Reflexões de um Bispo em fim de mandato

Com 33 anos de Bispo de Jequié e 75 anos de idade, estou aqui esperando a chegada de um novo Bispo. Ainda falta arrumar muita coisa para preparar o futuro, mas é hora também de voltar um olhar ao passado.

A Diocese começou numa situação de calamidade pastoral:  Para 400 000 habitantes, apenas 13 padres: 4 capuchinhos, 5 passionistas, 2 padres espanhóis do IEME. Padres diocesanos brasileiros apenas dois, seminarista nenhum. A paróquia de Maracás, por exemplo, tinha 5000 km², 50 000 habitantes, cinco municípios, para um só padre.

Numa situação assim, o que fazer? Reclamar contra o celibato que muitos acusam de ser culpado pela falta de padres? Nos encontros de formação, os jovens perguntam: Por que é que os padres não casam? Às vezes respondo com uma brincadeira séria: Renunciamos a ter esposa e filhos para ajudar os outros a casar melhor.

         Se eu fosse Papa, ficaria preocupado com a exigência do celibato para os padres. Que bom que sou um simples bispo do interior da Bahia, para sorte minha e da Igreja. Assim posso caminhar confiante, com fé na missão que Pedro recebeu com as chaves pesadas da responsabilidade de manter a Igreja unida e confirmar os irmãos na fé.

O problema da falta de padres e das faltas de padres para a Igreja e para o mundo não se resolve com a eliminação da exigência do celibato. A igreja anglicana tem padres e bispos casados e mulheres ordenadas, mas está numa crise pior que a igreja católica.

Alguém é tão ingênuo de pensar que os padres casados seriam todos exemplos de vida como maridos e pais? Seriam sempre os primeiros a praticar o que pregam aos outros? Penso que a renovação da Igreja não passa pela diminuição das exigências, mas pelo aumento da disponibilidade na disposição de aceitar os sacrifícios inerentes à missão.

Isso vale também para as dificuldades com a formação de jovens na fé e na moral. Não adianta querer atrair a juventude com um evangelho adaptado à mentalidade atual do egoísmo que procura vantagem em tudo, do comodismo que foge do esforço pessoal, do consumismo que não quer perder nada que possa comprar.

A renovação da Igreja no seu serviço à humanidade inteira depende muito dos padres, mas depende também dos leigos, de homens e mulheres fiéis e dedicados à missão de primeiros educadores dos filhos, de profissionais e políticos honestos e competentes.

Não adianta querer consertar o mundo com jovens que protestam contra o sistema aí, mas não se dedicam aos estudos para preparar-se para fazer a sua parte para melhorar o seu pedaço, e não levam a sério o namoro como preparação para o convívio familiar. Como esperar que um político seja fiel na sua administração, se não é fiel à esposa?   Se um pobre tem uma segunda mulher ou se entrega ao vício da bebida ou de drogas piores, como é que os filhos poderão sair da miséria?

A vocação para o serviço de padre tem muito a ver com o conselho de Jesus ao jovem rico: Se queres ser meu discípulo, deixe tudo para me seguir. Não podemos ignorar a proposta de Jesus de deixar até esposa e filhos (que podia ter) para ser um discípulo que tem a coragem de colocar sua vida inteira à disposição do Senhor.

O texto original fala em odiar até a si mesmo, mas o sentido evidente está na direção do mandamento de amar a Deus acima de tudo. Em Lc 14,33 temos tudo resumido: Quem não renunciar a tudo que tem, não pode ser meu discípulo.

Se todos os padres e bispos não tivessem nenhum apego aos bens deste mundo, não faltariam jovens generosos dispostos a seguir seus exemplos. Se muitos jovens ainda não se decidiram a dedicar sua vida à realização de um grande ideal, é porque ainda não sabem o que querem.  Ainda não descobriram o que vale a pena querer.

A caminhada da Diocese de Jequié na paciência da obediência à Igreja pode mostrar que é possível aumentar o número de padres sem fazer do sacerdócio uma carreira, um ganha-pão qualquer.

A Diocese foi criada em 1979, com apenas dois padres brasileiros e sem seminaristas. Em tal situação era necessário dar prioridade à formação de padres. Agora temos padres residentes em todas as 35 paróquias, das quais 22 criadas por mim. Foram construídas perto de cem igrejas e capelas pelas paróquias. Costumam estar cheias aos domingos, apesar da saída de muitos católicos para outras igrejas.

Para o surgimento de vocações foram importantes os grupos e movimentos de jovens e os encontros tipo CURSILHO e TLC no Centro de Treinamento de Líderes construído em 1980 com ajuda do ADVENIAT da Alemanha e do FASTENOPFER da Suiça.

Levamos oito anos para chegar à primeira ordenação. Nos 25 anos seguintes pudemos ordenar mais 51 padres, mantendo sempre o princípio de não recusar candidatos por falta de dinheiro para custear os estudos. Dos nossos padres diocesanos atuais, apenas um não foi ordenado por mim.

Com o número crescente de seminaristas foi necessário completar os recursos da Diocese com a aposentadoria do Bispo e com doações pessoais de amigos, do FIDEI DONUM e da DIOCESE DE ST GALLEN da Suiça, além de colaborações da KIRCHE IN NOT da Alemanha. Parte dos recursos pessoais ficou para plantar uma pequena floresta de árvore NIM na propriedade da Diocese no sertão de Manoel Vitorino.

Poucos ainda percebem a importância do meu novo método de irrigação para o futuro da Diocese e do sertão, para a proteção do meio ambiente com reflorestamento e com agricultura orgânica. A plantação de pequenas florestas pode melhorar bastante a vida do homem do campo. O problema é convencer o povo da roça a plantar árvores que levam anos para começar a produzir.

Por muitos anos contamos com a colaboração valiosa de até oito padres FIDEI DONUM da Espanha. Eles depois passaram em renovado espírito missionário para Dioceses mais necessitadas na Bahia e na Amazônia.

Reconheço que em outros campos ainda fizemos pouca coisa organizada pela Diocese. Aos que me criticam por dar tanta prioridade à formação de padres na destinação dos recursos financeiros, respondo que um padre é mesmo muito caro. São sete anos de residência no seminário para o estudo de filosofia e teologia. Ao todo, um padre custa setenta mil Reais à diocese, cerca de cem salários mínimos. Mas tenho certeza que o dinheiro não podia ser aplicado melhor.

Conseguindo formar um padre bom para uma paróquia, faço para o povo muito mais do que faria com a distribuição do dinheiro aos pobres. Aprender a viver como cristão que obedece aos mandamentos de Deus na vida pessoal e no convívio familiar é mais importante para melhorar de vida que receber esmolas. Mas o meu argumento sobre o valor do padre também para a vida terrena do povo só vale para padres dispostos a colocar o bem comum e os interesses da comunidade acima do seu interesse pessoal.

Meu último ano como bispo foi o mais complicado. Padres com problemas de saúde e outros. Alguns descontentes com o bispo. Quando surgem doenças e crises existenciais com sintomas de depressão, fica difícil distinguir entre causas e efeitos.

Muitos condenam um padre que abandona o serviço pastoral.  Sua coragem anterior de aceitar desde jovem as exigências da missão do sacerdote e dedicar os melhores anos da vida ao estudo da teologia e ao serviço do Povo de Deus, tudo isso não conta mais nada aos olhos dos seus julgadores.

Não adianta culpar o celibato pela falta de padres e pela desistência de alguns, mesmo que a causa imediata possa ter sido a falta de firmeza na hora de surgir alguma paixão. Padres são feitos do mesmo material dos outros. Mesmo assim, maior é a proporção de homens casados levados por uma nova paixão a abandonar esposa e filhos.

Diante de comportamentos inadequados e desistências de alguns, muitos pedem um rigor maior nos critérios de admissão ao seminário. Reconheço que no começo, diante da situação de calamidade, numa diocese de trinta mil habitantes para cada padre, era muito grande a pressão para aceitar quem viesse com um mínimo de disposição. Por outro lado, se quisesse ter a garantia de ter apenas padres santos, não podia ordenar ninguém. Entre os que o próprio Jesus escolheu a dedo, um se tornou traidor.

Tenho deixado os padres muito à vontade. Isso funciona bem com padres e líderes leigos conscientes da sua missão, que não precisam de incentivos e controles para agir. São maioria, mas reconheço que muitas vezes faltou presença maior do bispo.

Vejo, sem inveja, que temos padres mais organizados que o bispo, mais espirituais, melhores pregadores. Vou deixar uma boa herança de padres à disposição do  bispo que vier, graças a Deus. Espero que o sucessor possa fazer valer mais sua autoridade de bispo, quando for preciso, sem ser autoritário demais.

Coisa urgente a melhorar por ele, com a colaboração dos padres, é a administração diocesana e paroquial. Fiz teologia em Roma, longe no tempo e no espaço da realidade pastoral atual. Iniciei o meu trabalho de bispo ainda no tempo do Código de Direito Canônico antigo que me parecia complicado demais. Confesso que não me esforcei para conhecer as minúcias do Direito Canônico. Mais complicadas ainda são as leis mutantes que temos no direito civil no Brasil, ao ponto que até os maiores juristas divergem na interpretação e na aplicação de tantas leis.

O nome BISPO vem do latim EPISCOPUS, que significa supervisor. No entanto, nunca me senti como diretor de empresa que precisa supervisionar os empregados para que trabalhem direito.  Ainda bem que a maioria dos padres não precisa de fiscal.

Como primeiro Bispo da Diocese deveria cuidar melhor para organizar tudo de acordo com as leis da Igreja, pelo menos com o novo Código que veio cinco anos depois. Confesso que o novo Bispo vai ter trabalho para colocar em dia muitas coisas na diocese e nas paróquias.

Ao chegar o dia de deixar o ofício de Bispo, ando preocupado com o futuro do mundo e dos jovens de hoje. Do jeito que a desordem avança, o mundo vai precisar de mais e mais prisões e policiais para manter um mínimo de ordem na confusão. Como levar a luz do evangelho a uma juventude que parece estar em outra? Forças sinistras trazem uma conotação pejorativa a tudo que tem cheiro de moral. A mentalidade dominante apresenta os mandamentos de Deus de maneira muito distorcida para não incomodar ninguém na sua maneira de viver.  Acabo de ouvir alguém cantar: Amar não é pecado.

Isso deixa uma impressão totalmente errada dos fundamentos da moral, como se a Igreja ensinasse que amar seria pecado. O pecado neste campo é confundir o amor com sexo, é não ter amor suficiente para dedicar-se à construção de um futuro melhor para todos. Pecado é o egoísmo que procura fazer do outro um instrumento de prazer.

A Igreja ainda precisa aprender a fazer-se entender pelos jovens marcados por um ambiente desligado de Deus. Em vez de dizer: Não faça isso porque é pecado, não faça aquilo porque será castigado, precisamos tentar fazer entender que Deus quer apenas o que seja melhor para nós. Os mandamentos são orientações para acertar os passos no caminho para um futuro pessoal melhor e para um convívio mais feliz. Não são contra o amor que é a chave de tudo. Se todos aprenderem a tratar os outros como querem ser tratados, a vida será melhor para todos. Quanto mais surgirem cristãos obedientes a Deus, menos o mundo vai precisar de policiais e prisões.

Dom Cristiano Krapf

Fonte: Cultura Católica

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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