O Papa e o Concílio Vaticano II

1124 ConcílioNo livro A FÉ EM CRISE?, o Cardeal Ratzinger, Papa Bento XVI, falou do Concilio Vaticano II e sua importância. Hoje, depois de 50 anos ele volta ao assunto no Ano da Fé. Por isso, publicamos o que ele escreveu em 1984 (pg. 16-26) para o correto entendimento do que foi este maior evento da História da Igreja no século XX. Alguns interpretam erroneamente o grande Concílio.

“UM CONCÍLIO A SER REDESCOBERTO”

Cardeal Ratzinger

Dois erros contrapostos

Entrando no assunto da nossa conversa, não podíamos deixar de começar pelo extraordinário acontecimento, o Concílio Vaticano II,cujo vigésimo aniversário de encerramento se celebra em 1985. Vinte anos que mudaram a Igreja Católica bem mais do que dois séculos.

Sobre a importância, riqueza, oportunidade e imprescindibilidade de seus documentos, ninguém que seja ou queira permanecer católico nutre ou pode nutrir dúvidas de vulto. A começar, naturalmente, pelo Cardeal-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Recordar isso pode parecer mais ridículo do que supérfluo; acontece, no entanto, que alguns comentadores, de maneira estranha, julgaram evidentemente necessário externar dúvidas a respeito disto.

E, no entanto, as palavras do Cardeal Ratzinger por nós transmitidas, através das quais defendia o Vaticano II e suas decisões, não eram apenas muito claras como também foram por ele repetidas muitas e muitas vezes nas mais diversas ocasiões.

Entre inumeráveis exemplos, podemos citar sua intervenção por ocasião do décimo aniversário do encerramento do Concílio, em 1975. Em Bressano, recordei-lhe aquelas suas palavras, ouvindo-o confirmar que ainda hoje se reconhecia plenamente nelas.

Assim, já dez anos antes de nosso diálogo ele escrevia: “O Vaticano II encontra-se hoje em uma luz crepuscular. Pela chamada ‘ala progressista’, há muito tempo ele é considerado superado e, por conseguinte, um fato do passado, sem importância para o presente. Pela parte oposta, a ala ‘conservadora’, ele é julgado responsável pela atual decadência da Igreja Católica, e até se lhe atribui a apostasia com relação ao Concílio de Trento e ao Vaticano I: de tal forma que alguns chegaram a pedir a sua anulação ou uma revisão que equivaleria a uma retirada”.

E continuava: “Com relação a ambas as posições contrapostas, deve-se esclarecer, antes de tudo, que o Vaticano II é apoiado pela mesma autoridade do Vaticano I e do Concílio de Trento, isto é, o Papa e o colégio dos bispos em comunhão com ele. Além disso, do ponto de vista do conteúdo, deve-se recordar que o Vaticano II se encontra em íntima continuidade com os dois Concílios precedentes, retomando literalmente alguns dos seus pontos decisivos”.

Daí Ratzinger deduz duas conseqüências: “Em primeiro lugar, é impossível para um católico tomar posição a favor do Vaticano II contra ‘Irento ou o Vaticano I. Quem aceita o Vaticano II, assim como ele se expressou claramente na letra, e entendeu-lhe o espírito, afirma ao mesmo tempo a ininterrupta tradição da Igreja, em particular os dois concílios precedentes. E isto deve valer para o chamado ‘progressismo’, pelo menos em suas formas extremas. Segundo:do mesmo modo, é impossível decidir-se a favor de Trento e do Vaticano I contra o Vaticano II. Quem nega o Vaticano Il, nega a autoridade que sustenta os outros dois Concílios e, dessa forma, os separa de seu fundamento. E isso deve valer para o chamado ‘tradicionalismo’, também ele em suas formas extremas. Perante o Vaticano II, qualquer opção parcial destrói o todo, a própria história da Igreja, que só pode subsistir como uma unidade indivisível”.

“Redescubramos o verdadeiro Vaticano II”

Não são, portanto, o Vaticano II e os seus documentos que criam problemas (quase não há necessidade de recordar isto). Para muitos, na realidade, e Joseph Ratzinger está entre eles há muito tempo, o problema é constituído por interpretações de tais documentos que teriam levado a certos frutos da época pós-conciliar.

O pensamento de Ratzinger acerca desse período é claro há bastante tempo: “É incontestável que os últimos vinte anos foram decididamente desfavoráveis à Igreja Católica. Os resultados que se seguiram ao Concílio parecem cruelmente opostos às expectativas de todos, inclusive às de João XXIII e, a seguir, de Paulo VI. Os Cristãos são novamente minoria, mais do que jamais o foram desde o final da Antiguidade”.

Assim explica ele o seu severo julgamento, repetido durante nossa conversa: “Os Papas e os Padres conciliares esperavam uma nova unidade católica, e, pelo contrário, caminhou-se ao encontro de uma dissensão que, para usar as palavras de Paulo VI, pareceu passar da autocrítica à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo, e, no entanto, muito freqüentemente chegou-se ao tédio e ao desencorajamento. Esperava-se um impulso à frente, e, no entanto, o que se viu foi um progressivo processo de decadência que veio se desenvolvendo, em larga medida, sob o signo de um presumido ‘espírito do Concílio’ e que, dessa forma, acabou por desacreditá-lo”.

Portanto, concluía ele dez anos atrás: “Deve-se reafirmar claramente que uma reforma real da Igreja pressupõe um inequívoco abandono dos caminhos errados cujas conseqüências catastróficas já não podem ser negadas”.

Em outra ocasião escrevia ele: “O Cardeal Julius Döpfner dizia que a Igreja pós-conciliar é uma grande obra de construção. Mas um espírito crítico acrescentou que é uma obra de construção onde se perdeu o projeto e cada um continua a fabricar de acordo com O seu próprio gosto. O resultado é evidente”.

É constante nele, porém, a preocupação de repetir, com a mesma clareza, que, “nas suas expressões oficiais, nos seus documentos autênticos, o Vaticano II não pode ser considerado responsável por essa evolução, que, pelo contrário, contradiz radicalmente tanto a letra como o espírito dos Padres conciliares”.

Diz ainda: “Estou convencido de que os danos encontrados nestes últimos anos não são atribuíveis ao Concílio ‘verdadeiro’, mas ao desencadear-se, no interior da Igreja, de forças latentes agressivas, centrífugas, talvez irresponsáveis ou simplesmente ingênuas, de um otimismo fácil, de uma ênfase quanto à modernidade que confundiu o hodierno progresso técnico com um progresso autêntico, integral. E, no exterior, ao impacto de uma revolução cultural: a afirmação, no Ocidente, do estrato médio-superior, da nova ‘burguesia do terciário’, com a sua ideologia liberal-radical, marcada pelo individualismo, racionalismo e hedonismo”.

Portanto, a sua ordem de comando, a exortação que dirigiria a todos os católicos que quisessem permanecer católicos, não é certamente um “meia volta, volver”, e sim um “voltar aos textos autênticos do Vaticano II autêntico”.

Para ele, repete-me, “defender hoje a Tradição verdadeira da Igreja significa defender o Concílio. É também nossa culpa se alguma vez demos pretexto (tanto à ‘direita’ como à ‘esquerda’) para pensar que o Vaticano II tenha sido uma ‘ruptura’, uma fratura, um abandono da Tradição. Existe, pelo contrário, uma continuidade que não permite nem retorno para trás nem fugas para adiante; nem nostalgias anacrônicas nem impaciências injustificadas. É ao hoje da Igreja que devemos permanecer fiéis, não ao ontem nem ao amanhã: e esse hoje da Igreja são os documentos do Vaticano II em sua autenticidade. Sem reservas que os amputem. E sem arbítrios que os desfigurem”.

Uma receita contra o anacronismo

Crítico da “esquerda”, Ratzinger mostra-se também inequivocamente severo para com a “direita”, para com aquele tradicionalismo cujo símbolo maior é o velho arcebispo Marcel Lefebvre. Disse-me a este respeito: “Não vejo futuro algum para uma posição que se obstina em uma recusa fundamental do Vaticano lI. De fato, ela é ilógica em si mesma. Com efeito, o ponto de partida dessa tendência é a mais rígida fidelidade ao ensinamento, particularmente, de Pio IX e de Pio X e, ainda mais profundamente, do Vaticano I com a sua definição do primado do Papa. Mas por que os Papas até Pio XII e não além? A obediência à Santa Sé será talvez passível de divisão segundo as datas ou segundo a consonância de um ensinamento com as próprias convicções já estabelecidas?”

Permanece, porém, o fato – observo eu – de que Roma interveio “à esquerda”, mas até agora não interveio “à direita” com o mesmo vigor.

Diz ele como resposta: “Os seguidores de Dom Lefebvre dizem justamente o contrário. Eles afirmam que, enquanto se interveio logo com a severa pena da suspensão com relação a um benemérito Arcebispo aposentado, se tolera, de modo incompreensível, todas as formas de desvios da parte oposta. Não quero envolver-me em uma polêmica sobre a maior ou menor severidade para com uma tendência ou outra. De resto, os dois tipos de oposição apresentam características muito diferentes. Os desvios ‘à esquerda’ representam indubitavelmente uma vasta corrente do pensamento e da iniciativa contemporânea na Igreja; no entanto, praticamente em parte alguma assumiram uma forma comum juridicamente definível. O movimento do arcebispo Lefebvre, ao contrário, é provavelmente muito menos amplo numericamente, mas dotado de uma ordenação jurídica bem definida, com seminários, instituições religiosas etc. É claro que se deve fazer todo o possível para que esse movimento não dê origem a um cisma, em sentido próprio, o que aconteceria no momento em que Dom Lefebvre resolvesse consagrar um bispo. Graças a Deus, até agora, na esperança de uma reconciliação, ele não o fez. Hoje, no âmbito ecumênico, deplora-se que, no passado, não se tenha feito mais para impedir as divisões pouco a pouco emergentes, através de uma maior disponibilidade para a reconciliação e a compreensão entre as partes. Pois bem, isso devia valer como padrão de comportamento também para nós, no tempo presente. Devemos nos empenhar em prol da reconciliação até onde e enquanto esta for possível, utilizando para esse fim todas as oportunidades que nos são concedidas”.

Mas Lefebvre ordenou, retruco eu, e continua a ordenar sacerdotes.

“Pelo Direito da Igreja são ordenações ilícitas, mas não inválidas. Deve-se considerar também o lado humano desses jovens, que, para a Igreja, são padres ‘de verdade’, ainda que em uma situação irregular. O ponto de partida e a orientação de cada um são, certamente, variados. Alguns foram fortemente influenciados por sua situação familiar e aceitaram a decisão desta última. Em outros tiveram participação desilusões quanto à Igreja atual, desilusões que os levaram à amargura e à negação. Outros, ainda, desejariam colaborar plenamente com a atividade pastoral normal da Igreja, mas na sua opção deixaram-se determinar pela situação insatisfatória que acabou se criando nos seminários de alguns países. Portanto, assim como existem os que, de algum modo, sofreram a divisão, há também muitos outros que anseiam pela reconciliação e somente por tal esperança permanecem na comunidade sacerdotal de Dom Lefebvre,’

A sua receita para “desarticular” o caso Lefebvre e outras resistências anacrônicas parece fazer eco à dos últimos Papas, de Paulo VI até hoje: “Situações semelhantes, tão absurdas, puderam manter-se até hoje por nutrirem-se exatamente da arbitrariedade e da imprudência de certas interpretações pós-conciliares, de rumo oposto. É preciso um ulterior esforço para mostrar a verdadeira face do concílio; poder-se-á, dessa forma, eliminar tais falsos protestos”.

Espírito e ante espírito

Mas, quanto ao Concílio “verdadeiro”, digo eu, as opiniões são discordantes. Exceto os fatos daquele “neotriunfalismo” irresponsável ao qual se referia e que se recusa a enxergar a realidade, geralmente todos estão de acordo em que a situação atual da Igreja é de dificuldade. Mas as opiniões divergem tanto em relação ao diagnóstico como em relação à terapia. O diagnóstico de alguns é que os vários aspectos da dificuldade, se não da crise, são apenas febres benéficas de um período de crescimento. Para outros, ao contrário, são sintomas de uma doença grave. Quanto à terapia, os primeiros pedem uma maior aplicação do Vaticano II, ultrapassando mesmo os seus textos. Os segundos, uma dose menor de reformas e de mudanças. Como escolher? A quem dar razão?

Responde ele: “Como explicarei amplamente, o meu diagnóstico é que se trata de uma autêntica crise, que, como tal, deve ser tratada e curada. Assim, para essa cura, reafirmo que o Vaticano II é uma realidade a ser aceita plenamente. Com a condição, porém, de não ser considerado apenas como um ponto de partida, do qual se deve afastar correndo, mas sim como uma base sobre a qual construir constantemente em profundidade. Estamos descobrindo hoje, portanto, a sua função profética: alguns textos do Vaticano II, no momento de sua proclamação, pareciam realmente adiantar-se aos tempos então vividos. Vieram a seguir revoluções culturais e terremotos sociais que os Padres conciliares nem podiam prever, mas que demonstravam como aquelas respostas – então antecipadas – eram as que, a seguir, se fariam necessárias. Portanto, retomar aos documentos é de particular atualidade: eles nos proporcionam instrumentos exatos para enfrentar os problemas de hoje. Somos chamados a reconstruir a Igreja, não apesar do, mas graças ao Concílio verdadeiro”.

A esse ,Concílio “verdadeiro”, para permanecer ainda em seu diagnóstico, “já durante as sessões e, a seguir, cada vez sempre mais, no período sucessivo, opôs-se um auto-intitulado ‘espírito do Concílio’ que, na verdade, é o seu verdadeiro ‘antiespírito’. Segundo esse pernicioso antiespírito – Konzils-Ungeist, para dizê-lo em alemão -, tudo o que é ‘novo’ (ou como tal presumido: quantas antigas heresias reapareceram nestes anos apresentadas como novidade!) seria sempre, e de qualquer forma, melhor do que o que existiu ou existe. É o antiespírito, segundo o qual se deveria começar a história da. Igreja a partir do Vaticano II, visto como uma espécie de ponto zero”.

“Não ruptura, mas continuidade”

Acerca disso, ele me confirma que deseja ser bastante exato: “É preciso opor-se decididamente a esse esquematismo de um antes e de um depois na história da Igreja, totalmente injustificado pelos próprios documentos do Vaticano II, que outra coisa não fazem senão reafirmar a continuidade do catolicismo. Não existe uma Igreja ‘pré’ ou ‘pós’ conciliar: existe uma só e única Igreja, que caminha rumo ao Senhor, aprofundando sempre mais e compreendendo sempre melhor a bagagem da fé que Ele mesmo lhe confiou. Nessa história não existem saltos, não existem rupturas, não há solução de continuidade. O Concílio de modo algum pretendia introduzir uma divisão no tempo da Igreja”.

Continuando sua análise, lembra que “a intenção do Papa que teve a iniciativa do Vaticano II, João XXIII, e daquele que fielmente lhe deu continuidade, Paulo VI, não era de forma alguma pôr em discussão o depositum jidei, que, pelo contrário, ambos tinham como indiscutível, como algo já em segurança”.

O senhor pretende realçar mais, como fazem alguns, a intenção mais pastoral do que doutrinai do Vaticano II?

“Quero dizer que o Vaticano II não pretendia certamente ‘mudar’ a fé, e sim apresentá-la de modo mais eficaz. Quero dizer, além disso, que o diálogo com o mundo só é possível quando baseado em uma identidade clara; que se pode e se deve ‘abrir’, mas somente quando se assumiu a própria identidade e, portanto, se tem algo a dizer. A identidade firme é condição da abertura. Assim entendiam os Papas e os Padres conciliares, alguns dos quais certamente levaram a um entusiasmo que nós, a partir de nossa perspectiva atual, podemos julgar pouco crítico e pouco realista. Mas, se pensaram poder abrir-se a tudo o que de positivo existe no mundo moderno, foi justamente porque estavam certos de sua própria identidade, estavam certos de sua fé. Enquanto por parte de muitos católicos houve nestes anos um escancarar-se ao mundo, isto é, à mentalidade moderna dominante, sem filtros nem freios, pondo em discussão, ao mesmo tempo, as bases mesmas do depositum Fidei que, para muitos, não eram mais claras.”

Continua ele: “O Vaticano II tinha razão em almejar uma revisão nas relações entre Igreja e mundo. Com efeito, existem valores que, nascidos fora da Igreja, podem encontrar seu lugar – uma vez revistos e corrigidos – na visão dela. Nestes anos, procurou-se realizar tal tarefa. Mas demonstraria desconhecer tanto a Igreja como o mundo quem pensasse que estas duas realidades podem se encontrar sem conflitos, ou até mesmo possam identificar-se”.

Está talvez propondo voltar à velha espiritualidade da “oposição ao mundo”?

“Não são os cristãos que se opõem ao mundo. É o mundo que se opõe a eles quando é proclamada a verdade sobre Deus, sobre Cristo e sobre o homem. O mundo revolta-se quando o pecado e a graça são chamados por seus próprios nomes. Depois da fase das ‘aberturas’ indiscriminadas, é tempo de o cristão reencontrar a consciência de pertencer a uma minoria e de estar muitas vezes em oposição ao que é óbvio e natural para aquilo que o Novo Testamento chama – e certamente não em um sentido positivo – o ‘espírito mundano’. É tempo de se reencontrar a coragem do anticonformismo, a capacidade de se opor, de denunciar muitas das tendências da cultura que nos cerca, renunciando a certa eufórica solidariedade pós-conciliar.”

Restauração?

Foi nesse ponto – também aqui, como durante toda a nossa conversa, o gravador chiava no silêncio do quarto que dava para o jardim do seminário – que fiz ao Cardeal Ratzinger a pergunta cuja resposta suscitou fortíssimas reações no mundo inteiro. Reações devidas também às maneiras incompletas com que ela foi transmitida e ao conteúdo emotivo da palavra em questão (“restauração”), que nos transporta a épocas históricas certamente não repetíveis e nem mesmo desejáveis, pelo menos em nossa opinião.

Perguntei, pois, ao Prefeito da Fé: Mas então, prestando atenção ao que o senhor diz, pareceria não estarem errados os que afirmam que a hierarquia da Igreja estaria pretendendo encerrar a primeira fase do pós-concílio; e
que, embora não retomando ao pré-concílio, mas aos documentos “autênticos” do Vaticano II, a mesma hierarquia pretenderia promover uma espécie de “restauração”.

Eis a resposta textual do Cardeal: “Se por ‘restauração’ se entende um voltar atrás, então nenhuma restauração é possível. A Igreja caminha para a frente, rumo à realização da história, olha adiante, para o Senhor que vem. Não, para trás não se torna nem se pode tornar. Nenhuma ‘restauração’, portanto, neste sentido. Mas, se por ‘restauração’ compreendemos a busca de um novo equilíbrio (die Suche auf ein neues Gleichgewicht) após os exageros de uma indiscriminada abertura ao mundo, após as interpretações por demais positivas de um mundo agnóstico e ateu, pois bem, então uma ‘restauração’ entendida nesse sentido (isto é, um equilíbrio redescoberto da orientação e dos valores no âmbito da totalidade católica), uma tal ‘restauração’ é absolutamente almejável e, aliás, já está em ação na Igreja. Neste sentido pode-se dizer que se encerrou a primeira fase após o Concílio Vaticano II”*.

—————————————————————————————————–

*Em muitos comentários jornalísticos a esta resposta, a palavra “restauração” não foi assumida com todas as explicações necessárias e que aqui foram transmitidas. Por isso, interpelado por um jornal, o Cardeal Ratzinger declarava o seguinte, em uma carta: “Primeiramente, quero recordar simplesmente o que eu realmente disse: não é possível retorno algum ao passado; uma restauração assim compreendida é não só impossível como também indesejável. A Igreja caminha para a frente rumo à realização da história, olha adiante, para o Senhor que vem. Se, porém, a palavra ‘restauração’ é compreendida segundo o seu conteúdo semântico, quer dizer, como recuperação de valores perdidos dentro de uma nova totalidade, então diria que é justamente esta a tarefa que se impõe hoje, no segundo período do pós-Concílio. No entanto, para nós, homens contemporâneos, a palavra ‘restauração’ é de tal modo determinada linguisticamente que se torna difícil atribuir-lhe tal significado. Na realidade, ela quer dizer literalmente a mesma coisa que a palavra ‘reforma’, termo esse que soa, para nós, totalmente diferente. “Talvez possa esclarecer com um exemplo tirado da história. Para mim, Carlos Borromeu é a expressão clássica de uma verdadeira reforma, isto é, de uma renovação que avança exatamente porque ensina, de uma maneira nova, os valores permanentes, tendo presente a totalidade do fato cristão e a totalidade do homem. Certamente pode-se dizer que Caro los Borromeu, sem por isso ter retomado à Idade Média, reconstruiu (‘restaurou’) a Igreja Católica, que, também na região milanesa, estava praticamente destruída. Pelo contrário, ele criou uma forma moderna de Igreja. Quão pouco ‘restauradora’ fosse uma tal ‘reforma’ pode-se perceber na supressão de uma ordem religiosa então em decadência, levada a efeito por Carlos, que confiou os bens dela a novas comunidades vivas. Quem hoje possui semelhante coragem, de declarar definitivamente pertencente ao passado aquilo que já está morto por dentro (continuando a viver tão-somente exteriormente) e de confiá-lo com descortínio às energias do tempo novo’ Muitas vezes, novos fenômenos de reavivamento cristão são hostilizados justamente pelos que se auto-intitulam reformadores, os quais, por sua vez, defendem obstinadamente instituições que ainda continuam a existirão- somente pela contradição com elas mesmas.

“Em Carlos Borromeu, portanto, pode-se ver aquilo que eu quis dizer com ‘reforma’ ou ‘restauração’ em seu sentido original: viver na tensão rumo a uma totalidade, viver de um ‘sim’ que reconduz à unidade as forças da existência humana reciprocamente em conflito; um ‘sim’ que lhes confere um sentido positivo no interior da totalidade. Em Carlos pode-se ver ainda qual o pressuposto essencial para uma tal renovação. Carlos pôde convencer outros porque ele mesmo era um homem convicto. Pôde resistir, com sua certeza, em meio às contradições do seu tempo porque ele mesmo as vivia. E podia vivê-las porque era cristão no sentido mais profundo da palavra, isto é, totalmente centrado em Cristo. Restabelecer essa relação integral com Cristo é o que realmente conta. Dessa relação integral com o Cristo não se pode convencer ninguém apenas argumentando, mas se pode vivê-la e, através disso, torná-Ia crível aos outros; convidar os outros a partilhá-la.”

——————————————————————————————————-

Efeitos imprevistos

É que para ele, como me explica, “a situação mudou, o clima piorou muito, comparado com aquele que alimentava uma euforia cujos frutos aí estão, diante de nós, como uma advertência. O cristão é obrigado a ter esse realismo que outra coisa não é senão atenção completa aos sinais do tempo. Por isso excluo que se possa pensar irrealisticamente em retomar a estrada, como se o Vaticano II jamais tivesse acontecido. Muitos dos resultados concretos, tais como os que vemos agora, não correspondem às intenções dos Padres conciliares, mas certamente não podemos dizer: ‘Teria sido melhor que não tivesse acontecido’. O Cardeal John Henry Newman, o historiador dos Concílios que passou do anglicanismo ao catolicismo, dizia: que o Concílio é sempre um risco para a Igreja, que, portanto, só deve convocá-lo para poucas coisas e não prolongá-lo por muito tempo. É verdade que as reformas exigem tempo e paciência, expõem a riscos, mas também aqui não é lícito dizer: ‘Não as façamos, porque são perigosas’. Creio, antes, que o tempo verdadeiro do Vaticano II ainda não chegou, que a sua acolhida autêntica ainda não teve início: os seus documentos foram imediatamente sepultados por uma avalancha de publicações muitas vezes superficiais ou francamente inexatas. A releitura da letra dos documentos poderá fazer-nos descobrir o seu verdadeiro espírito. Redescobertos dessa forma, na sua verdade, aqueles grandes textos poderão nos possibilitar a compreensão do que aconteceu e reagir com novo vigor. Repito: o católico que, com lucidez e, portanto, com sofrimento, vê os danos produzidos na sua Igreja pelas deformações do Vaticano II, nesse mesmo Vaticano II deve encontrar a possibilidade da recuperação. O Concílio é seu, e não daqueles que querem continuar em uma estrada cujos resultados foram catastróficos. Não é daqueles que,não por acaso, não sabem mais o que fazer com o Vaticano II, olhando-o como um ‘fóssil da era clerical. “

Comentou-se, digo eu, que o Vaticano II é um unicum também porque é, talvez, o primeiro Concílio da história que não foi convocado sob pressão de exigências prementes, de crises, mas em um momento que parecia de tranquilidade para a vida eclesial. As crises vieram depois, e não apenas na Igreja, mas na sociedade inteira. Não crê se possa dizer que, de qualquer modo, a Igreja teria enfrentado essas revoluções culturais eque, sem o Concílio, a sua estrutura teria sido mais rígida e os danos mais graves? Sua estrutura  pós-conciliar, mais flexível e mais elástica, não pôde talvez absorver melhor o impacto, embora pagando um preço de qualquer modo necessário?

“É impossível dizê-lo”, responde ele. “A história, sobretudo a história da Igreja, que Deus guia através de percursos misteriosos, não se faz com os ‘se’; devemos aceitá-la como ela é. Naqueles inícios dos anos 60, estava para aparecer em cena a geração do pós- guerra, que não participou diretamente da reconstrução, encontrando um mundo já reconstruído e que, portanto, procurava alhures motivos de empenho, de renovação. Havia uma atmosfera geral de otimismo, de confiança no progresso. Todos na Igreja partilhavam, portanto, da expectativa de uma evolução tranquila da sua doutrina. Não se deve esquecer que também o meu antecessor no Santo Ofício, o Cardeal Ottaviani, apoiava o projeto de um Concílio Ecumênico. Após o anúncio da sua convocação, feito pelo Papa João XXIII, a Cúria Romana trabalhou juntamente com os representantes mais estimados do episcopado mundial, preparando aqueles esquemas que, depois, foram postos de lado pelos Padres conciliares como ‘teóricos demais, manualísticos e muito pouco pastorais’. O Papa João XXIII não tinha considerado a possibilidade de uma recusa: ele esperava uma votação rápida e sem dificuldades desses projetos, que ele tinha lido e acolhido com agrado. É claro que nenhum daqueles textos queria modificar a doutrina; tratava-se, antes, de reapresentá-la, quando muito para chegar à explicitação de algum ponto ainda não precisamente definido, e, desse modo, desenvolvê-lo ulteriormente. Também a recusa dos textos, por parte dos Padres conciliares, não dizia respeito à doutrina como tal, mas antes ao modo insuficiente da sua apresentação e, certamente, também a algumas definições que nunca tinham sido feitas até aquele momento e que, ainda hoje, não são julgadas necessárias. É preciso reconhecer, portanto, que o Vaticano II, desde o início, não tomou o rumo que João XXIII previa (recorde-se que países como a Holanda, a Suíça e os Estados Unidos eram verdadeiras fortalezas do tradicionalismo e da fidelidade a Roma!). E deve-se reconhecer também que, pelo menos até agora, não foi atendida a prece do Papa João XXIII para que o Concílio significasse para a Igreja um novo salto à frente, uma vida e uma unidade renovadas.”

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.