Ser cristão – EB

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 223, Ano 1978, p. 275

Em síntese: Aos 14/11/77 o episcopado alemão reunido em Würzburg houve por bem publicar uma Declaração a respeito do livro “Ser Cristão” de Hans Küng, visto que esta obra tem contribuído largamente para abalar a fé de muitos cristãos.

O documento, abaixo transcrito em seus tópicos principais, aponta o livro como “reducionista”, o que quer dizer: a obra não salvaguardada tudo que deve professar uma autêntica confissão de fé católica; principalmente a Divindade de Cristo e a realidade da Redenção são apresentadas de maneira omissa e insuficiente; o autor passa ao lado do teor de textos bíblicos e da doutrina do magistério da Igreja. Sendo assim, o livro se presta a graves mal-entendidos, em vista dos quais a Conferência Nacional dos Bispos da Alemanha julgou ser seu dever pronunciar-se nos termos da Declaração transcrita a seguir.

Comentário: Hans Küng é famoso teólogo suíço cujo livro “Ser Cristão” já foi comentado em PR 186/1975, pp. 246-262; 209/1977, pp. 225-229; é obra que tem merecido severas restrições da parte dos teólogos e da Santa Sé. Não obstante, o livro continua a ser propagado em diversas línguas, inclusive em português e no Brasil, apesar das solicitações feitas a Hans Küng no sentido de que modifique o conteúdo da sua obra em certos pontos insuficientes explanados pelo autor.

Küng apresenta seu livro como “pequena suma” ou compêndio da fé católica, proposição esta que muitos leitores aceitam tranquilamente. Eis por que o episcopado alemão se sentiu compelido a tomar posição diante de “Ser Cristão” de Küng, publicando aos 14/11/1977 uma Declaração a respeito de tal livro. Visto que esse documento pode ser de grande valor também no Brasil, onde a obra de Küng ter despertado interesse, apresentamos, a seguir, as passagens principais da Declaração em tradução portuguesa.

Declaração do Episcopado Alemão

“No novo livro do Prof. Küng intitulado “Ser Cristão”, cujo esforço teológico e cujo interesse pastoral reconhecemos, encontramos outrossim certas expressões, que não vemos como se conciliem com princípios da fé católica (notem-se principalmente a Cristologia, a doutrina da SS. Trindade, a teologia da Igreja e dos sacramentos, o papel de Maria na história da salvação)…

Em carta minuciosa ao professor Küng, datada de 22 de abril de 1977, o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha propôs ao autor algumas perguntas precisas referentes a algumas afirmações do livro Ser Cristão. Até o presente momento o professor Küng não respondeu a tais questões, mesmo depois das exortações instantes que lhe reiteraram outras cartas.

O livro “Ser Cristão” continua a ser propagado e editado, sem modificações, em outras línguas. Visto que tal livro se apresenta como “compêndio da fé cristã e é utilizado por várias pessoas como uma espécie de manual da fé cristã, a Conferência dos Bispos da Alemanha sente-se obrigado a tomar posição novamente diante da obra. Os Bispos não o fariam se não julgassem ter o dever de fazê-lo em vista da fé dos cristãos. Pois “Ser Cristão” de Küng contribuiu largamente para abalar a fé de muitos, como nos informam numerosos testemunhos…

Embora pretenda ser um compêndio, o livro “Ser Cristão”, não trata de tudo que é indispensável à fé católica, como, por exemplo, os sete sacramentos e a sua significação para a vida cristã. Mesmo entre os temas abordados é preciso perguntemos se são considerados em consonância com a fé… O método teológico aplicado pelo professor Küng é insuficiente e redutivo  ¹; … em certos temas importantes provoca uma ruptura com a tradição da fé e da doutrina católica, desde que aplicado coerentemente. O distanciamento em relação ao método de trabalho teológico da tradição anterior da Igreja, assim como uma escolha arbitrária de textos bíblicos acarretam uma redução (Verkürzung) do conteúdo da fé… O professor Küng não apresenta ao leitor o Cristo por completo nem a ação salvífica do mesmo em toda a sua plenitude. Não basta que um teólogo afirme de maneira genérica a sua fidelidade às solenes profissões de fé; é preciso que as profira claramente e que desenvolva harmonicamente o conteúdo das mesmas.

1. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

(…) Desejamos aqui pôr em relevo a redução  (Verkürzung) unilateral e deficiente da doutrina referente a Jesus Cristo. Insistimos particularmente neste ponto porque é o fundamento da fé cristã (cf. 1Cor 3,11). No livro, a Divindade de Jesus Cristo é negligenciada. Contudo Jesus de Nazaré é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Não se pode empobrecer o teor destes dois enunciados nem reduzir um ao outro, pois ambos são necessários. Com efeito, Jesus Cristo não pode fazer o que Ele faz se Ele não é o que Ele é: o Filho eterno de Deus não criado, Deus como o Pai, da mesma natureza que o Pai, uniu-se na encarnação com o homem Jesus numa unidade de pessoa. Não há dúvida de que isto é grande mistério. Mas deve ser professado fielmente caso contrário, a doutrina da salvação, fruto da ação redentora de Jesus de Nazaré, é seriamente posta em xeque; o Evangelho, Boa-Nova da nossa salvação em Jesus Cristo, (…) não poderia ser expresso e proclamado com tudo que ele tem de indispensável.

O enunciado ocasional de Jesus era o Filho de Deus é descrição insuficiente de Cristo. Com efeito, sabemos que a graça redentora também confere uma filiação: “Vós todos sois filhos de Deus, pela fé, em Cristo Jesus” (Gl 3,26). Por conseguinte, também nós podemos e devemos chamar Deus nosso Pai, segundo a palavra do Senhor (…).

Em “Ser Cristão” encontra-se uma série de títulos de soberania aplicados a Cristo de maneira única. Assim Jesus é freqüentemente designado “o lugar-tenente” (Sachwalter) de Deus. Mas, mesmo que  seja aplicado de maneira singular a Jesus Cristo, este título não descreve suficientemente a realidade de Jesus Cristo. Houve, no decorrer dos séculos, muitos lugar-tenentes de Deus: Moisés e os profetas antes de Cristo, os Apóstolos e os mensageiros da Igreja depois de Cristo. Mas todos esses lugar-tenentes ultrapassam a si mesmos e acenam ao Messias que está por vir ou que já veio. Ao contrário, Jesus Cristo, se dirige imediatamente aos homens. Assim Paulo pode escrever: “Não é a nós que pregamos, mas ao Cristo Jesus Senhor; somos apenas os vossos servidores por causa de Jesus” (2Cor 4,5). No Evangelho segundo S. João, Jesus Cristo diz de si mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). E no discurso sobre o pão da vida, que acena à Eucaristia, Ele diz: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão, viverá para sempre. O pão que darei, é a minha carne para a vida do mundo… Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia… Assim como o Pai, que é vivo, me enviou e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come, viverá por mim” (Jo 6,51.54.57). Estas palavras não teriam sentido se Jesus não fosse, à diferença de todos os lugar-tenentes de Deus, Deus mesmo, o Filho de Deus eterno e não criado… Ora Jesus Cristo não é o Filho por ser lugar-tenente de Deus, mas Ele é o lugar-tenente de Deus por ser o Filho de Deus. Não se compreende em que sentido e em virtude de que pretensão Jesus seria o lugar-tenente de Deus se Ele não fosse também o Filho de Deus eterno e não criado.

2. O dom que Deus nos faz de si em Jesus de Nazaré

Ninguém julgue que estamos apenas propondo um litígio de palavras. Trata-se, antes, de afirmar que Jesus Cristo não é somente mestre e modelo para nós, mas também o Salvador e a vida eterna, se nós aderimos a Jesus com fé plena. Houve inúmeras testemunhas que, por sua vida e sua morte, atestaram a sua fé em Deus; assim, a carta aos Hebreus fala de “uma nuvem de testemunhas”, “das quais não era digno o mundo” (Hb 12,1; 11,38). Mas nenhuma delas podia salvar-nos nem por seus sofrimentos nem por sua morte. Ao contrário, Jesus Cristo nos resgatou por sua vida, sua paixão e sua morte, porque Ele não era verdadeiro homem apenas, mas também Filho Divino de Deus enviado pelo Pai celeste para a nossa salvação. Lê-se na primeira carta de Pedro: “Sabeis que não por algo de corruptível, prata ou ouro, fostes resgatados da vossa vã conduta, herdada de vossos pais, mas pelo sangue precioso de um Cordeiro sem defeito nem mancha, a Cristo” (1, 18s).

Quando a Divindade de Jesus de Nazaré – verdadeiro Deus e verdadeiro homem – não é expressa e afirmada com clareza e sem ambiguidade alguma, então tornar-se inevitável uma falaz redução do Evangelho. Pois o cerne do Evangelho como mensagem de salvação é este: Deus mesmo anos ama; ama cada homem, os pecadores também, e todos nós também como pecadores…

Por conseguinte, o amor de Deus por nós não é apenas intenção (Gesinnung). O amor de Deus não é um amor inoperante, mas um amor ativo. Em seu amor, Deus não faz apenas alguma coisa por nós, mas Ele se compromete em nosso favor, enviando-nos o seu Filho único e eterno em nosso beneficio, a fim de que recuperemos por Ele a vida eterna perdida…

Nada disto é suficientemente expresso no livro “Ser Cristão”. É certo que Jesus de Nazaré aí aparece como o lugar-tenente de Deus em nosso favor. Mas não se vê claramente se, pelo envio do seu Filho Divino, o Pai se manifesta como amor… No último capítulo do livro “Ser Cristão”, que compreende quase cem páginas sob o título “A prática” (Die Práxis), o grande mandamento do amor não é tratado sistematicamente; perguntaríamos mesmo se ele aí chega a ser mencionado… O fato de que nós, como Pedro, somos interrogados por Jesus com as palavras: “Tu me amas?” (Jo 21,15), não parece ter peso suficiente para figurar num pequeno compêndio como “Ser Cristão”… É por isto que não podemos considerar essa súmula como suficiente. A obra da salvação de Deus em Jesus Cristo aí está reduzida de tal maneira que devemos tomar nossas distâncias em relação a ela.

3. Redução da realidade da Redenção

Visto que a ação savífica de Deus por Jesus Cristo é apresentada de maneira redutiva, o fruto da obra de redenção por Cristo também o é quase inevitavelmente. O fruto da Redenção é um mistério. Isto não quer dizer que nada saibamos de certo a seu respeito. Mistério quer, antes, dizer que a graça da Redenção nos une mais estreitamente a Cristo do que o pode algum homem, tão estreitamente que isto ultrapassa nossas forças e nossa compreensão…

Na S. Missa, diz-se no momento da água e do vinho: “Como está água se mistura ao vinho em vista do sacramento da aliança, possamos nós ser unidos à Divindade daquele que assumiu a nossa humanidade”. Ora o Prof. Küng faz suas as seguintes palavras: “será que hoje um homem razoável! Quer ainda tornar-se Deus?” (p. 433 da edição alemã). É com pesar que lemos isto. Com efeito quem pensa ou quem ensina que o homem, pela Redenção deixa de ser homem por ter-se tornado Deus? Na encarnação, o Filho de Deus não deixa de ser Deus, e na Redenção o homem não deixa de ser homem. Ele não se torna Deus, mas toma parte na vida eterna que lhe é oferecida toma parte na vida e, portanto, na santidade de Deus.

O sinal e o conteúdo dessa vida é a ressurreição dos mortos, que vem a ser a participação permanente na vida eterna e bem-aventurada de Deus. Isto também é um mistério; ultrapassa a nossa compreensão. Todavia, se o silenciarmos, a fé católica sofrerá uma redução. No que diz respeito à realidade da salvação, o fruto da obra da Redenção por Jesus Cristo é enganosamente reduzido no livro “Ser Cristão”.

Por conseguinte, compete aos Bispos declarar que “Ser Cristão” não pode ser considerado com uma apresentação da fé católica no tocante aos pontos aqui citados como exemplos. Os Bispos assim se manifestam em virtude do seu dever de testemunhar a verdadeira fé e defendê-la.

Os complementos e corretivos, que são necessários ao livro, exigem outro método teológico. Devem aí ser introduzidos, sem redução, os textos bíblicos em toda a sua plenitude e o ensinamento autoritativo da Igreja. Não se veja nisto uma maneira de complicar super-fluamente a fé cristã. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Tal é o conteúdo fundamental da nossa fé cristã. Esta dupla afirmativa exclui qualquer alternativa entre uma Cristologia unilateral ou exclusiva a partir da humanidade de Cristo e uma Cristologia traçada somente a partir do alto ou da Divindade de Cristo. As duas Cristologias têm a obrigação de insistir neste ponto em vista de um autêntica apresentação do Cristo e do ser cristão.

A afirmação de que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem é a afirmação essencial do Concílio ecumênico de Nicéia (325), que condenou como herética a doutrina de Ario segundo o qual o Filho seria a criatura mais elevada… A reafirmação da fé formulada no Concílio de Nicéia não prejudica a causa ecumênica. Pois o testemunho do primeiro Concílio universal pertence ao depósito da fé que é comum dos esforços envidados em vista da unidade de todos os cristãos. Se esta base comum é posta em xeque ou mesmo apenas relegada para um plano secundário o ecumenismo é privado de todo sólido fundamento.

Os Bispos insistem sobre a necessidade de se confessar a fé cristã na sua integridade… convictos de que a fé em Cristo professada em toda a sua riqueza é mais digna de crença do que a fé reduzida mesmo se a fé não reduzida contém e exprime mistérios, pois os mistérios de Deus são mais dignos de crédito do que as soluções dos homens.

Würzburg, 14 de novembro de 1977″

Esta Declaração do Episcopado alemão, abalizada como é, é apta a dissipar qualquer equívoco a respeito do livro “Ser Cristão” de Hans Küng. Não há dúvida, as tentativas de reformular as verdades da fé e encontrar-lhes expressões atualizadas, bem como a intenção de falar linguagem aceitável aos irmãos separados são louváveis na medida em que guardem o essencial do depósito revelado pelo Senhor Deus aos homens. Desde que este depósito sofra detrimento, as referidas tentativas já não realizam a obra de Deus, mas procuram soluções ou adaptações às medidas dos homens, soluções estas que não podem merecer o apreço e o respeito que só convém à Palavra de Deus. “Os mistérios de Deus são mais dignos de fé do que as soluções dos homens”.

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de Hans Küng

¹ Isto é, reduz os artigos da fé a proposições que não correspondem a quanto a Revelação Divina ensina a respeito.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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