Quando foi escrito o Evangelho segundo Mateus?

evangelho-de-Mateus

Em síntese: O Prof. Carsten Peter Thiede, de Paderbom (Alemanha), julga ter identificado em 1994 três fragmentos papiráceos de Mateus 26, que ele data de meados do século I. Para chegar a tal datação, o pesquisador se serviu da paleografia: a escrita dos três fragmentos é semelhante à de outros manuscritos gregos da primeira metade do século I; caiu em desuso pouco depois do fim do governo de Pôncio Pilatos em 36. A conclusão do Prof. Thiede, caso seja verídica, vem confirmar que os Evangelhos fazem uso fiel à pregação de Jesus, pois foram redigidos a breve intervalo da Ascensão do Senhor (ao menos redigidos em parte). – O assunto despertou vivo debate entre os estudiosos.

A revista Time, em sua edição de 23/01/95, pág. 41, dá notícia da descoberta de três fragmentos gregos do Evangelho segundo Mateus, que têm suscitado debates, pois, como se diz, fazem recuar para mais perto de Jesus a data de redação dos Evangelhos. Donde o título do artigo: “A Step closer to Jesus? Na expert claims hard evidence that Matthew’s Gospel was written while eyewitnesses to Christ were alive (Um Passo mais Perto de Jesus. Um perto professa nítida evidência de que o Evangelho de Mateus foi escrito enquanto ainda viviam testemunhas oculares de Cristo”).

Nas páginas subsequentes vamos explanar o teor e o significado da notícia.

A DESCOBERTA

1. Estão em foco três pequenos fragmentos, do tamanho de selos do correio cada qual, apresentam dez linhas fragmentadas do capítulo 26 do Evangelho segundo S. Mateus. Foram descobertos pela primeira vez em Luxor (Egito) no ano de 1901 pelo capelão inglês que lá vivia, o Rev. Charles Huleatt. Foram doados à biblioteca do Magdalen College de Oxford (Inglaterra). O Ver. Huleatt morreu por ocasião do grande terremoto da Sicília em 1908, sem ter deixado informações sobre o pano de fundo de sua descoberta, que ele também não parece ter divulgado. O fato é que até 1953 nem sequer haviam sido publicadas fotografias desses fragmentos. Na Espanha existem dois outros fragmentos do mesmo documento, que, como se crê, contêm secções de Mateus cap. 3 e cap.5.

O fragmentos da biblioteca do Magdalen College foram inicialmente tidos como oriundos no ano 200 aproximadamente, como aliás 37 outros papiros do Novo Testamento, existentes no começo deste século, eram datados dos séculos II e III. Esta hipótese foi posta em xeque quando em 1994 o Prof. Carsten Peter Thiede, Diretor do Instituto de Pesquisas Básicas Epistemológicas, de Paderbom (Alemanha), visitou Oxford e examinou minuciosamente os três manuscritos da biblioteca do Magdalen College.

As conclusões do Prof. Thiede datavam esses fragmentos do século I ou, mais precisamente, do ano 70 ou até mesmo de anos anteriores a 70. O seu argumento principal era deduzido do tipo de letra utilizada pelo escritor, trata-se de caracteres verticais, comuns aos manuscritos gregos da primeira metade do século I; após os tempos de Cristo (27-30) tal tipo de letra começou a cair em desuso. Verdade é que o Prof. Thiede reconhece que a datação de manuscritos é coisa assaz difícil, o método do Carbono 14 não pôde ser aplicado no caso, porque destruiria os pequenos fragmentos em vez de os identificar. Thiede valeu-se então da paleografia comparativa, segundo a qual um manuscrito sem data pode ser datado pelo confronto com outros manuscritos de data segura (ou relativamente segura); no caso, o Prof. Thiede tomou como referenciais alguns manuscritos gregos descobertos em Qumran junto ao Mar Morto, em Pompei e Herculano (Itália) e que foram reconhecidos recentemente como textos do século I.

Segundo os princípios de sua teoria, o Prof. Thiede poderia datar o Evangelho segundo Mateus de poucos erros após o governo de Pôncio Pilatos, que terminou em 36. Preferiu, porém, uma data um pouco mais tardia. Até os nossos dias, pode-se dizer que um dos pontos cardeais para assinalar a data de redação de Mateus era a tese de que o evangelista supõe o Templo de Jerusalém destruído em 70 d.C.; todavia essa datação mesma não era unanimemente professada pelos críticos; Donald Hagner, por exemplo, professor do Fuller Seminary, da Califórnia, tende a uma data anterior a 70 após ter levado em conta exata todos os dizeres de Mateus relativos ao Templo.

As conclusões do Prof. Thiede suscitaram surpresa e celeuma. Caso sejam verídicas, confirmam, a novo título, a tese que afirma a fidelidade histórica dos Evangelhos; Mateus terá escrito quando ainda havia várias testemunhas oculares da vida e da pregação de Jesus.

Leia também: 21/09 – São Mateus

O Evangelho de São Mateus e o fim do mundo

Os Evangelhos são verdadeiros?

2. Os pesquisadores se dividiram frente à descoberta feita pelo Prof. Thiede. Houve quem afirmasse ser ele “o homem que pode transformar nossa compreensão do Cristianismo” (assim o jornal TIMES de Londres). O Professor sueco Harald Riesenfeld, especialista do Novo Testamento, recomendou o método de trabalho do Prof. Thiede e exprimiu o receio de que os estudiosos da Bíblia se fechem à evidência, da descoberta por causa de suas premissas literárias, filológicas e históricas. Um linguista clássico, como o Prof. Urich Victor, da Humbold Universidade da Alemanha, observou com certa aspereza que as conclusões de Thiede põem em questão todo o sistema teológico existente. “This upsets the whole theological establishment”. Os teólogos liberais, acrescentou U. Victor, “puseram de lado, há muito tempo, todas as proposições que contradigam aos seus princípios, julgando serem tradições tardias, muito distanciadas de Jesus”.

Apesar do apoio de abatizados colegas, o Prof. Thiede tem encontrado certo ceticismo da parte de vários outros. O Prof. Graham Stanton, do King’s College, de Londres, declarou, com certo desdém, que o artigo de Thiede “não merece séria discussão”. O Prof. Paul Achtemeier, americano, editor do Harper’s Bible Dictionary, afirmou que “ficará muito surpreso se algum dia a hipótese de Thiede vier a ser reconhecida como fidedigna”.

3. Como se vê, o debate está aberto. Pode-se notar, porém, a evolução que se vem produzindo nos estudos bíblicos no século XIX os críticos julgavam que os Evangelhos foram redigidos tardiamente até o século II adentro. Todavia o progresso da paleografia trouxe à tona fragmentos de papiros que contribuíram para se diminuir o intervalo entre os evangelistas e Jesus; este passou a ser calculado não na base de premissas filosóficas, mas sim na base da evidência concreta do material escrito. Assim:

a) Na década de 1930 o pesquisador inglês C. H. Roberts descobriu o mais antigo dos manuscritos até então conhecido, era um pequeno fragmento de 8,9 cm por 5,8 cm; de aparência insignificante, foi comprado com outros papiros no Egito em 1920; numa das faces desse fragmento se encontra o texto de Jo 18, 31-33, e na outra face o de Jo 18, 37s. Está guardado no John Rylands Library de Manchester. Os papirólogos atribuíram as letras desse fragmento aos primeiros decênios do século II, mais precisamente ao ano de 125. As consequências deste achado foram de vasto alcance: o papiro fora encontrado no Egito, a mais de 1.000 km da região onde fora escrito o autógrafo de João; vê-se então que no Egito se lia o Evangelho de João poucos decênios após a morte do Apóstolo. Consequentemente os Evangelhos de Mt, Mc e Lc, anteriores ao de João, foram reconhecidos, como novo vigor, como obras da segunda metade do século I.

b) Em 1972 os estudos bíblicos foram sacudidos por nova descoberta: na Gruta 7 de Qumran, a N. O. do Mar Morto, foram encontrados pelo Pe. O’Callagliam S. J. papiros do Novo Testamento, entre os quais um fragmento de Marcos (6, 52-53), dito 7Q5; este foi atribuído ao ano de 50, conforme cuidadosos estudos do descobridor. Todavia esta conclusão foi tida como precipitada e inaceitável por outros especialistas.

c) O caso parecia encerrado pela crítica contestatária, quando em 1984 o professor C. P. Thiede, de Berlim, retomou os estudos, debruçando-se sobre os papiros originais em Jerusalém; em conclusão, confirmou a sentença de O’Callaghan; os resultados de suas pesquisas estão expostos no livro die ãlteste Evangelien-Handschrift? Das Markus-Fragment von Qumran und die Anfãnge der schriftichen Uerberlieferung des Neuen Testaments (Wuppertal 1986); na tradução italiana dessa obra, p. 42, lê-se:

“Assim resumindo, foram aduzidas todas as provas positivas em favor da exatidão da datação; além disto, foram eliminadas todas as possíveis objeções. Na base das regras do trabalho paleográfico e da crítica do texto, é certo que 7Q 5 é Mc 8,52-53, o mais antigo fragmento conservado de um texto do Novo Testamento, escrito por volta de 50, e certamente antes de 68”.

d) Além destes precedentes, em 1994 entrou no cenário da discussão também o material descoberto pelo Prof. C. P. Thiede.

Estes dados vão corroborando a tese de que os Evangelhos foram redigidos no século I. A redação não terá sido realizada em poucos meses, como ocorre com um livro moderno, mas haverá sido feita paulatinamente; devem ter surgido primeiramente “folhas volantes” que narravam parábolas, milagres, a Paixão de Jesus (…). Essas “folhas” terá sido agrupados em seqüência lógica, dando o livro que chamamos “Evangelhos”.

A HISTÓRIA DO TEXTO DE S. MATEUS

Nos últimos decênios tornou-se comum a seguinte concepção relativa ao texto de S. Mateus.

O primeiro evangelista a escrever terá sido Mateus, o cobrador de impostos, acostumado a redigir e calcular, dispondo suas idéias em ordem lógica. Terá escrito em aramaico na Palestina por volta de 50.

O texto de Mateus tinha muita autoridade. Foi levado para fora da Palestina. Terá servido de modelo ao
Evangelho de Marcos escrito em Roma na década de 60, e Marcos, por sua vez, terá servido de referencial a Lucas, que escreveu em Antioquia na década de 70.

O texto aramaico de Mateus teve de ser traduzido para o grego, pois esta era a língua usual do Império greco-romano. E Papias quem, por volta de 130, escreve:

Mateus, por sua parte, pôs em ordem os lógia (dizeres) na língua hebraica, e cada um depois os traduziu (ou interpretou) como pôde (ver Eusébio, História da Igreja III 39,16).

O hebraico de que fala Papias, é, na realidade, o aramaico, língua corrente entre os judeus no tempo de Cristo. – Das várias traduções de Mateus, uma foi reconhecida como oficial e canônica. É a única que hoje temos, visto que as demais traduções se perderam. A data de origem do texto grego de Mateus hoje existente é o ano de 80 aproximadamente; não se trata de mera tradução, mas de um texto revisto e retocado para ficar mais claro do que o original.

Dentro desse esquema pergunta-se: onde colocar os três fragmentos de Mateus 26 identificados pelo Prof. Thiede? – É possível que se trate de uma das traduções gregas do texto aramaico que foram sendo feitas entre 50 e 80. Essas tradução haverá sido realizada no Egito ou em outro ponto do Império Romano? É difícil dizer algo segurança a tal propósito. Como quer que seja, a descoberta do Prof. Thiede (sujeita a ser discutida) corrobora a tese que o Evangelho segundo Mateus, ao menos em muitas de suas passagens mais antigas, vem a ser o eco primitivo da pregação dos Apóstolos e, consequentemente, do Senhor Jesus.

1 É de notar que existem cerca de 5.400 manuscritos antigos do Novo Testamento – fato único no setor da paleografia. As outras obras da antiguidade têm base em poucos e tardios manuscritos.

1 C.H. Roberts, Na Unpúblished Fragment of the Fourth Gospel in the John Rylands Library. Manchester 1935.

1 Há quem veja nessa coletânea de lógica (dizeres) de Jesus a tal fonte (Guelle) perdida, de que fala o artigo seguinte deste fascículo.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 398 – Ano: 1995 – p. 290

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.