O Sacramento da Reconciliação: Por que assim? EB (Parte 1)

escutaEm síntese: O sacramento da Reconciliação foi até o século VI ministrado de maneira muito rigorosa, que aos poucos foi sendo abran­dada até assumir a forma atual no século XIII. Exerceram influência nes­sa história os monges irlandeses, que no começo do século VI se estabe­leceram no continente europeu. No fim deste artigo é abordada a ques­tão da validade da confissão a um leigo. Para entender a atual forma de celebração do sacramento da Re­conciliação ou Penitência, é indispensável breve percurso histórico, que ilustre as diversas fases por que passou o rito deste sacramento. O ritual exprime as concepções teológicas respectivas.

A administração do sacramento da Reconciliação foi assumindo diversas formas até o século XIII, quando se fixou nas modalidades do rito atual. Principalmente nos primeiros séculos a documentação relativa a Penitência era esporádica ou não sistemática – 0 que dificulta ao histo­riador a tarefa de reconstituir a história. Como quer que seja, podem-se, com segurança distinguir três fases nessa evolução; 1) até o século VI, a penitência irrepetível, dita “pública”; 2) do século VII ao século XIII, a penitência dita “tarifada”, administrada segundo três modalidades; 3) do século XIII aos nossos dias, a penitência estritamente secreta.

1. Até o século VI

1.1.  Que pecados?

Os antigos distinguiam bem entre pecados graves, “que separam do Corpo de Cristo” (S. Agostinho) e pecados leves. Dos testemunhos existentes pode-se depreender a seguinte lista de pecados graves ou mortais:

Apostasia, homicídio, adultério, concubinato, fornicação, espetá­culos lascivos ou cruentos, furto, aborto, falso testemunho, perjúrio, em­briaguez habitual, ódio tenaz (…)

Os pecados leves seriam: maledicência, dureza para com o próximo, má acolhida aos mendicantes1… Para expiar tais pecados, eram suficientes a contrição sincera, a prática da caridade e das boas obras e a penitência pessoal ou privada.

A distinção entre pecados graves e pecados leves em alguns casos era, e ainda é, um tanto frouxa, visto que cada ato pode ser grave em grau maior ou menor, de acordo com a convicção e a intensidade com que alguém o comete.

Parece que em alguns lugares (Espanha, Franca, Norte da África) ficavam excluídos da penitência sacramental nos séculos II-IV a tríade de “adultério, homicídio e apostasia”. Este rigorismo tinha em vista acen­tuar o caráter totalmente extraordinário e estranho do pecado grave na vida de um cristão. O mesmo se entende ainda melhor se se leva em conta que grande número de cristãos eram batizados em idade adulta ou provecta. depois de haver renunciado a uma vida devassa; a recaída nas faltas graves parecia inconcebível a comunidade eclesial.

1.2. As etapas da Reconciliação sacramental ou canônica

1) Ingresso na ordem dos penitentes

O cristão que tivesse consciência de haver cometido alguma culpa grave, ia procurar o bispo ou o presbítero e lhe abria a consciência. Por conseguinte, era secreta a confissão, e não pública.1 0 ministro julgava se tal pecado devia ser submetido a Penitência sacramental. Quando se tratava de delitos públicos, a iniciativa de fazer penitencia podia ser to­mada pelo bispo; se o pecador recusasse fazer penitência, o bispo podia excomungá-lo.

O pecador, depois de confessar suas faltas, era, segundo o juízo do bispo e as normas vigentes na comunidade local, agregado a categoria dos penitentes: O próprio bispo impunha-lhe as mãos, revestia-o de cilício e o expulsava simbolicamente da igreja; na Gália, Os penitentes raspavam a cabeça (com frequência isto acontecia no decurso do próprio rito); na Espanha, ao contrário, os penitentes eram obrigados a não cortar os cabelos e a barba. Entrementes a comunidade se dispunha a acompanhar os irmãos penitentes pela oração e o zelo fraterno.

2)  A prática da Penitência Pública

Ao introduzir o pecador na categoria dos penitentes, o bispo impu­nha-lhe umasatisfação “justa e côngrua”, ou seja, um período de obras penitenciais que o ajudassem a mobilizar todo o seu amor a Deus e extinguir em Si todo amor pecaminoso ou desregrado. Tal período era pro­porcional a gravidade das faltas cometidas e tinha finalidade medicinal. A satisfação constava dos seguintes elementos:

obrigações gerais: jejum até o por do sol e abstinência de carne, por vezes pousada noturna em grosseiro leito de palha salpicado de cin­zas; por vezes também abstinência de banho e prática de esmola.

obrigações rituais:  Os presbíteros impunham as mãos aos peni­tentes; estes rezavam de joelhos em certos dias; transportavam os de­funtos a Igreja e lhes davam sepultura.

Interditos:  aos penitentes era proibido não 56 durante o tempo de expiação, mas por todo o resto da vida, exercer cargos públicos e ativida­des comerciais, apresentar-se ao tribunal civil, prestar serviço militar, re­ceber as ordens sacras. Quem fosse casado (a), não poderia viver mari­talmente com o(a) consorte, mesmo depois da reconciliação sacramen­tal obtida; o penitente que se tornasse viúvo, não podia contrair novo matrimônio nem após a reconciliação…

Havia graus ou classes de penitentes:

–  Os flentes (os que choravam) ficavam a porta da igreja, vestidos de cilício e cinzas, pedindo com lágrimas que os irmãos orassem por eles;

– Os audientes (ouvintes) Ingressavam na Igreja para ouvir a Pala­vra de Deus, mas eram despedidos antes que começasse a celebração eucarística;

–  Os substrati (prostrados) assistiam a celebração eucarística de joelhos e prostrados;

–  Os consistentes assistiam a celebração eucarística em pé, mas não participavam nem da oferta nem da Comunhão sacramental.

A duração do período expiatório variava, como dito, segundo a gra­vidade das culpas. A Didascalia Apostolorum (século IV), na Síria, fala de duas até sete semanas. Contudo a duração podia ser berm mais lon­ga; Origenes de Alexandria (t 255) dizia que devia estender-se mais do que o catecumenato, ou seja, aproximadamente três anos. São Basílio Magno (t 379) estabeleceu que, para o homicídio, o tempo penitencial seria de vinte anos repartidos em quatro segmentos: quatro anos na or­dem dos flentes; cinco na dos audientes, sete entre os substrati; e quatro entre os consistentes. A partir do século V, quando foram intro­duzidos os interditos que atingiram os penitentes também após a recon­ciliação, a duração do tempo expiatório foi diminuída. Era o bispo quem a estipulava, não a seu arbítrio, mas segundo os cânones dos diversos Concílios regionais. Em Roma tornou-se praxe fazer da Quaresma o tempo penitencial ordinário; na quarta-feira de cinzas, os penitentes recebiam as cinzas e o cilício, e na quinta-feira santa eram reconciliados.

Os penitentes que abandonassem o seu estado, eram excomun­gados de maneira definitiva, pois tal apostasia era tida como gravíssima.

3)  A reconciliação ou absolvição

Era realizada em rito litúrgico acompanhado por toda a comunida­de. O bispo impunha as mãos sobre os penitentes e proferia a oração sacerdotal, assim como uma homilia. Celebrava-se, a seguir, a Eucaris­tia, durante a qual os reconciliados comungavam.  Julgava-se que a absolvição apagava a culpa e encontrava o penitente isento de tendênci­as desregradas, pois o amor a Deus longamente exercitado pelas renún­cias anteriores teria extinto qualquer cobiça desregrada. Por isto também o sacramento da Penitência era chamado “Segundo Batismo” ou “Batis­mo laborioso”, visto que era comparado ao primeiro Batismo pelo fato de purificar o pecador de qualquer resquício de pecado (assim ao menos se presumia); a Igreja antiga era muito ciosa de pureza e santidade!

A reconciliação com a Igreja implicava a reconciliação com o próprio Deus. Este se comunica ao homem por via sacramental, como ensi­na o próprio Cristo: “Tudo o que desligares (absolveres) na terra, será desligado no céu” (Mt 16, 19).

1.3. Uma vez só…!

A Igreja antiga só ministrava uma vez a Penitência sacramental a quem dela precisasse. A recaída após tão rigorosa reconciliação era con­siderada como sinal de ânimo fraco, que não aproveitaria de nova opor­tunidade. A Igreja, porém, não abandonava os relapsos: orava por eles, deixava-os retornar à classe dos penitentes, mas não lhes concedia a reconciliação nem mesmo em caso de morte; às vezes, principalmente se o pecador tivesse dado provas de verdadeiro arrependimento, os bis­pos permitiam que se lhes levasse a Comunhão Eucarística como viático em artigo de morte.

Tais normas tinham caráter disciplinar; tencionavam evitar a “banalização” do pecado e da penitência. A Igreja recomendava ao peca­dor relapso que prestasse expiação por conta própria, na presença de Deus, que certamente veria o fundo do seu coração e lhe daria direta­mente o perdão.

Para entender tal severidade da disciplina antiga, deve-se levar em conta o que foi observado atrás: O Batismo era conferido em Idade adulta ou provecta, depois de madura reflexão do catecúmeno e acompanha­mento por parte da igreja; devia significar profunda metanóia ou conver­são. A recaída no tipo de vida pré-batismal parecia sinal de resistência ao Espírito Santo e pouca abertura para nova graça sacramental.

1.4.  Consequências imprevistas

O  rigor penitencial e a sua não-iterabilidade levavam muitos peca­dores a adiar a Penitência sacramental até o fim da vida. Poucos eram os que a ela recorriam no vigor dos seus anos. Alguns bispos, aliás, eram cônscios de que poucos cristãos, principalmente se ainda jovens, seriam capazes de se abster do matrimônio após a reconciliação e levar urna vida quase monacal. Por isto houve bispos e Concílios regionais que desaconselharam os jovens e as pessoas casadas de se submeterem à Penitência canônica, especialmente se estes últimos não tivessem o pleno consentimento do(a) consorte. Eis alguns testemunhos significativos:

S. Ambrósio (+ 397): “A penitência (pública) seja prestada quando decresce o ardor da luxúria”  (Sobre a Penitencia II  11).

Concílio de Agdes (+ 506): “Aos jovens não se permita facilmente a penitência (sacramental) por causa da fragilidade da idade”

São Cesário, bispo de Aries (503-542), explica mais amplamente a disciplina:

“Talvez, enquanto exortamos em geral todos a penitência, alguém pense dentro de si:  eu sou ainda homem jovem, tenho esposa, como poderia cortar os cabelos e tomar o  hábito de penitente?  Mas, nem mes­mo nós, irmãos caríssimos, queremos dizer isto: não dizemos que as pes­soas ainda jovens unidas em matrimônio devam mudar as vestes; antes, dizemos que devem mudar a vida. E que dano poderia haver a um ho­mem casado se corrigisse seu modo de viver dissoluto e conduzisse vida digna e honesta, se procurasse curar as feridas causadas pelos peca­dos, fazendo esmolas, jejuando e orando? Uma conversão sincera, mes­mo sem mudar as vestes, basta por só as vestes do penitente, por si Só, não só não constituem remédio, mas provocarão justo juízo de Deus. Convertamo-nos, pois, ao bem porque os meios de fazê-lo estão a nossa disposição. De uma parte, evitaremos a morte (eterna) morrendo aos nossos peca dos; da outra, adquiriremos, com nossos méritos, a vida eter­na, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Sermão 55, 4).

Acrescente-se que os clérigos e os monges não eram admitidos a Penitência eclesiástica. Os clérigos que tivessem cometido pecados gra­ves, eram depostos e, se se mostrassem verdadeiramente arrependidos, eram admitidos a Comunhão Eucarística como leigos. Eis alguns depoi­mentos a propósito:

S. Leão Magno: “É contrário aos costumes da Igreja que os clérigos ordinários, sacerdotes ou diáconos, possam receber o remédio da penitência por seus pecados com a imposição das mãos; esta regra tem origem, sem alguma dúvida, na tradição apostólica, pois está escrito: “Se o sacerdote pecou, quem intercederá por ele?” (Lv 5).

Os clérigos pecadores, para merecerem a misericórdia de Deus, devem pedir que sejam admitidos a se retirarem na solidão; lá sua expia­ção, se for adequada as suas culpas, será útil l…” (Epístola 167, 2 a Rústico, bispo do Narbonne).

Concilio de Epaône (517): “Se um sacerdote ou um diácono comete pecado mortal, seja deposto de seu encargo e fechado num con­vento; aí, por todo o resto de sua vida, receberá  só a Comunhão”.

O rigor da disciplina penitencial antiga fez que, no fim do século VI, a situação se tornasse insustentável: a Penitência sacramental era inacessível precisamente para os que dela mais necessitavam, isto é, as pessoas adultas e cheias de vida. A categoria dos penitentes ficava re­servada a anciãos, viúvos e celibatários. A solução para quem pecasse gravemente, era procurar doravante viver retamente e preparar-se para receber a Penitência no fim da vida ou tão somente a absolvição no leito de morte…! Embora não absolvidos de seus pecados, tais cristãos pro­curavam e recebiam o sacramento da Eucaristia, baseando-se no valor expiatórlo de sua penitência privada. Não poucos o faziam levianamente, sem se preocupar muito com os seus vícios. isto levava os bispos a ex­comungar os mais indignos e a pedir aos outros que se abstivessem temporariamente da Eucaristia.

Podia acontecer também que um pecador, em vez do se submeter a Reconciliação canônica, entrasse para um mosteiro e aí professasse a vida monacal, sinceramente arrependido de suas faltas. A profissão mo­nástica perpétua e a vivência daí decorrente eram tidas corno equivalen­tes ao processo da Penitência eclesial, de modo que tal pessoa podia receber a Comunhão Eucarística. É o que se lê num texto do século VI, atribuído ao bispo Fausto de Riez:

“Dê-se a penitência aos seculares, que estão ainda sob o jugo do mundo; meça-se o tempo da penitência segundo a gravidade do delito cometido por aquele que vive ainda no século!  Mas, quando se trata do monge, que renunciou ao mundo e ao sou serviço, e prometeu servir sempre a Deus, por que se lhe deveria impor a Penitência?… Portanto, para o monge a penitência pública é inútil, porque, emendado do seus pecados, ele chora e conclui um pacto eterno com Deus. As culpas que cometeu no mundo, foram canceladas no dia em que ele prometeu a Deus viver doravante segundo a justiça. Depois do pacto escrito por sua mão, com o qual promete cumprir seus deveres com toda a sua fé – mes­mo que depois do batismo tenha pecado no mundo – O monge, depois da sua segunda renúncia (sua profissão religiosa), não hesitará em receber O Corpo do Senhor, por medo de que, por causa da excessiva humildade, não permaneça muito distante do Corpo e do Sangue daquele ao qual só uniu para não formar senão um só Corpo. Não deixe, pois, a Comunhão aquele que deixou de pecar, mas não peque  mais para o futuro” (Migne Latino 58, 875s).

D. Estevão Bettencourt . osb – Mosteiro de S. Bento – Rio de Janeiro

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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