Pessoa e sociedade em conflito – EB

Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 474 – Ano 2001 – p.
513

 

Em síntese: Os cientistas
têm produzido embriões humanos para servirem a fim terapêuticos e científicos.
Ora o embrião já é ser humano ou pessoa. Daí o conflito entre o bem do embrião
e o bem da sociedade. O presente artigo analisa o conceito de pessoa com toda a
variedade de predicados que lhe cabem, e argumenta em prol do primado da pessoa
sobre o grupo.

A opinião pública, em nossos
dias, é colocada diante do binômio pessoa e sociedade. Com efeito; os
cientistas têm produzido embriões para finalidades sociais (cura de
moléstias…) e científicas. Põem-se assim em confronto o bem do embrião (que
já é ser humano ou pessoa) e o da sociedade; aquele deveria ceder a esta. – Ora
tal concepção não se coaduna com a doutrina cristã. Daí evidencia-se a
oportunidade de explanar o conceito cristão da pessoa e o de seu relacionamento
com a sociedade.

Começamos observando que a
sociedade se constitui de pessoas. Pessoa difere de indivíduo, no sentido de
que o indivíduo é uma unidade de qualquer tipo (irracional, inanimado…)¹;
pessoa é o indivíduo de tipo racional, humano; é o indivíduo mais marcado pela
individualidade, pois toda pessoa tem sua profundidade e seu mistério
inconfundíveis.

A pessoa é a base da
sociedade. Procuraremos, pois, examinar as notas características da pessoa
humana e a sua abertura para a sociedade.

A Pessoa Humana

Segundo São Tomás de Aquino
(+ 1274), a pessoa é “o que há de mais perfeito em toda a natureza” (Suma
Teológica l, qu. 29, art. 3). – E por quê?

1) A pessoa é um ser
inteligente, que vai descobrindo a verdade pelo raciocínio ou pelo seu pensar.
Ora, a faculdade de pensar confere enorme dignidade ao ser humano, como nota o
filósofo francês Blaise Pascal (+ 1662);

“Pelo espaço o universo me
abarca e me traga como um pontinho. Mas pelo pensamento eu abarco o universo” (Pensamentos
nº 348).

“A grandeza do homem é
grande pelo fato mesmo de que ele se reconhece miserável. Uma árvore não se
reconhece miserável” (ib. nº 397).

“De todos os corpos juntos
não se pode extrair o mais simples pensamentos. Isto é impossível, pois
pertence a outra ordem de coisas” (ib. nº 793).

A capacidade de pensar ou de
conceber noções universais, definições, e concatená-las entre si provém do fato
de que no homem existe mais do que matéria; existe um princípio vital ou alma
espiritual, que, com o corpo, forma um sujeito único de todas as ações. Assim o
homem é psicossomático. Precisamente a espiritualidade da alma humana torna o
homem “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1, 27) e confere-lhe a sua dignidade
própria.

2) Do fato de que é
racional, segue-se que o homem é livre ou tem o domínio sobre os seus atos;
pode decidir soberanamente diante de várias possibilidades à diferença dos
animais irracionais, que são determinados pelo instinto a agir de tal ou tal
modo. – Não se pode negar, porém, que o homem está exposto a manipulações
diversas, por parte da família, da escola ou da sociedade. Principalmente os
meios de comunicação de massa influenciam o comportamento da pessoa. As várias
manipulações explicam a insegurança de muitos ao optarem, e a multiplicação dos
centros de aconselhamento.

3) Se é livre, a pessoa é
responsável. Deve assumir os direitos e deveres decorrentes de suas opções; não
lhe é lícito fugir disto e atribuir sistematicamente aos outros a
responsabilidade de êxitos e fracassos.

4) Ser pessoa implica também
ter consciência: … consciência psicológica (estou lendo, e sei que estou
lendo) e consciência moral.  Em todo ser
humano, há uma voz íntima que lhe diz: “Pratica o bem, evita o mal”, princípio
básico do qual se seguem imediatamente outros: “Não mates, Não roubes, Respeita
pai e mãe…”. É a lei natural que assim se configura e que é congênita em todo
homem. Verdade é que a consciência moral pode ser abalada ou conculcada,
tornando-se aos poucos insensível, porque habituada ao mal.

5) Dada a complexidade de
sua composição psicossomática, cada pessoa é única e irrepetível; é um pequeno
mundo original, embora se possa desfigurar, tornando-se “palhaço” imitador de
outros seres humanos.

6) Toda pessoa traz dentro
de si interrogações fundamentais, pois nutre aspirações nobres que são
cerceadas por limitações várias: a fragilidade do corpo, que adoece e morre; a
fragilidade moral, que leva  a falhas ou
a incoerências de comportamento. Donde provêm essas contradições? Como podem
ser compatíveis com a dignidade do homem?

7) Mais ainda: toda pessoa,
quando começa a refletir, tende a perguntar: De onde venho? Para onde vou? Qual
o sentido da vida? Aqueles que não encontram resposta para tais indagações,
julgam que a vida é um absurdo. Facilmente são presa do medo; medo de doenças,
da velhice, do isolamento, da morte e, principalmente, do que virá após a
morte. Muitos jovens são afetados por estas questões e, na falta de resposta,
entregam-se aos prazeres momentâneos do sexo e da droga, que não raro levam ao
suicídio.

O medo só pode ser amenizado
ou superado pelo reconforto de alguém que ama. Ora o grande  amante é o próprio Deus, que criou a pessoa
humana não para a desgraça, mas para a plenitude da vida.

8) Isto quer dizer que no
ser humano há o senso religioso inato. A demanda do Absoluto ou do Bem Infinito
é espontânea em toda pessoa; esta não se entenderia a si mesma se não houvesse
a RESPOSTA CABAL para as suas congênitas aspirações ao BEM INFINITO.

9) Distinguimos pessoa e
personalidade. Pessoa  é o indivíduo
humano desde que é concebido e por toda a sua vida, independentemente de
circunstâncias. Personalidade  é a pessoa
cujas potencialidades embrionárias desabrocharam na fidelidade à Verdade e ao
Amor. Quanto mais alguém é personalidade, tanto mais é singular e irrepetível.

10) Acontece, porém, que,
para desenvolver suas virtualidades e adquirir personalidade, o ser humano
precisa de contato com os seus semelhantes. É precisamente nisto que se acha o
fundamento natural da vida do homem em sociedade.

O Fundamento da Sociedade

Nenhum ser vivo é tão
dependente dos outros, nos primeiros meses e anos da infância, como o homem. O
animal irracional, guiado pelo instinto, é muito mais seguro do que o homem no
processo de seu desenvolvimento. O homem precisa de ser adestrado para a vida
pelos ensinamentos e experiências de outros homens; cada pessoa é herdeira de
seus genitores e das gerações de seus antepassados.

Isto significa riqueza, e
não pobreza, do ser humano. Com efeito; este, criado pelo Deus bom, é, por sua
própria natureza, aberto à comunicação ou aberto a dar e receber valores
espirituais; é aberto ao tu e à sociedade, a fim de receber e transmitir
valores pessoais. O matrimônio, a amizade, a colaboração… correspondem à
necessidade da pessoa e enriquecem a esta. Principalmente a palavra e o amor
são carnais que fazem partilha e que devem contribuir para o aperfeiçoamento do
indivíduo humano.

Merece especial atenção a linguagem.
 É algo de tipicamente humano, que
fundamenta o consórcio dos homens entre si. Pela palavra o homem comunica o que
lhe é mais íntimo, e cria afinidade com outros homens; tenhamos em vista o “Sim”
dito no contrato matrimonial e o “Aqui estou” no rito de ordenação sacerdotal.
Dizemos que pessoas ligadas pelo amor ou pela amizade “falam a mesma língua”.
Em Pentecostes a multiplicação dos idiomas congregou os homens na mesma família
espiritual: a Igreja; cf. At 2, 1-11.

A importância dos meios de
comunicação social em nossos dias demonstra bem o poder da palavra acompanhada
pela imagem. A influência de peritos de imprensa, rádio e televisão é, em certo
sentido, mais penetrante do que a dos Parlamentos; em muitos casos, porém,
trata-se de influência irresponsável e deletéria.

A palavra, para ser eficaz
fator de progresso do indivíduo e da sociedade, precisa de ser dosada,
evitando-se avalanche de notícias ou informações; a multiplicação desordenada
destas pode afetar os sentimentos e as emoções, mas não permite assimilação
profunda por parte da inteligência. Esta exige, ao lado da palavra, o silêncio,
para que haja reflexões e discernimento do que lhe é comunicado. Sem reflexão
pausada, o intelecto pode assimilar o erro como sendo verdade, o sofisma como
se fosse um válido argumento.

O primado da pessoa sobre o
grupo

Embora a pessoa humana
esteja naturalmente orientada para viver em grupo ou em sociedade, ela vale por
si mesma; o homem não é simplesmente parte anônima de um todo social, mas ele
se integra dentro da sociedade para se realizar plenamente. Ao mesmo tempo,
porém, deve contribuir para que se realize o bem da sociedade ou o bem comum,
mediante os esforços de cada um dos seus membros.

O bem comum e o bem
particular estão intimamente ligados entre si. Pode-se dizer, com toda a
tradição filosófico-teológica, que, na mesma linha de valores, o bem comum (de
todos) é superior ao bem particular (de um indivíduo apenas). Mas o bem comum
só é bem na medida em que favorece a realização de todos e de cada um.

E a autoridade não é
autoridade senão enquanto está a serviço do bem comum, ou seja, a serviço de
todos e de cada um dos homens. Compete-lhe atingir o optimum social, isto é,
aquele estado de coisas em que benefícios e sacrifícios estejam de tal modo
distribuídos que a quota de sacrifícios seja a menor possível, e a de
benefícios a maior possível para todos e cada um.

Isto quer dizer ainda que,
no binômio “pessoa e grupo”, a pessoa é o fim, a meta; e a ordem social, o
meio. O homem não é para a sociedade ou para o Estado, mas a sociedade e o
Estado são para o homem. A sociedade e o Estado não se justificariam se não
promovessem o desenvolvimento ou a realização de seus membros. Ulteriormente,
tanto a pessoa como o Estado são subordinados ao Bem Supremo, que é Deus. Donde
se vê que é condenável todo tipo de absolutismo do Estado ou da  sociedade; a estatolatria significa a
inversão da escala dos valores, pois ao Estado e à sociedade toca proporcionar
a cada um dos seus membros que viva (…), e viva bem, praticando as virtudes.

Estas afirmações se derivam
genuinamente da mensagem evangélica. Antes do Cristianismo, e nos sistemas
totalitários pós-cristãos, a sociedade era o fim do homem, e o homem não
passava de mera parte ou meio; o homem não tinha valor senão enquanto
participava da vida do grupo ou era útil ao grupo. Matavam-se crianças
anormais, porque causariam dificuldades aos interesses do grupo; os doentes, os
inválidos, as mulheres, as crianças, os escravos, não tinham direitos. A moral
era simplesmente sociológica, afirmando: o que aproveita ao grupo, é bom; o que
prejudica o grupo, é mau. Tal era o critério para se definir o justo e o injusto.

Igualdade Fundamental e
Fraternidade de todos os homens

1. Visto que todos os homens
são “imagem e semelhança de Deus” por terem uma alma espiritual, são todos
fundamentalmente iguais entre si. São Paulo o dizia muito enfaticamente, tendo
em vista ainda o fato de que todos foram resgatados pelo sangue de Cristo: “Não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois
todos vós sois um só em
Cristo Jesus” (Gl 3, 28; cf. Cl 3, 11).

Todos são iguais porque são
pessoas dotadas da mesma dignidade essencial de seres racionais e livres. Donde
se vê que é antinatural e anticristã qualquer organização social que privilegie
a uns com detrimento de outros por motivo de raça, sexo, idade ou religião (…).

Notemos, porém, que a
igualdade fundamental não implica num igualitarismo antinatural, que forçaria
os indivíduos a não serem acidentalmente diferentes uns dos outros. Com efeito;
cada qual tem suas peculiaridades pessoais inconfundíveis que não permitem seja
identificado com seu vizinho; João é músico e tem que ser tratado como tal;
Pedro é esportista e merece o tratamento correspondente; Maria é artista, Elisa
tem prendas domésticas, e devem ser reconhecidas como tais. Tais desigualdades
não atingem a respectiva identidade de cada um(a) como ser racional, livre e
responsável. Se as desigualdades são tratadas como fatores discriminatórios,
tem-se um regime desumano e injusto, que merece reprovação.

Tal afirmação é outra
expressão típica da mensagem cristã. Nas civilizações pré-cristãs, como também
nos regimes totalitários pós-cristãos, as pessoas não valiam (não valem) por
serem pessoas, mas pela sua produtividade ou sua casta, sua categoria, suas
funções (…) – No mundo greco-romano só o cidadão podia participar da vida pública
e ter direito e deveres. O estrangeiro (bárbaro), o escravo, a mulher não eram
sujeitos de direitos e deveres civis.

2. Uma ulterior conclusão
deduz-se de quanto acaba de ser dito: se todos os homens são fundamentais
iguais entre si, são também todos irmãos uns dos outros. Isto não implica que
renunciem a seus predicados próprios legítimos para serem membros da família
universal; a fraternidade respeita as peculiaridades de cada qual, desde que
honestas. Esta proposição faz contraste com o modo de pensar pré-cristão;
outrora amor, fraternidade, justiça, respeito… eram limitados à raça, a nação,
ao grupo; a discriminação era a norma. Jesus o lembrava no Sermão da Montanha: “Ouvistes
o que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo” (Mt 5, 43). O
Senhor, porém, logo acrescentou: “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, fazei-o
bem àqueles que vos odeiam, abençoai aqueles que vos amaldiçoam” (Mt 5, 43s).

A civilização greco-romana
mitigou a mentalidade primitiva, tentando reunir num só império povos de nações,
culturas e línguas diferentes; os romanos, em vez de escravizar os povos
conquistados, transformavam-nos em “romanos”, fazendo-os “cidadãos romanos”,
ufanos de tal título; assim Roma sonhava com um mundo unificado ou uma
comunidade imperial sob a sua bandeira. Seriam todos “irmãos”, contando que
fossem todos “romanos”; não seria possível, porém, imaginar que fossem todos
irmãos, permanecendo cada qual na sua identidade cultural. Quando um grupo
recusava romanizar-se, como se dava no caso dos judeus, era obrigado a
permanecer à parte como um quisto ou a viver em guetos; tal povo continuava “bárbaro”,
isto é, estrangeiro, estranho, suspeito e potencialmente inimigo.

Eis as principais implicações
do conceito de pessoa, que está na origem de toda a Doutrina Social da Igreja.
Esta noção, desde o início, imprime um caráter de transcendência ao ensinamento
social cristão; afinal “a razão principal da dignidade humana consiste na vocação
do homem para a comunhão com Deus. Já desde sua origem, o homem foi convidado
para o diálogo com Deus. O homem existe somente porque Deus o criou e por
motivo de amor. Por amor é sempre conservado. E não vive plenamente segundo a
verdade a não ser que reconheça livremente aquele amor e se entregue ao Criador”
(Constituição Gaudium et Spes  nº 19).
Preserve-se tal conceituação frente às tendências que fazem do homem um peão ou
um carvão que se queima na locomotiva da humanidade, contribuindo para que esta
avance, mas desaparecendo por completo, no fogo da locomotiva.

 

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¹ Indivíduo  vem do latim individuus; significa “o que não
pode ser dividido logicamente”; é o ser concreto, básico, de qualquer espécie; é
este cão, esta flor, esta mesa (…).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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