O Evangelho de Tomé

Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 425 – Ano 1997 – pág. 461

Em síntese:  O Evangelho de Tomé, recém-publicado em
português, é uma coletânea de 114 sentenças atribuídas a Jesus e pretensamente
recolhidas pelo Apóstolo S. Tomé.  Trata-se de um apócrifo de origem
gnóstica (dualista) incompatível com a literatura do Novo Testamento, que está
longe de professar uma gnose (conhecimento) oculta, reservada aos iniciados,
como também está longe de admitir antagonismo ontológico entre matéria (má) e
espírito (bom).

 Tornou-se famoso tanto na literatura erudita como na
de divulgação (revistas e jornais) o chamado “Evangelho de Tomé”,
Tomé que seria o Dídimo, o Gêmeo (alguns dizem mesmo … o Gêmeo de Jesus).
 É uma coletânea de 114 sentenças atribuídas a Jesus e pretensamente
recolhidas pelo apóstolo S. Tomé.  A obra, porém, é do século II e de
índole gnóstica, sendo, portanto, falsamente atribuída ao Senhor Jesus e a S.
Tomé Apóstolo.  Eis que no Brasil foi editada uma produção portuguesa do
texto do Evangelho de Tomé; é tradução feita a partir do inglês, que por sua
vez vertia o texto copta (egípcio antigo) dessa obra, sendo tradutor para o
inglês o Prof. Marvin Meyer, da chapman University.  A Editora Imago (Rua
Santos Rodrigues 201-A, Rio, RJ) publicou  o texto com um comentário do
prof. Harold Bloom, da New York University.

A fim de compreender melhor os dizeres ou lógia do Evangelho
de Tomé, examinemos em que consiste o Gnosticismo.

1.      O Gnosticismo

A palavra Gnosticismo vem de gnosis (= conhecimento, em
grego).  Significa uma corrente de pensadores que apregoavam a salvação
pelo conhecimento de verdades ocultas, reservadas a iniciados.  O gnóstico
não é um fiel (homem de fé), mas é um iniciado, que pretende possuir as
respostas para as angustiantes questões da metafísica.

O gnosticismo assumiu modalidades diversas, com algumas
notas comuns :

– o dualismo ou o antagonismo entre matéria (má) e espírito
(bom);

– a oposição entre o Criador do mundo visível ou Demiurgo,
que fez o universo material mau, e o Deus desconhecido, que é Luz e Bondade;

– o homem tem duas almas: a celeste, superior, e a pecadora,
inferior, ele se acha no corpo, prisioneiro da matéria e do tempo;

–         o homem
Jesus se opõe ao Verbo de Deus.

Existiram gnósticos pré-cristãos, principalmente judeus
(como eram os essênios de Qumran); gnósticos judeo-cristãos (os ebionitas, por
exemplo), e gnósticos extra-cristãos (os mandeus e os sabeus, que sobreviveram
na Mesopotâmia).

Como se vê, o gnosticismo compreende em seu bojo concepções
de judaísmo, do Cristianismo e do pensamento oriental.  As doutrinas dos
gnósticos dependentes do Cristianismo estão expressas em evangelhos e epístolas
apócrifos, ou seja, em obras dos séculos II – IV, que tinham a aparência de
livros bíblicos para se impor mais facilmente ao público cristão.

No plano moral o gnosticismo assumia duas posições extremas
de um lado, um ascetismo rigoroso, inspirado pelo horror ao corpo e à matéria,
e, de outro lado, um libertinismo total, devido à pretensão de que a salvação
estava garantida aos iniciados na gnose salvadora.

O Apocalipse de São João menciona dois grupos de gnósticos
da Ásia Menor: os discípulos de certo Balaão, que outrora foi pedra de tropeço
para os filhos de Israel no deserto, e os nicolaítas, que maldiziam o Deus do
Antigo Testamento e praticavam o libertinismo absoluto.

A gnose tornou-se altamente perigosa para a Igreja nascente,
pois utilizava proposições do Cristianismo e as desenvolvia de modo aberrante,
baseada em pretensas revelações secretas.

Consideremos agora o texto do

2.      Evangelho de Tomé: origem e
conteúdo

Em dezembro de 1945, vários felás (camponeses) egípcios,
entre os quais Muhammad Ali, do clã Al-Sammanm, deslocavam-se em seus camelos
perto de Jamal-al-tarif, um íngreme rochedo que acompanha o rio Nilo no Alto
Egito, perto da moderna cidade de Nag Hammadi.  Estavam procurando
sabaque, um fertilizante natural que existe na área.  Ao cavarem o solo,
para grande surpresa sua, descobriram um jarro com um recipiente selado em sua
parte superior como se houvesse uma tampa Muhammad hesitou antes de abrir o
jarro selado, pois temia que pudesse conter um djim ou espírito mau que,
liberto, perseguiria os homens.  Mas, pensando nas lendas relativas a
tesouros ocultos naquela área, resolveu quebrar o jarro com uma picareta e
percebeu fragmentos de papiro de cor dourada que cintilavam à luz do sol. 
Na verdade, ele assim havia descoberto três códices de papiro da biblioteca de
Nag Hammadi, na qual se encontrava o Evangelho de Tomé.

Este vem a ser uma coletânea de 114 sentenças (lógia, em
grego) de Jesus, sem alguma exposição narrativa como também sem o relato da Paixão
e morte do Senhor.  Na antigüidade não era raro confecionarem-se tais
coletâneas: assim, entre os judeus, havia os livros bíblicos dos Provérbios, do
Eclesiástico e do Eclesiastes, bem como o Tratado rabínico Pierkê Abôth (Ética
dos Pais); no Egito, havia as sentenças dos Sábios Amenemhat, Amenemops,
Ptah-hotep, shuruppak e Ahikar.  Entre os romanos, registram-se as
coletâneas chamadas chreiai (Sentenças Úteis) para fins pedagógicos.  Tal
seria também a coletânea dita Quelle (Q) fonte, que se supõe tenha recolhido
sentenças de Jesus, aproveitadas por Mateus e Lucas para redigirem seus
Evangelhos.

Julga-se que o Evangelho de Tomé foi originariamente escrito
em grego na Síria provavelmente em Edessa, onde a memória de Tomé era muito
reverenciada.  Terá sido composto em 200 ou em fins do século II.  O
texto encontrado em mag
Hammadi é copta, ou seja, redigido na língua egípcia usual no
período do Império greco-romano.

Antes de 1945, os estudiosos tinham conhecimento desse texto
apenas pelas referências que dele fizeram os escritores da Igreja antiga:
Hipólito de Roma (+ 235), Orígenes (+250), S. Cirilo de Jerusalém (+ 387).

A ordem das sentenças na coletânea que temos, parece casual.
Todavia em alguns casos percebe-se a intenção de agrupar os dizeres em torno de
uma palavra-chave (por exemplo,  as sentenças 25 e 26 empregam ambas as
palavras IRMÃO e OLHO): em outras ocasiões há interesses temáticos (por
exemplo, as sentenças 12 e 13 enfatizam a autoridade de Tiago, o Justo, e a
preeminente autoridade de Tomé); prevalece às vezes a semelhança de forma
literária (por exemplo, as sentenças 8-9. 63-65 e 96-98 são parábolas).

Examinemos agora

3.      Os Traços Gnósticos do
Evangelho de Tomé

3.1.        A
Recomendação da Gnose

A coletânea abre-se logo com a enfatização da gnose ou do
conhecimento:

Sentença 1: “Jesus disse: “Quem quer que descubra
a interpretação destas sentenças, não provará a morte”.

Sentença 2  faz-lhe eco: “Jesus disse: “Que
aquele que procura, não deixe de procurar até que encontre.  Quando
encontrar, ficará perturbado.  Quando estiver perturbado, ficará
maravilhado e dominará tudo”.

A sentença 3 continua : “Jesus disse: “Quando
vocês se conhecerem, serão conhecidos e compreenderão que são filhos do Pai
vivo.  Mas, se não se conhecem, então vivem na pobreza e são
pobreza”.

Sentença 5: “Jesus disse: “Conheça o que está
diante de sua face, e o que está oculto para você, ser-lhe-á revelado. 
Pois nada há oculto que não venha a ser revelado”.

Sentença 92: “Jesus disse: “Procurem e
encontrarão.  No passado não lhes falei sobre as coisas a respeito das
quais me indagavam.  Agora estou disposto a dizê-las, mas vocês não as
estão procurando”.

3.2.      Dualismo

Sentença 112: “Jesus disse: “Maldita a carne que
depende da alma. Maldita a alma que depende da carne”.

Sentença 15: “Jesus disse: “Quando virem alguém
que não nasceu de mulher, prosternem-se e adorem. Este é seu pai”.

Sentença 114: “Simão Pedro disse a eles: “Maria
deveria deixar-nos, pois as mulheres não são dignas da vida”.  Jesus
disse: “Eu a guiarei para fazer dela homem, de modo que também ela possa
tornar-se um espírito vivo, semelhante a vocês, homens.  Pois toda mulher
que se torne homem, entrará no reino do céu”.

Sentença 105: “Jesus disse: “Quem quer que conheça
o pai ou a mãe, será chamado filho de mãe prostituta”. – Com estas
palavras Jesus estaria condenando o próprio nascimento carnal.

3.3.  Sentenças Paradoxais

Sentença 112: “Jesus disse: “Sou a luz que está
sobre todas as coisas.  Sou tudo; de mim sai tudo, e a mim tudo
chegou.  Dividam um pedaço de madeira, aí estou.  Ergam a pedra, e aí
me encontrarão”.

Sentença 108: “Jesus disse: “Quem beber de minha boca,
se tornará como eu; eu próprio me tomarei essa pessoa, e as coisas ocultas
serão reveladas para essa pessoa”.

Sentença 106: “Jesus disse: “Quando de dois
fizerem um, vocês se tomarão filhos do homem, e quando vocês disserem:
Montanha, mova-se, ela se moverá”.

Os comentadores do Evangelho de Tomé apontam na literatura
gnóstica em geral, numerosos paralelos às sentenças de Jesus coletadas nesta
obra.

Esteja claro, porém, que se trata de um apócrifo de origem
dualista, não cristã, embora também haja nesse apócrifo várias sentenças
encontradas nos Evangelhos canônicos (por vezes numa forma literária um pouco
diversa).  Vejam-se, por exemplo, as sentenças 64-69. 73-79. 86.

APÊNDICE

À guisa de ilustração, reproduzimos mais algumas sentenças
do Evangelho de Tomé.  Podem impressionar pelo seu caráter misterioso, que
insinua conhecimentos reservados a poucos privilegiados:

22 “Jesus viu algumas criancinhas. Disse ele a seus
seguidores: “Essas crianças são como aqueles que entram no reino”.

Eles lhe disseram : “Então devemos entrar no reino como
criancinhas?”

Jesus lhe disse: “Quando de dois fizerem um, e o de
dentro for como o de fora, e o de fora for como o de dentro, e o de cima for
como o de baixo, e quando de homem e mulher fizerem um só, então o homem não
será homem nem a mulher será mulher, quando puserem olhos em lugar de um olho,
uma mão em lugar de uma mão, um pé em lugar de um pé, uma imagem em lugar de
uma imagem, então vocês entrarão (no reino)”.

23 Jesus disse: “Eu vos escolherei, um dentre mil e
dois dentre dez mil, e eles permanecerão como um só”.

24  Seus seguidores disseram : “Mostre-nos o lugar
onde vocês tá, pois temos de procurar por ele”.

Ele lhes disse: “Quem quer que tenha ouvidos deve
ouvir.  Há luz dentro de uma pessoa de luz, e a luz brilha sobre o
mundo.  Se não brilha, faz-se treva”.

25 “Jesus disse: “Ame seu irmão como sua alma,
proteja essa pessoa como a pupila de seu olho”.

26  “Jesus disse: “Você vê o cisco que está
no olho de seu irmão, mas não vê a trave que está em seu próprio olho. 
Quando tirar a trave de seu próprio olho, então você verá de modo
suficientemente claro para tirar o cisco do olho do seu irmão”.

47  “Jesus disse: “Uma pessoa não pode montar
dois cavalos ou curvar dois arcos. E um servidor não pode servir a dois
senhores, ou esse servidor honrará um e ofenderá outro.  Ninguém bebe
vinho envelhecido e imediatamente deseja beber vinho novo.  O vinho novo
não é posto em odres envelhecidos, ou estes podem quebrar, e vinho envelhecido
não é posto em odre novo, ou o vinho pode estragar.  Um pano velho não é
costurado em uma roupa nova, pois iria haver um rasgão”.

48  “Jesus disse: “Se dois fazem as pazes
entre si em uma mesma casa, dirão à montanha: “Mova-se”, e ela se
moverá”.   

49  “Jesus disse: “Felizes aqueles sozinhos e
escolhidos, pois encontrará o reino. Vocês vieram dele e retornarão a
ele”.

 

50  “Jesus disse: “Se lhes disserem: “De
onde vieram?”, digam-lhes: “Viemos da luz, do lugar onde a luz surgiu
por si, estabeleceu[-se] e apareceu em sua imagem”.  Se lhes
disserem: “Ela é vocês?” digam: “Somos seus filhos e somos os
escolhidos do pai vivo”.  Se lhes perguntarem: “Qual é a
evidência de seu pai em vocês?” digam-lhes: “É movimento e
repouso”.

51  “Seus seguidores disseram-lhe: “Quanto o
repouso para os mortos ocorrerá e quando virá o mundo novo ?”

Ele lhes disse: “O que vocês esperam já veio, mas vocês
não o conhecem”.

59  “Jesus disse: “Olhem para aquele que vive
enquanto vocês viverem, ou podem morrer e então tentar ver aquele que vive, e
não conseguirão vê-lo”.

60  “Ele viu um samaritano levando um cordeiro e
indo para a Judéia.  Ele disse a seus seguidores: “esse homem perto
do cordeiro”.

 

Disseram-lhe: “Ele pode matá-lo e comê-lo”.

Ele lhes disse: “Ele não o comerá enquanto estiver
vivo, mas somente depois que o matar e tiver se transformado em carcaça”.

Disseram: “De outro modo ele não poderá fazê-lo”.

Ele lhes disse: “Também quanto a vocês, procurem para
vocês um lugar para repousarem, ou podem tornar-se uma carcaça e serem
comidos”.

61  “Jesus disse: “Dois descansarão em um
leito; um morrerá, um viverá”.

Salomé disse: “Quem é você ? Você subiu ao meu leito e
comeu de minha mesa como se fosse de alguém”.

Jesus disse a ela: “Sou aquele que vem do que é
inteiro.  Venho dentre as coisas de meu pai”.

“Sou sua seguidora”.

 

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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