Qual o sentido do casamento civil? – Parte 2

civil

1.3. Do fim do século XVIII aos nossos dias

A secularização explícita do casamento foi-se tornando fato concreto a partir do último quarto do século XVIII, entrando em países tradicionalmente católicos. Para tanto, alegavam os pensadores que a única instância competente em matéria de contratos é o poder secular.

Na França, foi decisiva a Revolução Francesa de 1789, com os acontecimentos que a cercaram. A nova Constituição de 1791 rezava em seu título II, art. 7: “A lei só considera o casamento como contrato civil”. O princípio da secularização estava estabelecido; as legislações sucessivas o aplicariam nas minúcias da realidade. Napoleão Bonaparte (1799-1814) introduziu a noção de matrimônio meramente civil em seu famoso Código de Napoleão (título V), que serviu de modelo à Constituição de numerosos países europeus e não europeus. Na França a lei chegou a proibir aos sacerdotes abençoar no foro religioso os cônjuges que não se tivessem casado previamente em instância civil (Código Penal, artigos 199 e 200). É de notar, porém, que, mesmo após a secularização do matrimônio, o Governo Revolucionário francês instituiu um ritual de matrimônio que pretendia fazer as vezes de Liturgia Católica. Com efeito; movida por Robespierre, a Convenção votou um decreto cujo artigo 7º previa a Festa do Amor conjugal. Um decreto do 3º Brumário do ano IV instaurou a festa nacional dos Esposos, e a lei do 13º Fructidor do ano VI, que organizava as festas decadárias, tornou obrigatória a celebração do casamento em decadi.

No Império Austríaco o monarca D. José II (1780-1790) tornou-se o porta-vos e executor das idéias regalistas, também ditas “febronianas” (pois tiveram em Justino Febrônio, + 1790, um de seus mais ardentes mentores em território alemão). O monarca concebeu, entre outras coisas, o programa de fazer do matrimônio “uma realidade principalmente civil e acessoriamente religiosa”, como escreveu o Vice-Chanceler Cobenzl. Consequentemente, em 1781 promulgou um edito que conferia aos bispos o direito de conceder dispensas de impedimentos matrimoniais por autoridade própria; por decretos de 1783 e 1784 foram reservadas ao Estado todas as questões concernentes ao matrimônio; o sacerdote, ao abençoar o casamento, estaria exercendo uma função estatal.

Na Toscana, semelhante reforma foi empreendida pelo Grão-Duque Leopoldo II em 1786. O Bispo de Pistoia, Cipião de Ricci, professava idéias regalistas; por isto, o Sínodo de Pistoia em 1786 pediu ao Grão-Duque que decidisse autoritariamente sobre todos os assuntos relativos ao matrimônio.

Uma das expressões mais típicas do novo conceito de matrimônio “contrato secular” é a definição devida ao filósofo Immanuel Kant em 1797: “O matrimônio é a união de duas pessoas de sexo diferente que entre si outorgam direito recíproco sobre o seu corpo para o resto da vida” (Metafísica dos costumes, § 24).

Neste texto, Kant ainda conserva a cláusula “para o resto da vida”. Todavia a noção de contrato acarretaria naturalmente a de rescindibilidade ou dissolubilidade do matrimônio.

Em suma, a tendência secularizante foi-se difundindo cada vez mais, encontrando eco nas Constituições de vários povos.

Nos países em que, no século XIX, foi declarada a separação da Igreja e do Estado (como no Brasil, por exemplo), a situação constrangedora tornou-se menos penosa para a Igreja. Com efeito, o Governo, estabelecendo o matrimônio civil e suas modalidades, passou a ignorar o matrimônio sacramental, em vez de pretender subordinar os bispos e as celebrações da Igreja à legislação do Estado. Em tais países, desde que aí reine a liberdade religiosa, a Igreja propõe aos fiéis a sua doutrina e a sua legislação sobre o matrimônio e atende aos fiéis que a procuram, sem sofrer entraves por parte do Governo.

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A Igreja Católica não se opõe ao matrimônio civil, pois que – dá fundamento aos efeitos civis do matrimônio sacramental; – atende à situação das pessoas que, não sendo batizadas na Igreja Católica, não podem pedir o sacramento do matrimônio. Em tais casos, o matrimônio civil legitimamente contraído estabelece entre os consortes o vínculo natural do casamento, que é por si indissolúvel e merece pleno respeito.

São palavras do Papa Leão XIII:

“Ninguém contesta ao Estado a função que lhe pode competir, de adaptar o matrimônio ao bem comum no plano temporal de estipular os efeitos civis do casamento segundo a justiça” (Carta Ci siamo, Acta, t. l. p. 239).

Na encíclica Arcanum diz o mesmo Pontífice:

“Nunca a Igreja legislou a respeito do casamento para levar em conta as condições da sociedade e dos povos; mais de uma vez ela suavizou suas leis na medida do possível, quando havia motivos justos e importantes para isso. Ela também não ignora nem contesta que o sacramento do matrimônio está voltado para a conservação e a propagação da sociedade humana e, por isto, tem relacionamento ora mais, ora menos estrito com os interesses humanos… no foro civil; é sobre esses interesses do foro civil que os chefes de Estado promulgam suas leis” (Acta t. ll, p. 34).

Segundo estas palavras, é inegável a competência do Estado no tocante aos efeitos civis do matrimônio. Mas o casamento mesmo dos fiéis católicos deve ficar sujeito unicamente à legislação da Igreja: “O casamento sendo por si mesmo algo de sagrado, torna-se lógico que seja regrado e organizado não pelo poder do Estado, mas pela divina autoridade da Igreja, única instância competente em se tratando de coisas sagradas” (enc. Arcanum, t. II, p. 23).

2. A Igreja Católica pede mesmo aos fiéis católicos que, antes de contrair o enlace religioso, se casem civilmente a fim de que o seu casamento sacramental tenha o apoio das leis civis. Via de regra (admitem-se exceções), na atual ordem de coisas a Igreja não permite o casamento religioso sem o devido acompanhamento do enlace civil.

3. Todavia importa dizer: para um católico batizado na Igreja Católica não há outra forma legítima de contrair matrimônio senão a sacramental. O casamento civil nem supre em absoluto, o sacramento do matrimônio; pode sim, anteceder-se ou seguir-se a este, nunca, porém, o substituir. O matrimônio civil é instituição relativamente recente (data de fins do século XVIII), e se baseia na distinção – que na prática é inexistente para os católicos – entre contrato e sacramento. Para a Igreja, o contrato matrimonial não pode ser equiparado a um contrato de compra, venda ou aluguel, pois ele instaura a maneira como dois cristãos hão de caminhar para Deus e santificar-se mutuamente num intercâmbio íntimo de valores e aspirações. A vida conjugal vem a ser uma modalidade da vida cristã, que não é senão a vivência do sacramento do batismo; por isto ela é marcada por um sacramento próprio (matrimônio) – sacramento que, como dizem os teólogos, é permanente, pois dura por quanto tempo dura a matéria do sacramento, ou seja, a realidade corporal dos dois cônjuges.

A consciência destas verdades levou o magistério da Igreja a reiterar sua doutrina diante do processo de secularização do matrimônio na Idade Moderna. Seguem-se palavras do Papa Pio IX cujo teor é assaz forte, mas estritamente verídico:

“É dogma de fé que o casamento foi elevado por Nosso Senhor Jesus Cristo à dignidade de sacramento. A doutrina da Igreja ensina que o sacramento não consiste em qualidade acidental acrescentada ao contrato, mas pertence à própria essência do matrimônio, de tal sorte que a união conjugal entre cristãos só é legítima no sacramento, fora do qual há apenas concubinato”.

Na alocução Acerbisimum vobiscum de 27/09/1852, Pio XI se referiu de novo ao assunto:

“Entre fiéis não pode haver casamento que não seja ao mesmo tempo, sacramento; conseqüentemente, entre cristãos qualquer outra união do homem e da mulher fora da união sacramental, mesmo contraída em virtude da lei civil, não é outra coisa senão vergonhoso e pernicioso concubinato, peremptoriamente condenado pela Igreja. Por conseguinte, o sacramento jamais pode ser separado do contrato matrimonial; toca tão somente à Igreja o poder de regrar tudo que, de uma maneira ou de outra, pode referir-se ao casamento”.

Destas palavras de Pio IX depreende-se que:

a) para o católico, não existe matrimônio no plano meramente natural humano ou civil, ao qual o sacramento sobrevenha como complemento. Mas existe tão somente o matrimônio sacramental, que eleva o contrato natural entre os cônjuges a nova dignidade;

b) na clássica linguagem da Igreja, deve-se dizer que vive em concubinato o católico que esteja unido a pessoa de outro sexo sem o sacramento do matrimônio. O enlace meramente civil não atenua esta realidade; apenas serve para dar-lhe efeitos civis.

Leão XIII ainda escreveu aos bispos das províncias eclesiásticas de Turim, Verceil e Gênova, em 1º/06/1879:

“Desconhece os princípios fundamentais do Cristianismo e, acrescentamos, as noções elementares do direito natural quem afirma o casamento é uma criação do Estado e nada mais do que um contrato comum ou uma associação de erro interesse civil”.

Tais dizeres expõem com suficiente clareza o pensamento da Igreja a respeito do matrimônio civil: seja valorizado na medida em que atenda aos interesses civis de uma sociedade honestamente organizada; nunca, porém, tomará o lugar do sacramento do matrimônio para os fiéis católicos.

A título de complemento, pode-se ainda notar:

O cânon 1090, art. 1º estipula o seguinte: nos casos em que duas pessoas católicas devidamente habilitadas não tenham sacerdote que lhes possa abençoar o casamento segundo a forma canônica, podem contrair matrimônio entre si perante testemunhas, desde que se preveja prudentemente que tais condições hão de perdurar por trinta dias.

Tal caso ocorre por vezes em territórios de missão ou no interior do Brasil. O próprio Direito Canônico permite então o casamento sem a presença de sacerdote delegado, mas mesmo assim estabelece as condições para que o casamento assim celebrado seja válido como sacramento; requerem-se: 1) ausência, por trinta dias, de sacerdote delegado; 2) presença de ao menos duas testemunhas; 3) habilitação canônica dos dois nubentes.

Tal tipo de casamento não pode ser identificado com um contrato meramente civil.

Para ulteriores estudos:

LE BRAS, G., Mariage, em Dictionnaire de Théologie Catholique IX/2, Paris 1927, cols. 2044-2317.

¹ Por “regalistas” se entendem os pensadores que favoreceram as reivindicações dos reis (da França, da Áustria, da Espanha, de Portugal…) e do Duque da Toscana, que pretendiam ingerir-se em assuntos de Direito Canônico, contrariando a autonomia e a missão do Papado. Eram defensores de “Igrejas Nacionais”, como seria a Igreja Galicana, diretamente subordinada ao rei.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 258 – Ano 1981 – Pág. 320

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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