O Sacrifício da Missa – Parte 2

Todos os povos, culturas e
religiões sacrificavam aos deuses, buscando reatar o relacionamento com eles, e
com o fim de expiar suas faltas, agradecer as bênçãos, pedir graças e adorar
aqueles que consideravam seres superiores. A intenção desses homens era a mais
correta possível, eis que fruto da Lei Moral inscrita em seus corações. Também,
em parte, a forma era corretíssima, pois concluíram, pela razão, que o reatar
do relacionamento com o Criador se daria através do sacrifício. Ocorre,
contudo, que o destinatário do sacrifício dava ao culto um caráter equívoco.
Não era a Deus que sacrificavam, mas às suas noções errôneas de divindade. Como
diz São Tomás, citando o livro dos Salmos, “todos os deuses dos pagãos são
demônios.”

Oferecer um sacrifício,
concluímos, é algo próprio da natureza humana, em vista da Lei Moral e do
desejo de Deus inscrito no coração do homem. Contudo, Deus mostrou, no Antigo
Testamento, como Ele queria que fosse celebrado tal sacrifício.

Deus revelou, pois aos
hebreus, o Povo Eleito, como deveria ser adorado em vista da vinda do Salvador,
Nosso Senhor Jesus Cristo.

Introdução à pedagogia
divina e à alegoria vétero-testamentária: tipos, sinais, símbolos e figuras

Durante da História da
Salvação, que antecedeu a vinda de Cristo, o Senhor Deus foi se revelando aos
poucos, como que preparando seu povo para reconhecer seu Filho quando Ele
viesse. Mediante símbolos e sinais que deveriam apontar para uma realidade
perfeita em Jesus, quando Ele viesse à terra morrer pelos nossos pecados, Deus
foi preparando o Povo de Israel.

Usando de uma pedagogia,
Deus vai mostrando aos hebreus que realmente são necessários sacrifícios para
que o relacionamento com Ele, afetado desde o pecado original, seja purificado,
de tal forma que os pecados sejam apagados.

No Antigo Testamento, cremos
que o que está descrito é histórico, realmente aconteceu. Entretanto, não é só
esse sentido literal – ainda que verdadeiro – que nos interessa. Deus, que é o
Autor da Sagrada Escritura, nos presenteia, pelo Espírito Santo, com a graça de
entendermos a Bíblia conforme seus vários sentidos, todos complementares e
submetidos ao juízo infalível da Santa Igreja fundada por Nosso Senhor. “Segundo
uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido
literal e o sentido espiritual, sendo este último subdividido em alegórico,
moral e anagógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante
toda a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja.” (Cat. 115)

Os acontecimentos
históricos, descritos no Antigo Testamento, são, para os cristãos, como que
sinais que apontam para o Novo. Assim, a passagem do Mar Vermelho a pé enxuto
pelos hebreus, na fuga do Egito, é algo que realmente aconteceu. Mas, seu
sentido não se esgota no histórico, em que podemos perceber o poder de Deus ao
realizar tamanho milagre, bem como Sua disposição em fazer de tudo para
preservar Seu Povo Eleito. Para nós, tudo isso é importante, mas encontramos,
também, um sinal da vitória de Cristo sobre a morte, e um símbolo do Batismo.
São Paulo mesmo já interpretava assim: “todos foram batizados em Moisés, na
nuvem e no mar.” (1Co 10,2)

Dessa maneira, o sacrifício,
como ordenado por Deus a Moisés e ao Povo de Israel, é como um símbolo, uma
preparação de um sacrifício mais excelente que estava por vir. A lei é apenas “a
sombra dos bens futuros.” (Hb 10,1) E mais: “o culto que estes celebram é, aliás,
apenas a imagem, sombra das realidades celestiais.” (Hb 8,5)

A ideia de sacrifício no
Antigo Testamento: Abel, Noé, Melquisedeque, Abraão, Isaac e Jacó

O ânimo de sacrificar a
Deus, para obter o perdão dos pecados e a remissão dos efeitos da queda original,
permeia todo o Antigo Testamento, mesmo antes da Aliança com Moisés no Sinai,
após a libertação do Egito rumo à Terra Prometida. Como dissemos, Caim e Abel
preocupavam-se com isso, embora o primeiro tenha sacrificado de forma indigna
(podemos perceber, desde já uma certa forma ritual que agrada a Deus, por ser
de Seu desejo, e outra que o desagrada). “Pela fé Abel ofereceu a Deus um
sacrifício nem superior ao de Caim, e merecer ser chamado justo, porque Deus
aceitou as suas ofertas. Graças a ela é que, apesar de sua morte, ele ainda
fala.” (Hb 11,4) Esse “ainda fala” refere-se não só ao seu covarde assassinato
por seu irmão Caim, porém, num sentido espiritual, também ao testemunho de sua
fé e de seu sacrifício, modelo para todos os crentes.

Esse testemunho propagou-se
por sua descendência, de quem sairia Abraão e seu filho, Isaac, sinal da
promessa cumprida. Após o dilúvio, Noé, como forma de agradecer a Deus pela sua
sobrevivência na arca, como também para buscar o perdão dos pecados, celebrou
um sacrifício. “E Noé levantou um altar ao Senhor: tomou de todos os animais
puros e de todas as aves puras, e ofereceu-os em holocausto ao Senhor sobre o
altar. O Senhor respirou um agradável odor, e disse em Seu coração: ‘Doravante,
não mais amaldiçoarei a terra por causa do homem – porque os pensamentos do seu
coração são maus desde a sua juventude -, e não ferirei mais todos os seres
vivos como o fiz.'” (Gn 8,20-21) Em virtude do sacrifício oferecido por Noé, a
ira divina foi aplacada, como pede a Lei Moral natural, e o benefício
propiciatório das ofertas sacrificadas foi alcançado: o perdão e a
misericórdia.

“Voltando Abrão da derrota
de Codorlaomor e seus reis aliados, o rei de Sodoma saiu-lhe ao encontro no
vale de Savé, que é o vale do rei. Melquisedeque, rei de Salém e sacerdote do
Deus Altíssimo, mandou trazer pão e vinho, e abençoou Abrão, dizendo: ‘Bendito
seja Abrão pelo Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra! Bendito seja o Deus
Altíssimo, que entregou os teus inimigos em tuas mãos!’ E Abrão deu-lhe o
dízimo de tudo.” (Gn 14,17-19)

Melquisedeque, personagem
misterioso, cuja história não é conhecida, é uma das primeiras figuras ou
símbolos do Cristo que há de vir. Ele é o rei de Salém, primeiro núcleo da
futura Jerusalém, como Cristo é o Rei dos Judeus, o Rei de Israel, que
instalará Sua capital na Jerusalém Celeste (cf. Ap 21). Trazendo pão e vinho,
simboliza Jesus que, por esses elementos, perpetuará a Eucaristia. Sacerdote
que era, Melquisedeque, não era da linhagem do Povo Eleito, o que aponta para a
Lei Moral que não se limitava aos descendentes de Abraão. Mais tarde, o
salmista irá dizer, profeticamente, do Cristo: “Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque.” (Sl 109,4) O sacerdote, como veremos, é
figura essencial em um sacrifício, que não se faz sem ele, sem altar e sem
vítima.

Após o encontro com
Melquisedeque, Abraão, na época chamado simplesmente Abrão, permaneceu firme em
seu chamado por parte de Deus. Nele foram depositadas as promessas de que seria
o patriarca de um grande povo, de onde sairia o Messias, o Salvador. Sendo sua
mulher, Sara, idosa e estéril, só um milagre poderia fazer tal promessa ser
cumprida. E foi o que aconteceu. A fidelidade de Deus, que não se deixa vencer
em generosidade, permitiu-lhe contemplar as Suas maravilhas. “O Senhor visitou
Sara, como Ele tinha dito, e cumpriu em seu favor o que tinha prometido. Sara
concebeu e, apesar de sua velhice, deu à luz um filho a Abraão, no tempo    fixado por Deus. Abraão pôs o nome de Isaac
ao filho que lhe nascera de Sara.” (Gn 21,1-3)

Tempos depois, o mesmo Deus
que tinha lhe dado Isaac, pede a Abraão que o sacrifique em Sua honra. Na
verdade, trata-se de uma prova, a qual Abraão passou. Amando mais a Deus que
qualquer outra coisa, estava pronto a sacrificar seu filho para a remissão dos
pecados. Por conhecer suas disposições, o Senhor deu-se por satisfeito e, no
altar do Monte Moriá, mandou um anjo seu interromper a oferta que Abraão fazia
de Isaac, indicando-lhe, outrossim, um cordeiro para o sacrifício. “Abraão,
levantando os olhos, viu atrás dele um cordeiro preso pelos chifres entre os
espinhos; e, tomando-o, ofereceu-o em holocausto em lugar de seu filho.” (Gn
22,13) Estamos diante de um outro símbolo messiânico, no qual um cordeiro é
sacrificado no lugar de outros. O cordeiro substituiu Isaac, como se o próprio
fosse sacrificado, e não o animal.

O livro do Gênese continua a
contar a História da Salvação, e seus personagens, inclusive Isaac e seu filho
Jacó, mais tarde chamado Israel, oferecem, certamente, sacrifícios a Deus. A
esses três últimos, Abraão, Isaac e Jacó, tece o Sirácida o seguinte elogio: “Abraão
é o pai ilustre de uma infinidade de povos. Ninguém lhe foi igual em glória:
guardou a lei do Altíssimo, e fez aliança com Ele. O Senhor marcou essa aliança
em sua carne; na provação, mostrou-se fiel. Por isso jurou Deus que o haveria
de glorificar na sua raça, e prometeu que ele cresceria como o pó da terra.
Prometeu-lhe que exaltaria sua raça como as estrelas, e que seu quinhão de
herança se estenderia de um mar a outro: desde o rio até as extremidades da
terra. Ele fez o mesmo com Isaac, por causa de seu pai, Abraão. O Senhor
deu-lhe a bênção de todas as nações, e confirmou sua aliança sobre a cabeça de
Jacó. Distingui-o com suas bênçãos, deu-lhe a herança, e repartiu-a entre as
doze tribos. Conservou-lhe homens cheios de misericórdia, que encontraram graça
aos olhos de toda a carne. (Eclo 44,20-27)

“Os patriarcas e os
profetas, bem como outras personalidades do Antigo Testamento, foram e serão sempre
venerados como santos em todas as tradições litúrgicas da Igreja.” (Cat. 61)

A revelação de Deus na
Aliança com Moisés: o culto levítico

Presente em todos os povos,
como vimos, a noção de sacrifício foi aperfeiçoada pelo povo de onde sairia o
Messias. Apesar de alguns serem verdadeiros holocaustos (os realizados pelos
legítimos adoradores do Deus único), Deus só foi revelar o ritual com o qual
queria ser adorado mediante os sacrifícios, quando da libertação do Povo Eleito
da terra do Egito. Isso pela vontade de Deus em estabelecer uma Revelação de
caráter progressivo, para que o homem fosse entendendo os Seus desígnios em
formar um povo santo, à Sua imagem e semelhança. Respeitando a própria
limitação do homem, Deus usou de acontecimentos históricos, mandamentos, ordens
e rituais, para apontar ao Messias, que viria quando chegasse a plenitude dos
tempos.

De tal modo aconteceu, que
Moisés, o legislador de Israel e guia do Povo Eleito em sua fuga e peregrinação
pelo deserto rumo a Canaã, estabeleceu, por ter ouvido da boca do próprio Deus,
as leis específicas quanto ao sacrifício. As encontramos, principalmente, no
livro do Levítico.

Todo sacrifício requer um
sacerdote, um altar e uma vítima. De todo o Israel, somente uma tribo, a de
Levi, foi escolhida para, de seus membros, saírem os que ocupariam as funções
afeitas ao sacerdócio. Os levitas eram os responsáveis pelo culto do Deus de
Israel. Alguns desses levitas, quando descendentes do sacerdote Arão (irmão de
Moisés), formariam a classe sacerdotal, que ofereceria diretamente o
sacrifício.

O altar era, enquanto não
havia o Templo, na Tenda da Reunião, no lugar chamado de Santo dos Santos, onde
ficava a Arca da Aliança, contendo os Dez Mandamentos. Após a construção do
Templo por Salomão, em Jerusalém, lá foi edificado o altar onde os sacerdotes,
levitas descendentes de Arão, ofereceriam como sacrifício pelos pecados dos
israelitas, vítimas tais como diversos animais, entre os quais, por excelência,
figurava o cordeiro. Esse sacrifício era uma figura, um sinal, um símbolo do
verdadeiro e único sacrifício que viria: o de Cristo.

Ecce Agnus Dei, qui tollis
peccata mundi

Diz a Bíblia: “No dia
seguinte, João viu Jesus que vinha a ele e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo.'” (Jo 1,29)

De fato, no Novo Testamento,
por sua vez, o sacerdote era o próprio Cristo, Deus e Homem ao mesmo tempo, que
ofereceu um sacrifício perfeito; a vítima também foi Jesus Cristo, o cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo; o altar do novo sacrifício já não ficava no
Templo de Jerusalém, mas era a Cruz do Calvário. Lá, Cristo ofereceu um
sacrifício perfeito para, por sua morte, conquistar-nos novamente a graça de
Deus e dar a vida eterna, a salvação nos céus e o perdão de todos os nossos
pecados, reconciliando-se com o Criador, ao qual tínhamos traído em Adão e Eva.
“Nesse Filho, pelo Seu Sangue, temos a Redenção, a remissão dos pecados,
segundo as riquezas da Sua graça.” (Ef 1,7)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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