O Menino, o rei e o bom velhinho

No Natal, os cristãos comemoram o nascimento de Jesus Cristo. Aconteceu
há cerca de 2 mil anos, quando ainda não se fazia registro do
nascimento, com lugar, dia e hora; isso é bastante recente. Mas quem
duvidaria que Jesus nasceu e existiu? Vinte séculos de testemunhos
ininterruptos mantiveram viva sua memória, apesar das tentativas de
apagar sua lembrança da história. Perseguições aos seus seguidores,
regimes totalitários ou simplesmente movimentos culturais já se
propuseram eliminar, depurar ou passar para a posteridade de maneira
distorcida o legado de Jesus Cristo para a humanidade. Não conseguiram.

Isso já começou logo que Jesus nasceu. Conta-nos o evangelista São
Mateus que o rei Herodes, encarregado romano de governar a Judeia, ao
saber que em Belém havia nascido um menino, procurado e admirado por
gente de toda parte, ficou assustado e quis saber mais sobre o pequeno:
era Jesus, filho de Maria, casada com José, o Carpinteiro de Nazaré.
Sábios e intérpretes das Escrituras Sagradas afirmavam ao rei que as
profecias sobre o ressurgimento do reino de Davi apontavam para Belém e o
futuro rei poderia ser esse mesmo, o pequeno que acabara de nascer.
Herodes, enciumado e furioso, tentou eliminá-lo já no berço, mas não
conseguiu; o bom José tomou o menino e sua mãe e fugiu com eles para o
Egito. Enquanto isso, Herodes espalhava terror e luto em Belém e
arredores, com a ordem para que todos os meninos abaixo de 2 anos de
idade fossem mortos (cf Mt 2).

Nos primeiros tempos do Cristianismo, os cristãos comemoraram mais a
Páscoa do que o Natal; o anúncio do Evangelho estava centrado sobretudo
no significado dos padecimentos, da morte e ressurreição de Jesus, no
início da pregação dos apóstolos e no surgimento prodigioso da Igreja.
Aos poucos, porém, também foi incluída a reflexão sobre a origem de
Jesus, seu nascimento e infância, que a Igreja comemora no Natal (cf Mt
1-2; Lc 1-2).

Teólogos e pregadores dos séculos seguintes elaboraram  reflexões de
extraordinária beleza e profundidade sobre esta primeira etapa da vida
de Jesus, partindo da fé dos cristãos: nesse menino, o próprio Deus veio
ao encontro da humanidade e assumiu nossa condição frágil e precária,
para redimi-la e dar-lhe sentido e perspectiva de futuro. A Liturgia
católica do Natal ainda conserva algumas dessas jóias, que o pensamento
teológico lapidou naquela época: “ó Deus, nesta noite santa, o céu e a
terra trocam seus dons… No momento em que vosso Filho assume a nossa
fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade!”

São Nicolau, um bispo do 4º século nascido em Mira, na atual Turquia, e
cujo sarcófago está conservado na catedral de Bari, no sul da Itália,
compreendeu isso muito bem: na festa do Natal, saía pelas ruas
distribuindo presentes aos pobres, sobretudo às crianças. Queria, assim,
compartilhar a festa e a alegria com todos porque o Natal de Jesus era
um imenso presente de Deus para a humanidade inteira! Talvez nasceu aí a
tradição dos presentes de Natal e da festa contagiante, que também hoje
se faz.

Na Idade Média, São Francisco de Assis não se cansava de contemplar o
“sublime mistério” do Natal: o Grande Deus veio a nós na simplicidade e
na fragilidade de uma criança! Alguém poderia ter imaginado algo assim?!
Ninguém mais precisa ter medo de se aproximar do Eterno! Os braços
estendidos do menino são o abraço de Deus, que acolhe a todos com
infinita ternura! Francisco, poeta e cantor da beleza, quis que a cena
do Natal de Jesus, narrada nos Evangelhos, fosse percebida concretamente
e “criou” o presépio, com a ambientação e os figurantes dos relatos
bíblicos sobre o nascimento de Jesus. A tradição dos presépios no Natal
espalhou-se rapidamente pelo mundo cristão.

Os tempos modernos deram-se conta de que o Natal tinha um apelo
comercial muito bom e vendia bem! Natal virou coisa para comprar! E para
promover melhor o seu consumo, foi criado um garoto-propaganda, chamado
Papai Noel, o “bom velhinho”, de barbas brancas, botas, roupão vermelho
e gorro de lã…  Alguma coisa nele ainda lembra o bispo São Nicolau,
de outros tempos, que distribuía presentes de verdade! Papai Noel saiu
da fantasia, talvez de trenó puxado por renas imaginárias, lá dos
espaços nórdicos, onde faz frio nesta época do ano. Mas deu-se muito bem
nos trópicos também… Que importa um pouco de suor debaixo das pesadas
roupas invernais? Doce fantasia, que encanta crianças e também agrada a
adultos!

Natal se tornou a festa de Papai Noel. E o menino Jesus, onde ficou? Não
era dele a festa? Será que o “bom velhinho” – hô-hô-hô -, na sua
pachorra, vai conseguindo o que Herodes não conseguiu com sua ira –
eliminar o menino da cena? Presépio? Em seu lugar, uma árvore enfeitada
de desejos coloridos; duendes e bruxas, em lugar do menininho de braços
estendidos; bichinhos da Disney em lugar dos pastores de Belém e suas
ovelhas; e uma infinidade de pacotes e de doces em vez do ouro, incenso e
mirra, oferecidos pelos reis magos ao menino Jesus!

Pois é… quase tudo como no começo! Quando Maria estava para dar à luz,
José, muito aflito, batia de porta em porta e procurava um lugar em
Belém para que o Filho de Deus pudesse nascer entre os homens. São Lucas
informa apenas: “não havia lugar para eles”. Por isso, Jesus veio ao
mundo num abrigo para animais, fora da cidade. Na cidade não havia lugar
para ele. E, no entanto, continua atual o anúncio do anjo aos pastores
nos campos gelados de Belém: “não tenhais medo! Eis que vos anuncio uma
boa notícia, e será boa também para todo o povo! Hoje nasceu para vós um
salvador, que é o Cristo, Senhor”! Mais atual do que nunca!

***
Card. Odilo P. Scherer

Arcebispo de São Paulo – SP

Publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO, ed. de 10.12.2011

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.