A Tradição da Igreja (Parte 2)

É preciso dizer também que, embora Lutero colocasse a Bíblia como “a única fonte da fé”, desprezando a Tradição e o Magistério, no entanto, quando a sua teoria da “salvação somente pela fé”, sem necessidade das obras, se chocou com as palavras da Epístola de S. Tiago (“sem obras a fé é morta”, Tg 2,26), Lutero a rejeitou de todo e a chamou de “uma verdadeira epístola de palha”(idem p.16). Onde estava o seu respeito pela Bíblia?

Jamais as igrejas evangélicas conseguiriam chegar a um único “Símbolo de Fé”, um só Credo.

A Igreja católica, por outro lado, porque se manteve fiel a Cristo, apesar dos pecados dos seus filhos, professa uma só fé, um só batismo, um só Senhor.

Como disse D. Estevão há uma “nostalgia de unidade” entre os irmãos separados. Mas eles só a encontrarão ao retornarem ao seio da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, fundada por Jesus sobre a Rocha de Pedro. E nós católicos esperamos por essa hora e rogamos ao Espírito Santo que a apresse, para que haja “um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16).

É fácil notar que o esfacelamento do protestantismo, cada vez maior, tem como causa a negação da Igreja, do Magistério e da Tradição apostólica, e o princípio estabelecido por Lutero, de que a única fonte de fé é a Bíblia, interpretada segundo “livre exame” de cada um. Dessa “leitura livre” da Bíblia, cada qual tira a conclusão que quer, a que lhe seja mais oportuna e cômoda, até aquela de fundar “nova igreja” dirigida pelo seu fundador, contra o que Jesus determinou.

É importante notar que São Pedro, quando falava das Cartas de São Paulo, que já eram consideradas parte das Escrituras no seu tempo, alerta os cristãos para o grande perigo de cada um querer interpretar a Bíblia livremente:

“É o que ele [Paulo] faz em todas as suas cartas… Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras” (2Pd 3,16).

São Pedro chama a atenção aqui para o perigo de deturpação da mensagem e para o grave erro de pessoas particulares quererem a seu modo e sem autorização oficial da Igreja interpretar passagens difíceis.

Em toda a Bíblia há passagens difíceis que, por mandato de Cristo só a Igreja, pelo seu Magistério, pode interpretar sem erro. Só à Igreja Cristo garantiu a infalibilidade de interpretar a Bíblia sem erro. É preciso notar que, se São Pedro, que conviveu com São Paulo, que falava a sua mesma língua e vivia os seus mesmos costumes, achava nos escritos de Paulo “algumas passagens difíceis”, imagine-se então para nós hoje! Não é à toa que a Igreja sempre teve a seu serviço um batalhão de estudiosos das mais variadas ciências para compreender cada vez melhor tudo o que está na Bíblia. Quantos e quantos estudam teologia, hermenêutica, arqueologia, paleontologia, história antiga, linguística, etc, para que a Igreja possa melhor interpretar a palavra de Deus. E nada disso contradiz a inspiração do Espírito Santo garantida à Igreja; pois Ele faz a Sua parte e quer que façamos a nossa.

O mesmo São Pedro lembra aos cristãos do seu tempo:

“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falavam da parte de Deus” (1Pd1,20).

Ora, se a Bíblia toda foi inspirada pelo Espírito Santo, como a sua interpretação pode ser conflitante? O Espírito Santo não se contradiz; logo, não pode haver interpretações antagônicas para uma mesma passagem bíblica.

Só a Igreja, templo vivo do Espírito Santo, tem a interpretação autêntica.

É o que nos ensina a “Dei Verbum” do Vaticano II:

“O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo” (DV,10).

O Catolicismo tem a convicção de que a humanidade de Jesus é o grande Sacramento que salva a todos os homens, fazendo-se presente no Corpo de Cristo que é a Igreja e que leva a salvação a cada um através dos sete sacramentos.

Todos os sacramentos, as verdades doutrinárias, as práticas de piedade, etc., chegaram até nós pela Tradição.
Lentamente, sob o impulso do Espírito Santo, a Igreja foi descobrindo os sete sacramentos até ter uma visão nítida dos mesmos.

Ao vencer cada heresia, especialmente nos grandes Concílios, foi-lhe sendo revelada o verdadeiro “Símbolo dos Apóstolos”, o Credo.

E assim, muitos outros assuntos, que não cabem analisar aqui neste livro, foram sendo, sob a inspiração do Espírito, conhecidos. Por exemplo, a necessidade e validade do Batismo ministrado às crianças; a não necessidade de ministrá-lo por imersão, mas apenas por infusão (derramamento) de água; a salutar veneração das imagens, ícones, gravuras sagradas; o casamento indissolúvel, o primado do Papa, o cânon da Bíblia como hoje o temos, diferente da bíblia protestante, o culto e a veneração dos santos (dulia) e à Nossa Senhora (hiperdulia), a santificação do domingo, o purgatório, a ordenação sacerdotal apenas de homens, a intercessão dos santos, a confissão auricular com o sacerdote, a santa missa, a Eucaristia, o celibato dos padres, os ritos litúrgicos, as grandes devoções populares (Sagrado Coração de Jesus, Rosário, Via Sacra, procissões, etc.), tudo chegou a nós através da Sagrada Tradição, confirmada e aprovada pela Igreja. Sem ela não teríamos toda a riqueza da nossa fé, e estaríamos privados de tantos meios de salvação. Só na Igreja católica está a plenitude desses meios.

Um ponto relevante a ser observado aqui é a composição da Bíblia Católica, com 46 livros no AT (45, se contarmos Jr e Lm juntos) e 27 no NT; ao todo 72 ou 73.

Garante-nos o Catecismo da Igreja e o Concílio Vaticano II que:

“Foi a Tradição apostólica que fez a Igreja discernir que escritos deviam ser enumerados na lista dos Livros Sagrados” (DV 8) ( CIC,120).a_minha_igreja_nova_capa

Portanto, sem a Tradição da Igreja não teríamos a Bíblia. Como então, dispensar a Tradição na sua interpretação? Como aceitar a existência da fruta e negar a árvore que a gerou?

Santo Agostinho dizia:

“Eu não acreditaria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja Católica”(CIC,119).

Por que a Bíblia católica é diferente da protestante? Esta tem apenas 66 livros porque Lutero rejeitou os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico (ou Sirácida), 1 e 2 Macabeus, além de Ester 10,4-16; Daniel 3,24-20; 13-14.

A razão disso vem de longe.

No ano 100 da era cristã os rabinos judeus se reuniram no “Sínodo de Jâmnia” (ou Jabnes), no sul da Palestina, a fim de definirem a Bíblia Judaica. Isto porque nesta época começava a surgir o Novo Testamento com os Evangelhos e as cartas dos Apóstolos, que os Judeus não aceitaram.

Nesse Sínodo os rabinos definiram como critérios para aceitar que um livro fizesse parte da Bíblia, o seguinte: (1) deveria ter sido escrito na Terra Santa; (2) escrito somente em hebraico, nem aramaico e nem grego; (3) escrito antes de Esdras (455″428 a.C.); e (4) sem contradição com a Torá ou lei de Moisés.

Esses critérios eram nacionalistas, mais do que religiosos, fruto do retorno do exílio. Por esses critérios não foram aceitos na Bíblia judaica da Palestina os livros que hoje não constam na Bíblia protestante, citados antes.

Acontece que em Alexandria no Egito, antes de Cristo, já havia uma forte colônia de judeus, vivendo em terra estrangeira e falando o grego. Os judeus de Alexandria, através de 70 sábios judeus, traduziram os livros sagrados hebraicos para o grego, entre os anos 250 e 100 a.C, antes do Sínodo de Jâmnia (100 d.C). Surgiu assim a versão grega chamada “Alexandrina” ou “dos Setenta”. E essa versão dos Setenta, incluiu os livros que os judeus de Jâmnia, por critérios nacionalistas, rejeitaram.

Havia então no início do Cristianismo duas Bíblias judaicas: uma da Palestina (restrita) e a Alexandrina (completa).

Os Apóstolos e Evangelistas optaram pela Bíblia completa dos Setenta (Alexandrina), considerando canônicos os livros rejeitados em Jâmnia. Ao escreverem o Novo Testamento usavam o Antigo Testamento, na forma da tradução grega de Alexandria, mesmo quando esta era diferente do texto hebraico. O texto grego, “dos Setenta” tornou-se comum entre os cristãos; e portanto, o cânon completo, incluindo os sete livros e os fragmentos de Ester e Daniel, passou para o uso dos cristãos.

Das 350 citações do Antigo Testamento que há no Novo, 300 são tiradas da Versão dos Setenta, o que mostra o uso da Bíblia completa pelos apóstolos.

Verificamos também que nos livros do Novo Testamento há citações dos livros que os judeus nacionalistas da Palestina rejeitaram. Por exemplo: Rom 1,12-32 se refere a Sb 13,1-9; Rom 13,1 a Sb 6,3; Mt 27,43 a Sb 2, 13.18; Tg 1,19 a Ecls 5,11; Mt 11,29s a Ecls 51,23-30; Hb 11,34 a 2 Mac 6,18; 7,42; Ap 8,2 a Tb 12,15.

Nos séculos II a IV houve dúvidas na Igreja sobre os sete livros por causa da dificuldade do diálogo com os judeus. Finalmente a Igreja, ficou com a Bíblia completa da Versão dos Setenta, incluindo os sete livros.

Vários Concílios confirmaram isto: os Concílios regionais de Hipona (ano 393); Cartago II (397), Cartago IV (419), Trulos (692). Principalmente os Concílios ecumênicos de Florença (1442), Trento (1546) e Vaticano I (1870) confirmaram a escolha.

No século XVI, Martinho Lutero (1483″1546) para contestar a Igreja, e para facilitar a defesa das suas teses, adotou o cânon da Palestina e deixou de lado os sete livros conhecidos, com os fragmentos de Esdras e Daniel.

Sabemos que é o Espírito Santo quem guia a Igreja e fez com que na hesitação dos séculos II a IV a Igreja optasse pela Bíblia completa, a versão dos Setenta de Alexandria, o que vale até hoje para nós católicos.

Lutero, ao traduzir a Bíblia para o alemão, traduziu também os sete livros (deuterocanônicos) na sua edição de 1534,e as Sociedades Bíblicas protestantes, até o século XIX incluíam os sete livros nas edições da Bíblia.

Neste fato fundamental para a vida da Igreja (a Bíblia completa) vemos a importância da Tradição da Igreja, que nos legou a Bíblia como a temos hoje. Disse o último Concílio:

“Pela Tradição torna-se conhecido à Igreja o Cânon completo dos livros sagrados e as próprias Sagradas Escrituras são nelas cada vez mais profundamente compreendidas e se fazem sem cessar, atuantes. Assim o Deus que outrora falou, mantém um permanente diálogo com a Esposa de seu dileto Filho, e o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja e através da Igreja no mundo, leva os fiéis à verdade toda e faz habitar neles copiosamente a Palavra de Cristo” (DV,8).

Por fim, é preciso compreender que a Bíblia não define, ela mesma, o seu catálogo; isto é, não há um livro da Bíblia que diga qual é o índice dela. Assim, este só pode ter sido feito pela Tradição dos apóstolos, pela tradição oral que de geração em geração chegou até nós.

Se negarmos o valor indispensável da Tradição, negaremos a autenticidade da própria Bíblia.

É interessante notar que o Papa São Dâmaso (366-384), no século IV, pediu a S.Jerônimo que fizesse uma revisão das muitas traduções latinas que havia da Bíblia, o que gerava certas confusões entre os cristãos. São Jerônimo revisou o texto grego do Novo Testamento e traduziu do hebraico o Antigo Testamento, dando origem ao texto latino chamado de “Vulgata”, usado até hoje.

Do Livro: “A MINHA IGREJA”, Prof. Felipe Aquino

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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