Os mais belos sermões de Hugo de São Vítor – Parte 10

Estas palavras que
propusemos foram tomadas de Tobias. São as palavras pelas quais ele louvou o
Senhor depois de ter recebido a luz de seus olhos.

Tobias, traduzido,
significa “bem do Senhor”. Tobias, portanto, designa
corretissimamente a assembleia dos santos doutores e prelados que são,
verdadeiramente e de modo excelente, o bem do Senhor, não apenas porque vivendo
santamente conduzem os preceitos do Senhor ao seu efeito, como também porque,
pelo ensino, conduzem as almas que lhes foram confiadas para a fé e as formam
para o reto viver. O bem aventurado Santo Agostinho, cuja solenidade hoje
celebramos, foi membro eminente do número destes prelados e doutores, por ter
perfeitissimamente ensinado seus discípulos e sua grei e por tê-los, não menos
perfeitamente, instituído no serviço de Deus. Também ele convidou merecidamente
sua alma ao louvor do Senhor, não ignorando a luz do conhecimento do alto que
lhe tinha sido concedida.

Pela cidade de
Jerusalém entendemos a santa Igreja, a qual em parte peregrina na terra, em
parte está na glória do céu. Aqui ela exulta, ali ela reina; aqui ela é filha,
ali ela é mãe. Uma só, porém, é a cidade, uma só a Igreja, uma só a pomba, uma
só a amiga, uma só a esposa. Ela é cidade pela habitação comum dos cidadãos,
Igreja pela assembleia dos fiéis, pomba pela simplicidade, amiga pelo amor,
esposa pela fé. Suas núpcias são celebradas em ambos os lugares, tanto no mundo
como no céu; aqui, porém, são celebradas na fé, ali na visão; aqui são
celebradas na esperança, ali na substância. “Vemos agora”, diz a
Escritura, “como por um
espelho, em enigma; mas então veremos face a face”. 1 Cor. 13, 12

Nestas núpcias
brinda-se aqui o vinho da graça, lá brinda-se o vinho da glória, assim como no
princípio das palavras que propusemos diz-se desta cidade que Deus a libertou e
no fim que Deus a exaltou. No início elas dizem:

 “Ó minha alma, bendize ao Senhor, porque libertou
Jerusalém, sua cidade”; e no fim dizem:

“Bendito seja o
Senhor, que a exaltou”.

De fato, Deus
primeiramente a liberta; depois a exalta. Liberta-a do mal, exalta-a no bem;
liberta-a na via, exalta-a na pátria. Liberta-a pela graça, exalta-a pela
glória.

Segue-se:

“Ditoso de mim,
se restar alguém de minha
descendência para ver o esplendor
de Jerusalém”.

 Considere, quem o
puder, quão grande é a caridade espiritual dos pais para com os filhos, os
quais, como se pode entender por estas palavras, consideram sua a salvação dos
filhos, e verdadeiramente a amam como se fosse sua e a consideram como própria.
Daqui é que Paulo diz aos Tessalonicenses:

“Qual é a nossa
esperança, ou a nossa alegria, ou coroa de glória?

 Porventura não o sois vós, diante do Senhor Jesus Cristo, na sua vinda?” I Tess. 2, 19

Paulo demonstra esta
mesma caridade, onde diz aos Gálatas:

“Meus
filhinhos, por quem eu sinto de novo as dores de parto, até que Jesus Cristo se forme em vós”. Gal. 4, 19

E deve-se notar que
Tobias não diz “minha descendência”, mas “se restar
alguém de minha descendência”.De fato, ainda que
muitos sejam os chamados, poucos, todavia, são os escolhidos (Mat. 22, 14), e
entre os mesmos escolhidos muitos são os imperfeitos, e menos ainda os
perfeitos para verem o esplendor de Jerusalém.

Dois são os
esplendores da santa Igreja. Um deles está no tempo, o outro na eternidade. Um
consiste na justificação, o outro na bem aventurança; um no mérito, o outro no
prêmio. Exteriormente, porém, ela se escurece, não importando o quanto
resplandeça interiormente, pois “todos os que
desejam viver piedosamente em Jesus Cristo, padecerão perseguição”. II Tim. 3, 12

Deste esplendor e
deste escurecimento a própria santa Igreja nos fala no Cântico dos Cânticos:

“Eu sou negra,
mas formosa, ó filhas de Jerusalém”. Cant. 1, 4

A Igreja, de fato, é
exteriormente negra pela angústia da perseguição, mas interiormente formosa
pelo esplendor da caridade. A este respeito o Apóstolo também afirma que

“embora se
destrua em nós o homem exterior, todavia o interior se renova de dia a
dia”. II Cor. 4, 16

Mas as palavras de
Tobias, ao dizer:

“Ditoso de mim,
se restar alguém de minha
descendência para ver o esplendor
de Jerusalém”, mais parecem
referir-se à glória futura da Igreja que Isaías lhe promete, quando afirma:

“Não haverá
mais para ti Sol para luzir de dia, nem o esplendor da Lua te iluminará, mas o Senhor será para ti luz eterna, e o teu Deus será a tua glória.

 Não mais se porá o teu Sol e a tua Lua não
minguará, porque o Senhor será para ti luz eterna, e terão acabado os
dias de teu pranto”. Is. 60, 19-20

Qualquer santo
prelado, portanto, reconhece-se como ditoso se houver alguém de sua
descendência para ver o esplendor de Jerusalém porque o será verdadeiramente se
chegar a ver contemplando consigo no céu a glória suprema da santa Igreja
alguns daqueles que agora parecem imitá-lo no mundo. Ditoso será pela sua boa
obra, ditoso será também pela boa conversação dos que lhe tiverem sido
confiados. Embora, pois, haja de existir para todos os santos uma dupla glória,
a de um vestido talar tanto para o corpo como para a alma, todavia nos santos
prelados haverá de se cumprir de um modo especial o que foi escrito.

“Em sua terra
possuirão uma dupla porção”. Is. 61, 7

Neles, de fato,
haverá de se cumprir esta passagem tanto pela sua justiça como pela justiça dos
que lhes tiverem sido confiados.

 “As portas de
Jerusalém serão construídas de safiras e de esmeraldas, e de pedras
preciosas  todo o circuito de seus muros”.

A esmeralda pelo seu
verdor significa a fé. A safira, que traz diante de si a cor do firmamento,
significa a boa obra.

O verdor da
esmeralda significa a fé pois assim como o verdor é a primeira coisa que surge
no que germina, assim também a fé é a primeira pela ordem entre as virtudes,
sem a qual, diz a Escritura,

“é impossível
agradar a Deus”. Heb. 11, 6

Deste modo, a
primeira porta da santa Igreja é a fé, figurada pela esmeralda, a segunda das
pedras mencionadas. A sua segunda porta é a obra, a obra que se faz pelo amor
de Deus e do próximo, designada pela safira, a primeira pela ordem das pedras
mencionadas.

Para abrir a
primeira porta, que é a fé, é necessário abrir as duas metades de que esta
porta é constituída, metades estas que são como que as suas duas partes. Estas
partes, embora sejam duas, são também uma única. Elas são o Criador e o
Salvador os quais, embora difiram pelo nome, mas são um só na realidade. Os
nomes de Criador e de Salvador, todavia, também designam coisas diversas. Deus
é Criador, porque nos fêz; é Salvador, porque nos salvou. O Criador, e tudo o
que se refere ao Criador, eis uma parte da fé; o Salvador, e tudo o que se
refere ao Salvador, eis a outra parte da fé. Quanto à primeira parte, pertence
à fé confessar o Criador e por ele terem sido feitas todas as coisas que
possuem ser; quanto à segunda parte, pertence à fé venerar o Salvador e
confessar ter ele restaurado os que estavam perdidos, aos quais foi dada ou
será dada a bem aventurança. A primeira parte da fé diz respeito à dívida da
natureza, a segunda diz respeito à dívida da graça. Naquela devemos crer porque
fomos criados segundo a nossa natureza; nesta devemos crer por termos sido
restaurados pela graça. Se, portanto, crês naquela, tens uma metade da primeira
porta; se crês nesta, tens a outra metade.

Não é suficiente,
porém, entrar apenas pela primeira porta, a não ser que se entre também pela
segunda, porque “a fé, sem as
obras, é morta”. Tg. 2, 17

A obra é a segunda
porta, figurada pela primeira pedra, a safira. De fato, toda obra que é
empreendida pelo amor de Deus e do próximo é mais celeste do que terrena,
porque não é feita por causa das coisas da terra, mas pelas do céu, sendo este
o motivo de ser figurada pela safira.

A segunda porta
também se nos apresenta possuindo duas metades como partes. Se, de fato,
operares o que é bom amando a Deus, tens aí uma metade; se operares o bem
amando ao próximo, tens aí a outra metade.

Se quiseres,
portanto, seja no presente como no futuro, ser cidadão de Jerusalém, é
necessário entrar por ambas as portas, a da fé e a da obra, daquela obra que se
empreende pelo amor, pois assim como a fé sem a obra é morta, assim também a
obra sem o amor é vã.

“E de pedras
preciosas será construído todo o circuito de
seus muros”, porque a santa
Igreja em seus méritos é circundada por todos os lados pela solidez da virtude,
e no prêmio é ornamentada em todo o seu redor pelo esplendor dos prêmios, firme
no mérito e resplandecente no prêmio. No mérito nada lhe falta da virtude e no
prêmio nada lhe falta da bem aventurança. Ela, todavia, resplandece em ambos e
é sólida também em ambos, pois resplandece agora pela virtude para depois ser
confirmada para sempre em seu esplendor.

“Suas ruas
serão calçadas de pedras brancas e
puras”,

porque são
ladrilhadas no bem pelas pedras brancas e purificadas do mal pelas puras. Suas
ruas são calçadas com estas duas pedras quando os imperfeitos que se utilizam
das coisas da terra são com muita ordem dispostos no tempo pela pureza das boas
obras e na eternidade pelo ornamento dos prêmios. Ainda que careçam da cor
rubra da paixão, são todavia alvos pelo linho da sua justificação, que possuem
pela pureza da boa ação e pelo ornamento da honesta conversação.

“E pelas suas
vilas se cantará aleluia”.

Há muitas ordens na
santa Igreja, tanto no mundo como no céu. Embora difiram entre si pelo mérito
ou pelo prêmio, são como suas muitas vilas. Por todas elas se canta aleluia quando
jorra o louvor divino tanto dos que estão no céu como dos que estão na terra.
De onde que está escrito:

“Seu louvor
está acima do céu e da terra”. Salmo 148, 14

Tudo tudo quanto
dissemos até aqui expusemo-lo segundo ambos os estados da santa Igreja. Devemos
reconhecer, porém, que todas estas coisas dizem melhor respeito à Igreja que é
futura, motivo pelo qual o próprio Tobias acrescenta:

 “Bendito seja o
Senhor, que a exaltou, que o seu reino
sobre ela seja pelos séculos dos séculos. Amén”. Tobias 13, 19-23

Embora, de fato, o
reino de Deus sobre a Igreja também seja no presente, haverá porém de ser visto
muito maior no futuro, quando tiver cessado toda a calúnia do pecado, quando
nem a morte nem a mortalidade dominar mais sobre nós, quando

“este
corruptível se tiver revestido de incorruptibilidade, este mortal se tiver revestido de
imortalidade, quando o Filho tiver entregue o Reino a Deus e ao Pai, e Deus for tudo em
todos”. I Cor. 15: 53-4, 24,
28E agora, caríssimos,
vejamos se somos da descendência de nosso bem aventurado pai Agostinho. O que
significa dizer: vejamos se somos seus imitadores como o devemos ser.

Vejamos se,
contemplando o seu exemplo, amamos a palavra de Deus, estudando-a, meditando-a,
escrevendo sobre ela, ensinando-a, conforme a graça que nos foi concedida.
Vejamos se imitamos a sua honestíssima religião, vivendo santamente com todas
as nossas forças. Se tudo isto fazemos, somos verdadeiramente sua descendência,
e verdadeiramente contemplaremos com ele o esplendor da Jerusalém celeste.

E que para tanto se
digne vir em nosso auxílio Jesus Cristo, nosso Senhor, que é Deus bendito,
pelos séculos dos séculos.

Amén.

SERMO LXXXVIII

Sobre o Mandamento
do Amor

 “Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua
alma, e de toda a tua
força”. Deut. 6, 5

Depois que o homem
abandonou a caridade pela culpa primordial e decaíu para a miséria deste mundo
sujeitou-se a muitos cuidados, ocupou-se com muitas ações e afadigou-se com
muitos trabalhos. De tudo pelo que o homem se aflige debaixo do Sol, uma só é a
melhor parte. Consiste em servir a Deus, a única coisa que permanece. Todas as
demais são passageiras, e como são vãs!

Quem não serve a
Deus, portanto, é vão, e sua vida deve ser estimada como nada. Melhor seria que
ele não fosse do que fosse mau, e melhor seria que não tivesse vivido do que
mal vivido. Se tal homem pudesse nesta vida ter a força de Sansão, a beleza de
Absalão, a sabedoria de Salomão, a velocidade de Azael, as riquezas de Creso, a
probidade de Alexandre, o poder de Otaviano, que tinha o mundo sob o seu poder,
a longevidade de Enoc o qual, nascido no princípio do mundo, até o fim não
morrerá, se tal homem pudesse possuir tantas e tais coisas no presente, tudo
isto de nada lhe aproveitaria se não servisse a Deus. Quando, ao morrer, tudo
enfim lhe for cobrado, a miserável carne será entregue aos vermes e o espírito
aos demônios e aos tormentos infernais até que no dia da ressurreição toda a
carne retorne à sua origem. Então, retomada a carne pela qual e na qual pecou,
novamente receberá a eterna condenação. Melhor é, portanto, servir a Deus, e
ainda que o homem em toda a sua vida estivesse destituído de auxílios temporais
e corporais, se nela se tiver entregue ao serviço de Deus, passará da miséria
da vida presente à eterna bem aventurança.

Entre todos os bens
do mundo presente que o gênero humano busca ou alcança, o melhor e o único bem
que permanece é servir a Deus. Devemos, portanto, buscar de todos os modos o
que seja servir a Deus. Se, buscando-o, o encontrarmos, sem sombra alguma de
desânimo deveremos nele perseverar, pois é somente ao que persevera que está
prometida a bem aventurança.

Irmãos, podemos
compreender e declarar o que seja servir a Deus com breves, doces e alegres
palavras. Servir a Deus é amar a Deus. Quem não ama não serve, e quem ama
serve. Quem pouco ama, pouco serve; quem muito ama, muito serve; e quem
perfeitamente ama, perfeitamente serve.

Quem possuir coisas
temporais, terras, vinhas, rebanhos, armamentos, vestes preciosas, casas,
prata, ouro ou esposa, às quais tenha muito amor, se perceber que possui uma de
todas estas coisas, ou mesmo todas elas simultaneamente, contra o amor de Deus,
deve abandoná-las todas, pospor todas ao amor de Deus e a todas antepor este
amor. Até mesmo a sua própria vida o homem deve entregar pelo amor de Deus se
vier a acontecer que não possa conservá-la juntamente com ele. Assim o fêz
Pedro, assim o fêz Paulo, assim o fizeram todos os demais apóstolos e mártires
de Cristo, entregando por amor a Deus não somente as suas coisas, como também a
si mesmos. Todos estes, homens como nós, nos legaram tais exemplos de como
devemos agir.

Devemos, portanto,
amar a Deus porque Ele nos amou primeiro, dando-nos e prometendo-nos a multidão
de seus dons. Em todos estes Ele como que mereceu de nós que o amássemos. O
menor de todos os dons que Deus deu ao homem para que fosse amado por ele é
todo este mundo. Foi por causa do homem que Deus fêz o mundo, o céu, a terra, o
mar, o sol, a lua, as estrelas, os pássaros, os peixes, os animais da terra, as
plantas, as árvores, e todas as coisas que subsistem visivelmente. Ora, se
entre todos os dons de Deus o menor é todo este mundo, quanto consideraremos
que será o máximo?

O segundo dom que
foi concedido por Deus ao homem foi tê-lo criado à sua imagem semelhança.
Grande e admirável dom é certamente a criatura ser tornada semelhante e
conforme ao Criador.

O terceiro dom é a
graça, que nos foi concedida na Redenção. Deus, de fato, diz a Escritura, “não poupou o
seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós”.

 O quarto dom Deus
no-lo conserva e no-lo promete. É o dom da glória futura, do qual se diz que

“nem o olho
viu, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem o que Deus preparou para aqueles que o amam”. I Cor. 2, 9

Podemos dizer,
portanto, que o primeiro dom é o bem da criatura, o segundo dom é o bem da
natureza, o terceiro dom é o bem da graça e o quarto dom o bem da glória. Por
todos estes devemos amar a Deus.Mas quanto devemos
amá-Lo?

“Com todo o
coração, com toda a alma, com todas as forças, com todo o
entendimento”.

Com todo o nosso
coração, isto é, com sabedoria; com toda a alma, isto é, com doçura; com todas
as forças, isto é, com fortaleza; com todo o entendimento, isto é, com toda a
memória, e por quaisquer outros modos que puderem ser ditos, pois não se pode
excessivamente dizer aquilo que não se pode excessivamente amar.

“E o teu
próximo como a ti mesmo”. Mat. 22, 39

Devemos amar o
próximo como a nós mesmos pelo benefício, pela palavra, pela intenção. No
benefício temos a boa obra, na palavra o conselho sadio, na intenção a
autenticidade do desejo. Em tudo isto amemos o próximo na via, do qual seremos
consortes na pátria.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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