salvo”.
O cristão
crê num fato que ele considera verdadeiro, e esta fé salva:
CI 2, 6s:
“. .. Enraizados em Cristo, sobre ele edifica dos e apoia dos na fé, como
aprendestes, e transbordando de alegria. Tomai cuidado para que ninguém vos
escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição
dos homens”.
A doutrina
da fé transmitida pelos Apóstolos é verdadeira e distingue-se das especulações
da falsa filosofia. Por conseguinte, a fé é a adesão a verdade; o que não se
coaduna com ela, é crendice, é heresia ou erro.
Hb 11, 1:
“A fé é a posse antecipada das coisas que esperamos; é a demonstração das
coisas que não vemos”.
Esta quase
definição da fé põe em evidência o aspecto intelectual da fé: ela demonstra ou
faz ver antecipadamente o que o cristão conhecerá plenamente na visão
face-a-face da Beleza Infinita.
Tt 1, 9:
“0 epíscopo (= vigilante da Igreja) deve ser de tal modo fiel na exposição
da palavra que seja ca paz de ensinar a sã doutrina e refutar os que lhe
contradizem “.
Mc 16, 15s:
“Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e
for batizado, será salvo; quem não crer; será condenado”.
Este texto
põe em evidência o aspecto livre do ato de fé. Quem ouve a mensagem do
Evangelho, pode aceitá-la crendo como a pode rejeitar recusando crer.
Tais
passagens bíblicas são citadas para comprovar que a fé não é um sentimento cego
nem um mero ato de confiança afetiva em Deus, mas, sim, urna atitude da
inteligência, que, movida pela vontade livre, diz Sim a Palavra de Deus que se
revela.
À guisa de
complemento, pode-se acrescentar que ter fé não é algo raro ou extraordinário
para o ser humano. Na vida cotidiana, todo homem, mesmo o ateu, exercita a
fé,… a fé na autoridade de quem lhe fala, e, na base dessa fé, pauta o seu
comportamento. É o que se dá, por exemplo, com quem lê” ou ouve a
noticiário dos jornais; notícias relativas a economia nacional e internacional
lhe são transmitidas em caráter decisivo; se a fonte de informações é segura,
a pessoa não se preocupa com averiguações empíricas, mas crê e tira suas
conclusões concretas. Todo homem crê também nos historiadores que com seriedade
lhe relatam o passado. Crê também que N.N. é seu pai ou sua mãe, sem procurar
provas fisiológicas ou médicas para crê-lo. Crê no médico que lhe receita um
remédio ou um tratamento…
O Papa João Paulo II lembra estes
aspectos na sua encíclica “Fé e Razão”
“Na vida de
urna pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas do
que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz
de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais
se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o
fluxo de informações recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que,
por princípio, são aceitas como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer
novamente todos os caminhos de experiência e pensamento pelos quais se foram
acumulando os tesouros da sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o
homem, ser que busca a verdade, é também, aquele que vive de crenças” (nº 32).
Examinemos
agora de mais perto os obstáculos intelectuais e os obstáculos morais que
dificultam ou mesmo impedem o ato de fé.
3.
Obstáculos intelectuais
Assinalam-se
dois principais obstáculos: a ignorância religiosa e os vícios de método.
3.1. Ignorância religiosa
O primeiro
dos obstáculos intelectuais é a ignorância ou também a errônea transmissão das
proposições da fé. Com efeito; não é raro alguém negar as verdades da fé,
porque não as conhece adequadamente ou só conhece caricaturas da verdade. Tal é
o caso, por exemplo, de quem rejeita a fé porque julga que ela ensina a criação
do mundo em seis dias de 24 horas, a origem do homem a partir do barro, a da
mulher a partir da costela de Adão… ” Tertuliano (+ 220 aproximadamente),
apologista cristão, escrevia aos pagãos: “A religião cristã vos pede uma
só coisa: que não a condeneis sem a conhecer”.
Pascal (+
1662), filósofo e matemático francês, censurava os que superficialmente abordam
as verdades da fé:
“Julgam
ter feito grandes esforços para se instruir porque empregaram poucas horas na
leitura de algum livro da Escritura ou interrogaram algum eclesiástico sobre
as dificuldades da fé. Depois disto ufanam-se de haver procurado em vão nos
livros e nos homens” (Pensões, sect. Ill nº 194), Brunschvig II, p.102).O Pe.
Leonel Franca apresenta alguns exemplos da ignorância religiosa que leva a
renegar as verdades da fé:
“infelizmente
é com lacuna de informações e descuidos críticos que se fundamentam conclusões
frágeis e apressadas de certos manuais de história comparada das religiões.
Esbatem-se na penumbra diferenças essenciais, põem-se em relevo semelhanças de
superfície, forçam-se analogias até a identidade; interpretam-se ritos e
cerimônias pela materialidade externa dos atos e não pelo profundo significado
íntimo da idéia que as anima e especifica; explicam-se todas as concordâncias
por simples empréstimo ou influências históricas. As conclusões são inesperadas
e radicais” (A Psicologia da Fé, p.77).
O autor se
refere aos estudiosos que, por exemplo, afirmam que o dogma da SSma. Trindade
não é senão o eco cristão de frades de deuses do Egito e da India…; a
maternidade virginal de Maria seria o mito da Virgem-Mãe transposto para o
Credo cristão; o Batismo cristão não seria mais do que uma das tantas abluções
rituais da antigüidade; a cela eucarística… cópia das refeições sagradas do
paganismo… Somente uma análise superficial dos fatos leva a dizer tais
coisas. Na verdade, há manifestações e cerimônias religiosas que são
espontâneas a natureza humana como tal e, por isto, encontradas em várias
correntes religiosas com grande semelhança entre si. Diferem, porém, umas das
outras pelo espírito ou a visão doutrinária que inspira cada uma dessas
práticas. Em conseqüência não se pode falar de empréstimo ou dependência do
Cristianismo em relação a outras correntes religiosas.