Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 7 – Ano 1958 – p. 288
IV. MORAL
I. E. (Rio de Janeiro): “Pode haver uma Moral
leiga, isto é, sem Deus e sem pecado?”
1. Hoje em dia tendem muitos
autores, principalmente em nome da psicanálise, a explicar o que se chama
“pecado” independentemente de Deus e religião: o pecado seria mero efeito de
metabolismo patológico; o paciente, porém, lhe atribuiria sentido religioso. A
noção de pecado é tida por esses autores como resíduo, na consciência moderna,
de antigas concepções superticiosas ou infantis. Consequentemente, dizem, o
senso e o temor do pecado devem ser combatidos em nome da higiene mental;
deveriam ser tratados no setor da psicanálise, não no da Religião; doravante
dever-se-ia ensinar uma Moral sem pecado, isto é, sem obrigação que envolva o
senso de responsabilidade do homem, Moral leiga, porque confinada ao plano
meramente biológico.
2) Diante dessas teses, que
dizer?
Não se pode negar que o
senso do pecado tenha repercussões no psíquico humano; será preciso, porém,
reconhecer que suas raízes vão além do plano meramente psicológico e
fisiológico.
Que é então o pecado no seu
sentido autêntico ou cristão?
A guisa de observação
preliminar, podem-se citar as palavras muito verídicas de Kierkegaard:
“O conceito que estabelece
diferença radical entre a índole do Cristianismo e a do paganismo, é o pecado,
a doutrina do pecado; por isto, com muita lógica, o Cristianismo julga que nem
o pagão nem o homem natural sabem o que é o pecado, e que é necessária a
Revelação para o ilustrar” (Tratado do desespero).
Com efeito. O pecado, para o
cristão, pressupõe uma verdade aparentemente desconcertante aos olhos da
natureza: existe um Deus que é Amor que se comunicou em primeiro lugar (cf. 1
Jo 4,8). Esse Deus-Amor fez o homem essencialmente destinado a aderir ao
Criador. E a voz de Deus que chama o homem a Si, está identificada com a
natureza humana, falando no mais íntimo de cada indivíduo mediante o que se
chama “a lei natural” ou “a consciência”; esta faz ouvir um ditame geral a ser
desdobrado e aplicado paulatinamente: “Faze o bem; evita o mal”.
Tal ditame e suas
conseqüências (não matar, não roubar, não maltratar o próximo, cumprir os
deveres de estado, aliviar as misérias alheias, etc.) não são produtos
contingentes de uma civilização ou de uma época, mas são normas constantes e
universais. Em última análise, constituem o reflexo da infinita santidade de
Deus manifestada pela natureza humana, santidade que é imutável. Por conseguinte,
as categorias do bem e do mal, tais como a consciência de todos os povos as
discrimina, não dependem nem da moda dos homens nem de um decreto arbitrário do
Criador, mas do Ser eterno e imutável de Deus; são a participação, dada ao
homem na retidão imutável de Deus.
É por isto que a Moral
cristã afirma haver atos humanos que põem o homem em oposição direta a Deus; a
perturbação e a melancolia que eles acarretam para quem os comete (e que
primariamente chamam a atenção do psicanalista), não são senão conseqüência da ruptura ou da
harmonia que deveria sempre existir entre o homem e seu Criador. E é a esses
atos que na linguagem cristã se dá o nome de “pecados”.
Entende-se que o pecado,
violando a tendência inata do homem a Deus, possa afetar a alma, e, mediante
esta, o corpo, causando perturbações psicológicas e somáticas. A medicina e, em
particular, a psicoterapia poderão concorrer para sanar o mal, mas não terão
senão papel complementar; aplicadas exclusivamente, ou seja, sem recurso à
Religião, jamais produzirão a cura autêntica. Quem resiste à Lei de Deus não
encontrará restauração da sua paz interior sem que se volte diretamente para o
Senhor, repudiando a infração cometida contra a Lei do Criador.
É preciso, porém, frisar que
essa Lei do Criador não é simplesmente um imperativo frio e anônimo; é, antes,
um chamado do Amor (de Deus) ao amor (do homem). O Cristianismo significa
encontro de Pessoa com pessoa, de filho com o Pai que atrai e sorri, mais do
que encontro de servo ou súdito com o Legislador que amedronta. A Lei, para o
cristão, é a necessidade de responder ao Amor que se deu ao homem. E o pecado
consiste justamente em recusar essa resposta. Isto explica que o santo, mais do
que o pecador, tenha o senso da iniqüidade; estando mais próximo de Deus, ele
compreende melhor que o pecado, em última análise, não é senão a rejeição do
Amor, rejeição que se pode dar segundo matizes variadíssimos, imperceptíveis
aos olhos de quem não tem amor apurado.
Do que acaba de ser dito,
depreende-se que não há Moral sem pecado ou meramente leiga. Na verdade, o
liame que prende o homem a Deus, não é adventício, mas constitutivo da natureza
humana; o homem só pode existir como criatura intimamente relacionada com o
Criador; consequentemente, em qualquer de seus atos ou ele se conforma a sua
natureza e, mediante esta, a Deus, ou ele se afasta de sua natureza e, mediante
esta, se afasta de Deus; é-lhe, em suma, impossível escapar a Deus.
Afirmando tais concepções, a
Moral católica não desconhece haver casos patológicos, em que a vontade e o
amor não se podem exercer com plena liberdade em virtude de deficiências
fisiológicas (o psíquico e o sobrenatural estão enxertados no corpóreo, e deste
dependem no seu modo de agir). Tais casos, na medida em que são doentios, não podem
ser julgados segundo os critérios comuns; ficam por vezes abaixo do nível da
moralidade.
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Sobre o sentido do “pecado
ofensa a Deus”, veja-se “Pergunte e Responderemos” 6/1957 qu. 2. A respeito dos casos
patológicos, cf. “P. e R.” 5/1958 qu. 6 e 7.