Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 344 – Ano 1991 – p. 16
Em síntese: O mistério da
SS. Trindade, embora não possa ser cabalmente penetrado pela inteligência
humana, é ilustrado pela mesma a partir da analogia (imagem e semelhança) de
Deus existente no homem. Os atos de conhecer e amar do homem vêm a ser espelho
a partir do qual a Teologia clássica tenta esclarecer a vida eterna do próprio
Deus.
Depois de mostrar a
fundamentação bíblica do mistério da SS. Trindade, passamos ao estudo
sistemático deste artigo de fé. – As páginas subseqüentes terão, no mínimo, a
vantagem de evidenciar que o dogma da SS. Trindade não exige abdicação ou
renúncia do cristão à sua inteligência.
As processões em Deus
Os teólogos tentaram, desde
os primeiros séculos, penetrar de algum modo no mistério da vida de Deus Uno e
Trino. Não há dúvida, este escapa à plena compreensão da inteligência humana,
que é sempre finita. Como quer que seja, a reflexão teológica pode mostrar não
somente que o mistério da SS. Trindade
não é um absurdo,¹ mas também que grande
harmonia e suma conveniência existem nesse mistério.
Eis como, ao falar do Pai e
do Filho, supõe procedência (ou processão)² do Filho em relação ao Pai. No
tocante ao Espírito Santo, diz Jesus: “O Espírito da verdade, que procede do
Pai…” (Jo 15,26).
Vejamos, pois, o que é uma
processão.
– É simplesmente a origem de
um ser a partir de outro. Não implica relação de causalidade entre um e outro.
Por exemplo, a luz e o calor procedem de uma lâmpada acesa (há relação de
causalidade no caso); a estrada Rio-São Paulo procede do ponto A (não há
relação de causalidade entre o A e a estrada, mas há uma processão ou
procedência).
Há dois tipos de processão: a transeunte e a imanente.
Na processão transeunte, o
termo que procede sai do princípio donde procede. É o que ocorre quando alguém
escreve uma carta (esta sai para fora da pessoa que escreve), quando alguém
confecciona uma obra de arte…
Na processão imanente, o
termo que procede permanece no sujeito donde procede. É o que acontece com
nossas ações vitais: o conhecer, o querer, o ver, o ouvir… A ação permanece
no sujeito como perfeição deste. Por exemplo, quando admiro uma paisagem, nada
sai de mim; não obstante, realizo uma atividade, olhando, refletindo,
imaginando… que me enriquece interiormente.
Dentre as ações imanentes,
as mais nobres são as da vida intelectiva: o conhecer intelectivo e o querer
(que decorre do conhecimento).
Observemos o que ocorre em
nós: nosso eu é dotado de intelecto (mediante o qual somos chamados a conhecer
a verdade) e de vontade (mediante a qual queremos e amamos a verdade, que é um
bem).¹ Conhecemos verdades parciais e amamos, com a nossa vontade, cada verdade
descoberta. Assim nossa vida é uma contínua procura da verdade (mediante a
inteligência), que suscita em nós momentos de gozo e deleite (amor).
Transponhamos essa realidade
para Deus, já que somos imagem e semelhança dele.
Em Deus não existem
processões transeuntes (pois estas implicam imperfeição), mas há processões imanentes. Sim; em Deus há um
conhecer intelectivo e um querer (que é também amor). Todavia Deus não conhece
a Verdade pouco a pouco, mas num único ato Deus conhece toda a Verdade;
conseqüentemente, com um único ato Deus ama todo o Bem.
E qual é o objeto do
conhecimento e do amor de Deus?
– É o próprio Deus. Deus não
depende de criatura alguma para conhecer e amar; toda criatura começa no tempo;
só Deus é eterno. Isto quer dizer: desde toda a eternidade Deus se conhece
cabal e exaustivamente e, conhecendo-se, projeta uma imagem de Si, igual ao
próprio Deus que a projeta (não há
retalhamento nem diminuição nesta imagem); é um segundo ou em Deus, é
Deus de Deus ou a Segunda Pessoa da SS. Trindade. A S. Escritura dá a essa
pessoa os nomes de Filho, Logos (conceito, palavra), Imagem (todo Filho é
imagem e palavra de seu pai).¹ Tal é a primeira processão existente em Deus; há
de ser entendida à semelhança do que se dá quando projetamos nossos conceitos e
os contemplamos mentalmente; também tem analogia com a geração ou com o
relacionamento existente entre pai e filho.²
Mas a vida de Deus – como a
de qualquer um de nós – não é só conhecimento. Este suscita o amor. Por isso o
conhecimento que Deus tem de si, suscita o amor de Deus a esse bem, que é Ele
mesmo. O amor em Deus não é um ato parcelado (em Deus nada pode ser parcelado),
mas é o próprio Deus que ama, ou ainda: é o amor que o Pai tem ao Filho e que o
Filho tem ao Pai. Esse amor é chamado o Espírito Santo. Tal é a Segunda
processão existente em Deus: é a terceira pessoa ou do terceiro eu, que procede
do Pai e do Filho; na falta de outro nome, essa processão é chamada
“espiração”, pois tem por termo o Espírito.
Vemos assim que em Deus deve
duas processões e três pessoas. Não pode haver nem mais nem menos. É importante
salientar que essas processões não implicam temporalidade (antes e depois), nem
hierarquia nem dependência. No único e permanente instante da eternidade, Deus
se conhece gerando o seu Filho, igual ao Pai, e Deus se ama, produzindo o Amor
Subsistente.
Há, pois, uma só natureza em
Deus, duas processões e três pessoas. As
processões, sendo imanentes, não dividem nem retalham a única natureza divina;
não constituem três deuses, mas um só Deus ou uma só natureza divina, que se
afirma três vezes.
A analogia assim exposta é a
que mais se aproxima da vida de Deus. Os antigos escritores da Igreja propunham
outras, que a seu modo ilustram a SS. Trindade.
Imaginemos um lençol de água
debaixo da terra; é algo de grande, mas
invisível e insondável aos olhos da criatura. Esse lençol se manifesta mediante
um “olha de água”, que revela aos poucos a quantidade e a qualidade da água
oculta. Por sua vez, esse olho de água dá origem a um córrego, que irriga e
“vivifica” toda a terra vizinha. – Ora o lençol de água invisível representa o
Pai; o olho de água, o Filho ou o Lógos, que diz o que há no lençol; o córrego
representa o Espírito Santo, que
comunica a todos os homens a vida decorrente da água oculta.
Imaginemos outrossim um
tronco de planta com suas raízes invisíveis. É portador de uma vida, que se
manifesta na flor. Esta, por sua vez, exala um suave perfume, que impregna todo
o ambiente. Ora o tronco com suas raízes significa o Pai; a flor que “fala” e
revela, simboliza o Filho; o suave odor representa o Espírito Santo. – Estas
duas últimas imagens põem em relevo principalmente as peculiaridades de cada
Pessoa divina: o Pai é o princípio sem princípio; é o Deus invisível, também
chamado “Abismo” e “Silêncio”. O Filho é a imagem ou palavra do Pai; pelo Filho
é que o Pai se dá a conhecer aos homens; Ele é também o mediador e o Pontífice.
O Espírito Santo é Deus que atinge cada homem na sua intimidade e lhe fala ao
coração; é o Artífice da santificação de cada um.
Há ainda outra maneira de
figurar a SS. Trindade, muito usual na arte latina: é a do triângulo
equilátero. Este apresenta uma só área, que é focalizada diversamente a partir
de cada um dos seus ângulos: A, B e C;
estes são iguais entre si, mas ocupam posições diversas e inconfundíveis dentro
da unidade da figura.
Passemos agora a outro
aspecto do mistério:
As missões divinas
Em sua vida íntima, Deus é
uno e trino. Conhecemos tal mistério através de sua manifestação na história da
salvação. Esta nos ensina que existe um Pai, o qual nos enviou seu Filho
(mistério da Encarnação na plenitude dos tempos; cf. Gl 4,4). O Pai e o Filho,
por sua vez, nos enviaram o Espírito Santo como dom por excelência, como
hóspede invisível de cada coração em estado de
graça; cf. Jo 14,26. – Ao falar-nos desses “envios” ou dessas “missões”,
a S. Escritura dá-nos a entender que são o eco temporal das eternas processões
existentes em Deus.
O estudo das missões divinas
dá ao tratado da SS. Trindade uma nota muito viva e concreta. O mistério de
Deus aparece profundamente inserido dentro da trama da história dos homens.
O Pai não é enviado, porque
não procede. É Ele quem envia o Filho como Salvador, nascido de Maria Virgem.
“Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma
mulher, nascido sob a Lei, para reunir os que estavam sob a Lei, a fim de que
recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4s). Esta é a missão visível do Filho, que
não implica subordinação da segunda Pessoa em relação à primeira, e que torna
Deus, de modo novo e mais íntimo, presente às criaturas.
O Espírito Santo, que
procede do Pai do Filho, é-nos enviado por ambos:… de modo visível, sob forma
de línguas de fogo, no dia de Pentecostes (cf. At 2);… de modo invisível, à
guisa de hóspede interior, no dia do Batismo de cada cristão: “Porque sois
filhos, enviou Deus em nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abbá,
Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também
herdeiro, graças a Deus” (Gl 4,6s).
O Espírito Santo é o Dom que
o Pai e o Filho nos entregam como conseqüência da vitória de Cristo; Ele é o
“outro Paráclito (Consolador)”, na ausência de Cristo (cf. Jo 14, 16).
Vê-se assim que a
santificação dos homens se faz por comunhão com a vida das três Pessoas
divinas; por obra do Espírito Santo, o cristão é feito filho no Filho e, com o
Filho, volta ao Pai. A piedade cristã deve saber orientar-se diante desta
verdade; especialmente a sua oração há de se mover dentro do esquema: Ao Pai
por Cristo no Espírito Santo.
As doxologias (fórmulas de
glorificação) antigamente rezavam “Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo”.
No século IV, porém, surgiu a heresia ariana, que subordinava o Filho ao Pai,
prevalecendo-se, entre outras coisas, de tal fórmula. Em conseqüência, os
autores católicos enfatizaram outra redação: “Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo, frase em que são postas exatamente no mesmo plano as três
Pessoas divinas. Esta outra maneira de rezar tem seu fundamento teológico e acabou
prevalecendo sobre o anterior. Todavia não nos deveria levar a esquecer o papel
que toca a cada Pessoa trinitária na santificação do cristão.
Os santos sempre desfrutaram
o dom que o próprio Deus faz de si a quem O procura. A bem-aventurada Elisabeth
da Trindade, Religiosa carmelita (+ 1906), cultivou generosamente a consciência
da habitação de Deus no cristão, deixando, entre outras, a seguinte poesia:
“Era uma noite tranquila,
alto o silêncio;
O meu pequeno navio cortava
o mar.
De repente levantaram-se as ondas
E o frágil navio naufragou:
Era a Trindade que me
absorvia.
Refúgio encontrei naquele
abismo,
Mergulhada para sempre no
infinito.
Aqui minha “alma respira e
adormece,
Vivendo com os seus “três”
no tempo eterno”.
As apropriações
Chamamos “propriedades”
certos predicados que convêm, de maneira exclusiva, a uma Pessoa divina: assim
a inascibilidade e a paternidade, ao Pai; a filiação, o ser Palavra, o ser
Imagem, ao Filho; a espiração passiva, o ser
Amor e o ser dom, ao Espírito Santo.
Na Liturgia e na S.
Escritura ocorrem também apropriações. Apropriação é o ato de atribuir a
determinada Pessoa Divina um predicado comum às três; essa apropriação se faz
na base da semelhança que tal predicado comum tem com alguma propriedade.
Dizemos, por exemplo, no Credo: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do céu e da
terra…”; na verdade, as três Pessoas são igualmente poderosas e criaram o
mundo; todavia parece que o ato de criar tem especial afinidade com o Pai,
porque este é o Princípio sem princípio ou o Alfa em Deus. – Ao Filho é
apropriada a Sabedoria (1Cor 1,24), não porque só Ele seja sábio, mas porque
Ele é a Palavra do Pai. – Ao Espírito Santo é apropriada a santificação dos
homens, não porque esta seja obra exclusiva da terceira Pessoa, mas porque o
Espírito é a consumação da vida trinitária ou o ósculo entre o Pai e o Filho;
ora santificação implica consumação no amor. São numerosas as apropriações que
a piedade cristã tem efetuado em seus hinos e textos litúrgicos.
¹ Há quem diga popularmente:
Se 1 + 1 + 1 = 3, como é que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo não são
três deuses? Na mesma linguagem popular pode-se responder: 1 + 1 + 1 = 3, mas 1
x 1 x 1 = 1! – Assim se desfaz a objeção mal concebida.
² Não confundir com procissão,
que é uma cerimônia religiosa. Processão vem de proceder e só se usa na
linguagem teológica trinitária.
¹ A filosofia ensina que o
Ser, na medida em que é considerado pela inteligência, é Verdade e, na medida
que é desejado pela vontade, é um Bem.
¹ Cf. Mc 1,11 (Filho); Jo
1,1 (Logos); Cl 1,15 (Imagem).
² É de notar, aliás, que o
mesmo verbo conceber se aplica tanto à concepção de noções ou idéias quanto à
concepção de um filho. O pensador concebe um projeto mental; a mãe concebe um
filho.