Uma nova moral – EB (Parte 2)

Pode-se dizer sem hesitação
que o teor deste documento corresponde à mente da Igreja ainda nos nossos dias.

A respeito da lei natural
manifestou-se o Papa Paulo VI em alocução datada de  18/03/70:

“É claro que a lei relativa
ao modo de agir, a lei moral, deriva do ser humano, pois é dele que depende o
dever ser. Mas quem é o homem? Quem é o cristão? É preciso ter uma noção, pelo
menos instintiva e intuitiva, da natureza do homem para compreender qual deve
ser o seu modo de agir…

Fazemos algumas perguntas:
existe realmente uma lei natural? Esta pergunta parece ser ingênua, porque se
prevê facilmente uma resposta exata. Mas, se pensarmos em tantas objeções que
hoje se fazem em relação à existência de uma lei natural, não é ingênua. Em
parte compreende-se por quê. Quando se confunde e se altera a verdadeira
concepção do homem, confunde-se e altera-se também a concepção da sua vida, do
seu modo de agir e da sua moralidade.

Mas nós, que julgamos poder
responder, por meio da reflexão iluminada – se quiserdes – pela luz da
sabedoria cristã, à antiga máxima “conhece-te a ti mesmo”, o sentido imanente
da consciência e, principalmente, o lume da razão dizem-nos que estamos
sujeitos a uma lei – simultaneamente direito e dever – que nasce do nosso ser, da
nossa natureza, a uma lei não escrita, mas vivida – “non scripta, sed nata lex”
(Cícero) – lei que São Paulo reconhece também nos pagãos, fora da luz da
Revelação divina, quando diz que eles são a lei de si mesmos: “ipsi sibi sunt
lex” (Rom 2,14)…

Ainda somos sensíveis ao
clássico e tremendo conflito da tragédia grega, que se reflete no coração
frágil, mas tão humano, de Antigone, quando este se insurge contra o poder
iníquo e tirano de Cleonte. Hoje mais do que nunca, somos fautores da
personalidade e da dignidade humana. E por quê? Porque conhecemos no homem um
ser que reclama um “dever-ser”, em virtude de um princípio exigente a que
chamamos lei natural” (SEDOC, nº 11, maio 1970, cols. 1320s).

2.2. Secularismo

A proposta moral de Marcos
Bach faz freqüentemente questão de dizer que Deus não é fator de moralidade – o
que lhe confere um cunho secular ou meramente leigo (alheio a Deus). Esta nota
– que, aliás, caracteriza outros sistemas de Moral contemporâneos (cf. pp.
193-213 deste fascículo) – aparece, por exemplo, nos seguintes tópicos:

“Não se pode elaborar um
sistema moral tomando como ponto de partida a vontade de Deus, porque o
conhecimento desta vontade dispensaria a criação de um sistema moral” (p. 24).

“A conversão moral é um
processo que não deveria ser confundido com a conversão religiosa. Retornar à
sua própria casa é uma coisa e voltar à casa do Pai é outra, bem diferente. A
confusão entre o plano moral e o religioso só serve para prejudicar a ambos.
São duas realidades autônomas e representam a resposta a duas dimensões
distintas do homem” (p. 25).

A Moral significa, conforme
o autor, “a auto realização do homem” (cf. p. 25) sem implicar em conformação a
um modelo divino, arquétipo ao qual o homem terá sido chamado a configurar-se¹.

Por conseguinte, a quanto
parece, a nova Moral será sem Deus ou Moral leiga.

Todavia M. Bach parece ter
hesitado neste ponto, pois timidamente menciona Deus como referencial da
moralidade. É o que ocorre à p. 25:

“Nosso ponto de partida é a
natureza do homem, mas em sua globalidade. Vista, portanto:

– como ser transcendente,
voltado para além de si próprio;

– como ser religioso,
voltado com todas as fibras do seu ser para um centro” (cf. também p. 129).

Seria oportuno que o autor
explicasse melhor o sentido e a função desse centro, e dissipasse a contradição
que estas proposições implicam em relação às dos textos anteriormente citados e
transcritos do mesmo capítulo do livro em foco.

À guisa de comentário à tese
de uma Moral leiga ou sem Deus, poder-se-ia lembrar a frase de Dostoievsky,
subscrita por Jean-Paul Sartre: “Se Deus não existe, tudo é permitido”
(“L’existencialisme est-il humanisme?”).

Muito significativos são
também os testemunhos de autores ateus referentes à falência da Moral atéia,
que o Pe. Paul-Eugène Charbonneau colecionou e publicou no seu livro: “O homem
à procura de Deus”, pp. 189, 191, 193, 243 (cf. PR 263/1982, pp. 321-329).

2.3. Otimismo natural e
pecado

É difícil perceber-se o que
o autor pensa em relação à natureza humana e ao pecado original de que falam as
Escrituras. Em certas passagens, parece fazer eco ao otimismo filosófico de
Jean-Jacques Rousseau, como, por exemplo, neste trecho:

“Se admitimos como verdade
de base que o homem nasce bom, é bom, e talvez acabaria sendo bem melhor do que
é, não fosse a Moral, tudo passa a ser diferente” (p. 9).

Todavia à p. 66 diz o autor:

“O pecado está contido na
ação humana, não apenas como tentação externa (diabólica), mas como elemento
constitutivo. É ao menos lícito pensar assim se a teoria do pecado original
corresponde à verdade”.

Nesta seção o autor já
menciona o pecado original, mas como teoria e numa frase condicional.

Como quer que seja, Marcos
Bach admite que todos os atos humanos são contaminados pelo mal:

“O ato moral “quimicamente”
puro é antes um devaneio do que um objetivo sério” (p. 66).

“O pecado é o único ato de
propriedade exclusiva do homem… A única coisa que pode fazer sozinho, sem
ajuda de ninguém, é o pecado (…) Através dele o homem toma consciência de sua
identidade própria” (p. 143).

“Quando encontramos uma
pessoa realmente boa, estamos diante de uma exceção. A coisa mais improvável é
encontrar esta “maravilha humana” (p. 36).

Perguntamo-nos:

a) Afinal de contas existe
ou não o pecado original, ou seja, uma recusa ou um Não dito pelos primeiros
homens a Deus na origem da história da salvação? – A doutrina católica ensina
que Deus fez a natureza humana boa; dotou-a de graças especiais (filiação
divina e dons preternaturais); a seguir, convidou o homem a se confirmar em tal
estado, mas o homem recusou a sua aquiescência, pretendendo ser autônomo ou
independente de Deus. De então por diante, os homens nascem portadores de uma
natureza humana que é ontologicamente boa¹, mas cujos apetites são, muitas
vezes, desordenados no plano ético… desordenados em consequência da perda dos
dons originais, que teriam subordinado os instintos à razão do homem. – Como se
relaciona J. Marcos Bach com essa doutrina?

b) Se o autor fala de
pecado, como o entende? Será pecado contra Deus? Mas para M. Bach os critérios
da moralidade são a livre consciência do homem e o consentimento da comunidade.
Contra quem ou contra o quê se dirige o pecado?

c) Como entender as
considerações de M. Bach sobre a confissão sacramental, que ele não parece
rejeitar (embora lhe faça críticas devidas a mal-entendido no assunto)? Quando
o sacerdote absolve, é Deus que absolve. Mas por que Deus absolve num contexto
como o que M. Bach delineia?

2.4. Teologia da Cruz

Nota-se, nessa nova Moral
laicizada ou secularista, a ausência da temática bíblica e, de modo especial,
paulina, que fala de luta da carne contra o espírito no plano moral (cf. Gl
5,16-24); o Apóstolo menciona também a contradição existente entre os seus
anseios mais elevados e a conduta pecaminosa a que os instintos arrastam o
homem; cf. Rm 7, 15-24. Em conseqüência, São Paulo apregoa a necessidade de
morte ao velho homem (cf. Ef 4,22-24; Rm 6,12-23) ou de renúncia aos instintos
desordenados: “Os que são de Cristo, crucificaram a carne com as suas paixões e
apetites” (Gl 5,24). Pelo Batismo o neófito morre com Cristo para o pecado e
ressuscita sacralmente para uma vida nova; em conseqüência, deve viver todos os
dias a realidade da morte com Cristo para permitir o desabrochamento da graça
sacramental; cf. Rm 6,1-14.

Neste contexto entende-se
que a mortificação tenha pleno sentido. Não é inspirada por dualismo nem
masoquismo, mas deve-se ao desejo de libertar das paixões contraditórias o
homem novo suscitado pelo sacramento do Batismo em cada cristão.

O próprio Cristo afirma que,
para salvar a vida é necessário perdê-la e que quem não quiser perder a vida
(morrer ao velho homem), não chegará à vida (do novo homem); cf. Mt 16,24-26. A propósito M. Bach tece
considerações irônicas, que desfigurem a doutrina do Evangelho, como se
depreende da seguinte citação:

“A natureza é o adversário
da graça (conforme a Imitação de Cristo, 55) (…). Esta é uma forma dualista de
conceber a atividade moral. Para poder colocar-se do lado da graça divina, o
homem precisa entrar em guerra consigo mesmo. Não poderá haver vitória, se não
houver um derrotado, um perdedor. E este perdedor é o homem, na hipótese de uma
vitória da graça. Em caso de derrota da graça e consequente triunfo da
natureza, o perdedor será novamente o homem (inferno).

Quem, no pleno uso de suas
faculdades mentais, se dispõe a entrar numa luta em que só pode perder?” (p.
162).

É difícil compreender que um
antigo professor de Teologia Moral possa propor tão absurda e maliciosa interpretação
do Evangelho. – Na verdade, a graça não destrói a natureza, mas supõe-na e
apefeiçoa-a, dizem S. Tomás e a clássica teologia; não há, pois, antagonismo
entre graça e natureza (no sentido ontológico). Apenas a graça ajuda o homem a
se libertar, no plano moral, dos instintos desregrados ou das paixões
contraditórias, permitindo que o homem seja mais  ele mesmo ou uma criatura renovada. A ascese
ou a purificação interior implica não em derrota do homem como tal, mas, sim,
em perda do “velho homem” (ou da realidade desordenada que cada qual traz em
si), para que o homem em sua face autêntica (criatura racional elevada à
filiação divina) possa configurar-se definitivamente com toda a sua grandeza e
harmonia. O Cristianismo está longe de estabelecer qualquer tipo de dualismo;
ele afirma a grandeza do corpo humano (criatura de Deus sábio), quando promete
a ressurreição dos corpos. Todavia a mensagem cristã não pode deixar de
reconhecer que no homem há tendências morais contraditórias, derivadas da desordem
induzida pelos primeiros homens, tendências que é preciso reduzir à
convergência e à harmonia.

À p. 161 o autor a repudiar
o dualismo entre matéria e espírito ou corpo e alma no homem. Tem razão; não há
dualismo ou oposição ontológica entre corpo e alma (embora haja nítida
distinção entre ambos, que se chama dualidade). Contudo no plano ético nem
sempre há harmonia entre tendências da carne e tendências do espírito. Ora a
tal harmonia deve ser levado o indivíduo pela sua vida moral.

2.5. O sacramento da
Reconciliação

J. Marcos Bach aborda
algumas vezes no seu livro o sacramento da Reconciliação (cf. pp. 33s. 142s).
Às pp. 33s, critica o tipo de penitência que o confessor costuma impor aos fiéis:

“Cinco Pai Nossos ou coisa
parecida… É a penitência realmente uma resposta adequada ao pecado? Em outras
palavras: qual a relação moral entre o pecado cometido e suas conseqüências todas,
e a recitação de algumas orações totalmente inofensivas? Qual a ligação
positiva entre a penitência e o processo de conversão do qual a confissão é
apenas sinal sacramental?” (p. 34; cf. p. 42).

Quem não leve em conta a
história do sacramento da Penitência, poderá realmente estranhar o fato de que
algumas poucas orações definidas pelo confessor sejam tidas como penitência, de
modo que, uma vez aceita tal penitência, se dê a absolvição ao fiel católico.
Recordando, porém, tal história, compreender-se-á o fato.        

Com efeito; na Igreja antiga
(até o fim do século VI) os cristãos acusavam ao bispo ou ao sacerdote (em
confissão geralmente secreta) os seus pecados graves. Tendo-os ouvido, o
ministro da Igreja procurava atribuir-lhes uma “penitência justa e côngrua” (S.
Cipriano), isto é, uma satisfação que contribuísse, por suas exigências, a
arrancar as raízes do pecado, suscitando no penitente a prática de fervoroso
amor a Deus: tal poderia ser a prática de quarenta dias de jejum a partir da quarta-feira
de cinzas. Quem jejuasse diariamente (exceto aos domingos) até o pôr do sol,
juntamente com os demais penitentes da comunidade, acompanhado pelas orações da
Igreja, deveria excitar em si grande amor a Deus e horror ao pecado, aptos a
extinguir a cobiça desregrada ou a promover o domínio sobre as paixões. Ao fim
de tal penitência, o ministro da Igreja dava, em nome do Senhor, a absolvição
ao penitente, absolvição que, como se vê, supunha um processo enérgico de
conversão.

Contudo, a partir de fins do
século VI, tal atitude da Igreja começou a ser alterada, porque se tornava
insustentável ou mesmo contraproducente em muitos casos. Com efeito; os
sacerdotes e o propósito, do penitente, de se converter; a penitência a ser
realizada depois da absolvição ainda era dura durante alguns séculos, mas também
este começou a ser mais e mais abrandada até chegar à forma hodierna de se
recitarem algumas poucas orações, que não são penitenciais. Será que com isto a
Igreja está “perdoando com excessiva facilidade” (p. 34) ou está banalizando
algo de sério e santo? – Não. O dever de se converter ou de extinguir as raízes
do pecado continua estritamente imperioso para o pecador arrependido, as
maneiras oportunas de promover tal conversão (tantos dias de jejum, de cilício,
de oração mais intensa…), a Igreja houve por bem impor ao penitente um símbolo
ou lembrete de penitência (cinco Pai nosso…), ficando o restante da tarefa de
conversão entregue ao zelo ou à virtude de penitência do cristão. De todo modo,
este terá que praticar a sua conversão ou renúncia às tendências desregradas
mediante o cultivo de um amor a Deus mais forte e mais profundo. Se não
conseguir esta vida fazer penetrar o amor de Deus até o fundo do seu ser por
covardia, negligência ou outro motivo, o cristão terá a oportunidade e
necessidade de o fazer na vida póstuma ou no purgatório (caso morra em estado
de graça, mas ainda portador de resquícios do pecado).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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