Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 490 – Ano: 2003 – p. 157
por Gerd Theissen e Annette Merz
Em nossos dias muito têm escrito sobre o Jesus Histórico (tal como Ele terá sido na Palestina) repórteres não especializados no assunto: fazendo sensacionalismo, negam quase por completo a imagem clássica de Jesus em favor de outra imagem ou de um Jesus libertino; alguns chegam a dizer que quase nada se pode saber a respeito de Jesus, tal seria a índole lendária dos Evangelhos.
Sobre este pano de fundo vem muito a propósito o livro acima apresentado1. Deve-se a dois pesquisadores especializados que investigaram a fidelidade histórica dos Evangelhos e a imagem de Jesus aí delineada concluindo em favor da credibilidade dos textos de Mt, Mc, Lc e Jo. A obra se apresenta em forma de manual, de modo que cada capítulo termina com Sumário, Reflexões e Tarefa a executar.
Percorreremos a obra, que, após uma introdução (História da Pesquisa sobre a Vida de Jesus), compreende três densas partes:
I. As Fontes da Vida de Jesus e sua Avaliação;
II. Estrutura da História de Jesus (geografia, história geral, arqueologia…);
III. A Atuação e a Pregação de Jesus.
Parte I. As Fontes
Os autores examinam as fontes cristãs e as não cristãs, levam em conta a literatura apócrifa e, à guisa de conclusão, propõem treze objeções contra a historicidade dos Evangelhos acompanhadas de argumentos que as contestam. Donde se vê que os dois autores, com pleno conhecimento de causa, afirmam a fidelidade histórica dos evangelistas. Eis um espécimem desse confronto de razões pró e contra a historicidade (procede do relativo silêncio das fontes não cristãs [judaicas e pagãs] sobre Jesus).
1. O “silêncio” das fontes não-cristãs
As fontes não-cristãs contemporâneas silenciam amplamente sobre Jesus. Mesmo em pontos em que esperaríamos uma nota sobre ele, não encontramos nenhum relato a seu respeito.
Filon de Alexandria (morte 42/50 d.C.), contemporâneo de Jesus narra sobre Pilatos:
“Aqui poderíamos relatar sua corrupção, violência, roubos, maus-tratos, ofensas, execuções sem processos, assim como sobre sua crueldade interminável e intragável” (LegGai, 302). Sobre Jesus não há nada.
Justo de Tiberíades, contemporâneo de Flávio Josefo, redigiu uma “crônica dos reis judeus” e uma “história da guerra judaica”. Segundo Fócio de Contantinopla (c. 820-886 d.C.), que conhecia esta obra hoje perdida ele também deixou de mencionar Jesus (Fócio, cód. 13).
Contra-argumentos:
1.1. Fontes antigas silenciam sobre muitas pessoas de cuja historicidade não se pode duvidar.
João Batista é citado em Josefo (Ant 18, 116-119) e em textos mandeus, mas não em Filon, Paulo ou escritos rabínicos.
Paulo de Tardo é testemunhado por cartas autênticas, mas não é citado por Josefo nem por outros autores não-cristãos.
O Mestre de Justiça só é conhecido dos próprios escritos de Qumran, mas não há nenhuma notícia sobre ele nos antigos relatos sobre os essênios que chegaram até nós (Josefo, Filon, Plínio Velho).
Rabbi Hillel, o fundador da tradição da escola dos hillelitas, nunca é citado por Josefo, apesar de este se confessar adepto dos farisaísmo.
Bar Kochba, o líder messiânico da guerra judaica contra os romanos de 132-135 d.C., é relegado ao silêncio por Díon Cássio em sua narrativa sobre essa revolta.
1.2. As menções a Jesus em historiadores antigos rebatem as dúvidas sobre sua historicidade.
As notícias sobre Jesus em autores judeus e pagãos apresentadas no § 3 – especialmente em Josefo, na carta de Sarapião e em Tácito – mostram que na Antigüidade a historicidade de Jesus era pressuposta, e com razão, como demonstram duas observações sobre as fontes supracitadas:
– As informações sobre Jesus são independentes entre si. Três autores, de contextos distintos, utilizam informações sobre Jesus de maneira autônoma: um aristocrata e historiador judeu, um filósofo sírio, e um homem de estado romano e historiador.
– Todos os três sabem da execução de Jesus, ainda que de formas diferentes: Tácito responsabiliza Pôncio Pilatos, Mara bar Sarapion o povo judeu, o Testimonium Flavianum (provavelmente) uma cooperação entre a aristocracia judaica e o governador romano. A execução foi chocante para qualquer “Jesulatria”; como “escândalo”, ela não pode ter sido inventada (cf. 1Cor , 18ss)”.
O leitor talvez não esteja acostumado a este tipo de argumentação, mas poderá apreciar a seriedade e o acume científico de Theissen e Merz:
Passemos à
Parte II – A Estrutura da História de Jesus
Os autores da obra estudam as circunstâncias históricas sociais, econômicas e religiosas em que Jesus viveu. Procuram caracterizar os elementos básicos do judaísmo contemporâneo a Cristo; referem o surgimento dos partidos políticos judaicos. Consideram a vida pública de Jesus e discutem a data da morte dele.
Por fim, examinam o ambiente geográfico em que Jesus levou vida oculta e pregou (Galiléia) assim como o cenário de sua Paixão, morte e ressurreição (Judéia e Jerusalém). E concluem frente às novas hipóteses sobre a topografia da vida de Jesus, lembrando o testemunho das primeiras gerações cristãs :
“Novas datações, novas descobertas, novas interpretações podem a todo momento pôr em questão a imagem já estabelecida. Devemos contar com o fato de que já num estágio bem inicial lugares e trajetos de Jesus foram identificados com determinados lugares e relíquias – provavelmente já no século I d.C. Tais identificações não precisam ser exatas, mas tão pouco necessariamente falsas” (p. 202).
Assim os dois autores se apoiam na tradição iniciada pelos primeiros cristãos frente a hipóteses recentes menos baseadas no concreto da arqueologia.
Parte III. A Atuação e a Pregação de Jesus
Uma vez afirmada a fidelidade histórica dos Evangelhos, a obra em foco volta-se para a figura de Jesus e analisa os diversos aspectos de sua vida pública e seu desenlace. São levados em conta o Jesus carismático (suas relações sociais), o Jesus Profeta, o Jesus que cura, o Jesus Poeta (autor das Parábolas), o Jesus Mestre, o Jesus Fundador de um Culto, o Jesus Mártir, o Jesus ressuscitado e os Primórdios da Cristologia.
Limitar-nos-emos a considerar o que dizem Theissen e Merz a respeito dos milagres e da ressurreição de Jesus:
a) Jesus Taumaturgo
“Esse carisma de realizar milagres encontra-se em muitas pessoas. Pode-se lidar com ele de forma responsável ou irresponsável. Visto que aparece espontaneamente e permanece dependente de interação e confiança, é natural interpretá-lo em termos religiosos. Jesus possuía tais dons “para-normais” num grau extraordinário. Ele soube vinculá-los com o núcleo de sua mensagem e dar-lhes uma fascinante interpretação religiosa: via neles a irrupção do novo mundo. Em seus milagres anunciam-se possibilidades que as pessoas terão em medida muito maior se derem o passo rumo ao novo mundo a partir do velho. Para Jesus, são expressão da vontade salvífica de Deus que ele próprio corporífica em sua atividade. Tal carisma de realizar milagres interpretado em termos religiosos também é socialmente condicionado. A tradição de Jesus mostra isso várias vezes. O carismático taumaturgo não pode agir sem a “fé do mundo circundante (Mc 6, 5s)” (p. 337).
b) Jesus Ressuscitado
“A Páscoa é de central importância para a compreensão de Jesus e a auto-compreensão dos seres humanos. Paulo vincula ambas ao objetar aos que negam a ressurreição: “E, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é ilusória, estais ainda em vossos pecados, … somos os mais dignos de pena de todos os homens” (1Cor 15, 17-19). Segundo a concepção de Paulo, a postura ante a ressurreição de Jesus é decisiva para o sentido ou a falta de sentido da fé em Jesus, para a prisão no pecado ou o perdão dos pecados, para a miséria humana ou sua superação. De fato, com a fé pascal se decide se o indivíduo pode ver na história de Jesus a razão de sua própria existência. A Páscoa é o sim de Deus como o sim das disciplinas e dos discípulos a Jesus – e isso valeria mesmo se não se compreendesse a fé pascal como razão desse sim, mas como sua expressão: como adesão humana à causa de Jesus apesar da cruz e do fracasso. Com a fé pascal se decide a “autocompreensão” humana. Se na fé pascal (ainda que seja com base em “visões subjetivas) se desvela algo último, então a morte e a angústia não têm a última palavra. Pois não importa como se pensa sobre a Páscoa, ela é um protesto contra a morte, em especial contra a morte violenta” (p. 502).
Estes poucos dados bastam para evidenciar que crer na fidelidade histórica dos Evangelhos não é atitude defasada ou ultrapassada, mas corresponde ao que meticulosas pesquisas põem em relevo. Não há dúvida, mais vale seguir estudiosos especialistas e credenciados do que atender a repórteres cuja profissão é propor aos leitores o “superinteressante”.
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1 Ed. Loyola, São Paulo 2002, 180 x 230 mm, 651 pp.