Pregador do Papa: resposta cristã ao cientificismo ateu – Parte 1

CIDADE DO
VATICANO, domingo, 5 de dezembro de 2010 (ZENIT.org) – Apresentamos a primeira
pregação do Advento pronunciada na última sexta-feira pelo Pe. Raniero Cantalamessa
OFM cap, pregador da Casa Pontifícia, diante de Bento XVI e da cúria romana,
sobre “A resposta cristã ao cientificismo ateu”.

Primeira
Pregação do Advento

“Quando
olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste:
Que coisa é o homem?” (Sal 8, 4-5)

A resposta
cristã ao cientificismo ateu

1. A tese do cientificismo ateu

As três
meditações deste Advento 2010 querem ser uma pequena contribuição à necessidade
da Igreja que levou o Santo Padre Bento XVI a instituir o Conselho Pontifício
para a Promoção da Nova Evangelização e escolher este tema para a próxima
Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos:  Nova evangelizatio ad
cristianam fidem tradendam – A nova evangelização para a transmissão da fé
cristã.

A intenção
é identificar alguns “nós” ou obstáculos que fazem muitos países de
antiga tradição cristã “refratários” à mensagem do Evangelho, como
diz o Santo Padre no Motu Proprio com o qual estabeleceu o novo Conselho [1].
Os “nós” ou os desafios que eu pretendo levar em consideração e aos
quais eu gostaria de tentar dar uma resposta de fé são o cientificismo, o
secularismo e o racionalismo. O apóstolo Paulo classifica esses desafios como
“as muralhas e fortalezas que se levantam contra o conhecimento de Deus”
(cf. 2 Cor 10:4).

Nesta
primeira meditação examinemos o cientificismo. Para compreender o que se
entende com este termo podemos começar pela descrição feita por João Paulo II:

“Outro
perigo a ser considerado é o cientificismo. Esta concepção filosófica recusa-se
a admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são
próprias das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura imaginação
tanto o conhecimento religioso e teológico, como o saber ético e estético.”
[2].

Podemos
resumir assim a tese principal desta corrente de pensamento:

Primeira
tese. A ciência e, particularmente a cosmologia, a física e a biologia, são a
única forma objetiva e séria de conhecimento da realidade. “As sociedades
modernas, escreveu Monod, estão construídas sobre a ciência. Devem a ela sua
riqueza, sua potência e a certeza de que a riqueza e o poder ainda serão
maiores e mais acessíveis amanhã ao homem, se ele o quiser […]. Equipadas com
todo o poder, dotadas de toda riqueza que a ciência oferece, nossas sociedades
ainda tentam viver e ensinar sistemas de valores, já prejudicados pela mesma
ciência subjacente” [3].

Segunda
tese. Esta forma de conhecimento é incompatível com a fé que se baseia em
pressupostos que não são nem demonstráveis nem refutáveis

Nesta
linha, o ateu militante R. Dawkins chega ao ponto de chamar de
“analfabetos” os cientistas que se dizem crentes, esquecendo-se de
tantos cientistas mais famosos do que ele que já se declararam e continuam
declarando-se crentes.

Terceira
tese. A ciência já demonstrou a falsidade ou, pelo menos, a inutilidade da
hipótese de Deus. É a afirmação que recebeu ampla cobertura dos meios de
comunicação do mundo meses atrás, à raiz de uma declaração do astrofísico
inglês Stephen Hawking. Este, ao contrário do que já havia escrito
anteriormente, sustenta em seu último livro The Grand Design, que o
conhecimento advindo da física torna desnecessário acreditar numa divindade
criadora do universo: “a criação espontânea é a razão pela qual as coisas
existem”.

Quarta
tese. Quase a totalidade ou a grande maioria dos cientistas são ateus. Esta é a
afirmação do ateísmo científico militante, que tem em Richard Dawkins,
autor do livro God’s Delusion (Deus, um delírio), seu mais ativo propagador.

Todos estes
argumentos se revelam falsos, não do ponto de vista do raciocínio a priori ou
da argumentação teológica e da fé, mas da própria análise dos resultados da
ciência e das opiniões de vários cientistas ilustres do passado e do presente.
Um cientista do calibre de Max Planck, o pai da física quântica, diz sobre a
ciência aquilo que Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal, Kierkegaard e outros já
tinham afirmado sobre a razão: “A ciência leva a um ponto, além dele não
pode mais dirigir” [4].

Não repetirei
a refutação dos argumentos anunciados que já foi feita por cientistas e
filósofos competentes. Cito, por exemplo, a crítica pontual de Roberto Timossi,
no livro L’illusione dell’ateismo. Perché la scienza non nega Dio (A ilusão do
ateísmo. Porque a ciência não nega Deus), que tem apresentação do cardeal
Angelo Bagnasco (Edições São Paulo 2009). Limito-me a uma observação elementar.
Na semana em que a mídia espalhou a declaração acima, de que a ciência tornou
desnecessária a hipótese de um criador, eu me vi na necessidade, na
 homilia de domingo, de explicar a cristãos muito simples de uma cidade de
Reatino onde estava o erro fundamental de cientistas e ateus e  porque não
deveriam ficar impressionados com a sensação despertada por essa declaração.
Fiz isso com um exemplo que pode ser útil repetir aqui em um contexto tão
diferente.

“Existem
aves noturnas, como a coruja, cujos olhos são feitos para ver no escuro da
noite, não de dia. A luz do sol cega. Estes pássaros sabem tudo e se movem com
agilidade no mundo noturno, mas não são ninguém no mundo diurno. Vamos adotar,
por um momento, o tipo de fábulas nas quais os animais falam uns com os outros.
Suponha que uma águia faça amizade com uma família de corujas e converse com
elas sobre o sol: como ele ilumina tudo, como, sem ele, tudo iria mergulhar no
escuro e no frio, como seu próprio mundo noturno não existiria sem o sol. O que
diria a coruja? “Você mente! Nunca vi o seu sol. Nos movemos muito bem e
conseguimos alimento sem ele. Seu sol é uma hipótese inútil, não existe”.

É
exatamente isso que faz o cientista ateu quando diz: “Deus não
existe”. Julga um mundo que não conhece, aplica suas leis a um objeto que
está fora do seu alcance. Para ver Deus é necessário olhar com uma perspectiva
diferente, aventurar-se fora da noite. Neste sentido, ainda é válida a antiga
afirmação do salmista: “Diz o insensato: Deus não existe”.

2. Não ao
cientificismo, sim à ciência

A rejeição
do cientificismo não deve, naturalmente, levar à rejeição ou à desconfiança na
ciência, assim como uma rejeição do racionalismo não nos leva a rejeitar a
razão. Fazer o contrário seria um desserviço à fé, antes mesmo que à ciência. A
história tem nos ensinado dolorosamente onde nos leva uma atitude como essa.

De uma
atitude aberta e construtiva à ciência, nos deu um exemplo luminoso o novo
beato John Henry Newman. Nove anos depois da publicação da obra de Darwin sobre
a evolução das espécies, quando não poucas pessoas ao redor se mostravam
turbadas e perplexas, ele assegurava, exprimindo um juízo que antecipava o
juízo atual da Igreja sobre a não incompatibilidade da teoria com a fé
católica. Vale a pena escutar novamente trechos centrais da sua carta ao
canônico J. Walker, que ainda conservam grande parte de sua validade:

“Essa
[a teoria de Darwin] não me assusta […] Não me parece que se negue a criação
pelo fato do Criador, milhões de anos atrás, ter imposto leis à matéria. Não
negamos nem delimitamos o Criador por ter criado a ação autônoma que deu origem
ao intelecto humano dotado quase de um talento criativo; menos ainda negamos ou
delimitamos seu poder se acreditamos que Ele tenha assinado leis à matéria tais
como plasmar e construir mediante a instrumentalidade cega através de eras
inumeráveis o mundo como o vemos hoje […]. A teoria do senhor Darwin não deve
ser necessariamente ateia, que ela seja verdadeira ou não; pode simplesmente
estar surgindo uma ideia mais alargada da Divina Presciência e Capacidade… À
primeira vista, não vejo como a ‘evolução casual de seres orgânicos’ seja incoerente
com o plano divino – É casual para nós, não para Deus” [5].

Sua grande
fé permitia que Newman visse com grande serenidade as descobertas científicas
presentes ou futuras. “Quando uma enxurrada de fatos, reais ou presumidos,
surge enquanto outros já se avizinham, todos os crentes, católicos ou não, se
sentem chamados a examinar o significado destes fatos” [6]. Ele via nestas
descobertas “uma conexão indireta com as opiniões religiosas”. Um
exemplo desta conexão, acredito eu, é o próprio fato de que, no mesmo ano em que Darwin elaborava a
teoria da evolução das espécies, ele, independentemente, anunciava sua doutrina
do “desenvolvimento da doutrina cristã”. Referindo-se à analogia,
neste ponto, entre a ordem natural e física e a moral, ele escreveu: “Como
o Criador descansou no sétimo dia após o trabalho realizado e ainda hoje ele
‘continua agindo’, assim ele comunicou de uma vez por todas o Credo no
princípio e continua favorecendo seu desenvolvimento e garantindo seu
crescimento” [7].

Da atitude
nova e positiva da Igreja católica em relação à ciência é expressão concreta a
Academia Pontifícia das Ciências, na qual cientistas eminentes de todo o mundo,
crentes e não crentes, encontram-se para expor e debater suas ideias sobre
problemas de interesse comum para a ciência e para a fé.

3. O homem
para o universo ou o universo para o homem?

Mas,
repito, não é minha intenção fazer aqui uma crítica geral do cientificismo. O
que gostaria de destacar é um aspecto particular de algo que tem um impacto
direto e decisivo sobre a evangelização: trata-se da posição que o homem ocupa
na visão do cientificismo ateu.

Há agora
uma corrida entre os cientistas não crentes, especialmente os biólogos e
cosmólogos, que vai mais longe ao afirmar a total marginalização e insignificância
do homem no universo e mesmo no grande mar da vida. “A antiga aliança é
quebrada – Monod escreveu -; o homem finalmente se sabe sozinho na imensidão do
Universo do qual emergiu por acaso. Seu dever, como seu destino, não está
escrito em nenhum lugar” [8]. “Sempre pensei – afirma outro – ser
insignificante. Conhecendo as dimensões do Universo não chego a compreender
quanto o sou verdadeiramente… Somos somente um pouco de lama sobre um planeta
que pertence ao sol” [9].

Blaise
Pascal refutou de antemão esta tese com um argumento que ainda mantém seu
vigor:

“O
homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante.
Não é preciso que o universo inteiro se arme para o aniquilar: um vapor, uma
gota de água, bastam para o matar. Mas quando o universo o aniquilasse, o homem
seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque sabe que morre, e a
superioridade que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada
disso.” [10].

A visão
cientificista da realidade, junto com o homem, retira subitamente do centro do
universo inclusive Cristo. Ele é reduzido, por usar uma expressão de M.
Blondel, a “um acidente histórico, isolado do cosmo como um episódio
postiço, um intruso ou um perdido na imensidão hostil e esmagadora do
Universo” [11].

Esta visão
do homem começa a ter reflexos práticos na cultura e na mentalidade.
Explicam-se assim certos excessos do ecologismo que tendem a equiparar os
direitos dos animais e até das plantas aos direitos do homem. É sabido que
existem animais mais bem cuidados e alimentados que milhões de crianças. A
influência é sentida inclusive no campo religioso. Há formas difusas de
religiosidade nas quais o contato e a sintonia com a energia do cosmo tomaram o
lugar do contato com Deus como caminho de salvação. Aquilo que Paulo dizia de
Deus: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At. 17, 28), diz
aqui do cosmo material.

De certa
forma, trata-se do retorno à era pré-cristã como regime de vida: Deus –
universo – homem, à qual a Bíblia e o Cristianismo opuseram o regime: Deus –
homem – universo. Uma das acusações mais violentas que o pagão Celso faz aos
judeus e cristãos é a de dizer que “há Deus e, logo depois dele, nós,
desde que fomos criados por ele à sua semelhança; tudo nos é subordinado: a
terra, a água, o ar, as estrelas, tudo existe por nós e está ordenado ao nosso
serviço” [12].

Mas há
ainda uma profunda diferença: no pensamento antigo, principalmente o grego, o
homem, mesmo subordinado ao universo, possui uma ‘dignidade altíssima’, como
mostrou a obra magistral de Max Pohlenz, “O homem grego” [13]; aqui
parece que há prazer em deprimir o homem e tirar dele qualquer pretensão de
superioridade sobre o resto da natureza. Mais que “humanismo ateu”,
pelo menos a partir deste ponto de vista, deveríamos falar, no meu modo de ver,
de anti-humanismo, ou mesmo “desumanismo ateu”.

Chegamos
agora à visão cristã. Celso não estava errado em derivá-la da grande afirmação
do Gênesis 1, 26 sobre o homem criado “à imagem e semelhança de Deus [14].
A visão bíblica encontra sua mais esplêndida expressão no Salmo 8:

“Quando
olho para o teu céu, obra de tuas mãos,

vejo a lua
e as estrelas que criaste:

Que coisa é
o homem, para dele te lembrares,

que é o ser
humano, para o visitares?

No entanto
o fizeste só um pouco menor que um deus,

de glória e
de honra o coroaste.

Tu o
colocaste à frente das obras de tuas mãos.

Tudo
puseste sob os seus pés”.

A criação
do homem à imagem de Deus possui implicações de certa forma chocantes sobre o
conceito de homem que o debate atual nos empurra a trazer à luz. Tudo se baseia
na revelação da Trindade trazida por Cristo. O homem é criado à imagem de Deus,
o que significa que ele compartilha a essência íntima de Deus que é a relação
amorosa entre Pai, Filho e Espírito Santo. É claro que existe uma lacuna ontológica
entre Deus e a criatura. No entanto, pela graça, (jamais esqueçam esta
afirmação!) esta lacuna é preenchida, de modo que é menos profunda do que entre
o homem e o resto da criação.

Somente o
homem, de fato, como uma pessoa capaz de relacionar-se, participa da dimensão
pessoal e relacional de Deus, é sua imagem. O que significa que, na sua
essência, embora a um nível de criatura, é o que, no nível incriado, são o Pai,
o Filho e o Espírito Santo, em sua essência. A pessoa criada é “pessoa”
propriamente por esse núcleo racional que a torna capaz de acolher o
relacionamento que Deus quer estabelecer com ela e, ao mesmo tempo, torna-se um
gerador de relações para os outros e o mundo.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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