O Direito Canônico Histórico

Desde os tempos da Igreja
primitiva, foi costume fazer coleções de sagrados cânones, a fim de
facilitar-lhes o conhecimento, uso e observância, sobretudo aos ministros
sagrados. O Papa Celestino advertia em carta aos Bispos constituídos na Apúlia
e Calábria (21-07-429): “a nenhum sacerdote é lícito ignorar seus
cânones”.

O IV Concílio de Toledo (ano
633) prescreve para a restauração da disciplina na Igreja, libertada do
arianismo, no Reino dos Visigodos: “Os sacerdotes conheçam as escrituras
sagradas e os cânones”, porquanto “a ignorância, mãe de todos os
erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.

Durante os 10 primeiros
séculos

Florescem, em diversos
lugares, numerosas coletâneas de leis eclesiásticas, quase sempre compiladas
por iniciativa particular;

Continham, principalmente,
as normas emanadas dos Concílios e dos Romanos Pontífices, como também outras
tiradas de fontes menores.

O Sétimo Concílio Ecumênico
de Nicéa (787), considerou os sagrados cânones de diversos autores anteriores,
como um único Corpus de leis eclesiásticas e confirmou como Código para todas
as Igrejas orientais.

Na metade do século XII, o
monge Graciano organiza um acervo de coleções e normas (por iniciativa
particular, contrárias entre si), com o objetivo de estabelecer a concordância
das leis e coleções. Denomina-se Decretum Gratiani, a primeira parte da grande
coletânea de leis da Igreja, chamada, pelo papa Gregório XIII em 1580, de “Corpus
Juris Canonici” (a exemplo do “Corpus Juris Civilis”, do
imperador Justiniano). Consta do:

Decreto de Graciano:
continha as leis anteriores, também denominado Concórdia ou Concordantia
discordantium canonum. Contém 101 distinções dedicadas ao direito a às suas
fontes, aos clérigos e à sua ordenação, em 36 causas relativas às mais variadas
matérias como o processo, o patrimônio, os religiosos, o Matrimônio e a
Penitência, tratada de um modo particularmente amplo, cinco distinções
referentes ao culto, aos sacramentos e aos sacramentais.

Liber Extra: de Gregório IX,
ou Decretales Gregorii IX (Coleção das decretais de Gregório IX); é subdividida
em 5 livros (juiz, juízo, clero, matrimônio e delito). É promulgado em 1234
pela bula Rex Pacificus, atribuindo força de lei para a Igreja universal, e exclusivo,
vetando o recurso a qualquer outra coleção que não seja o Decretum de Graciano.

Liber VI (ou Liber Sextus):
de Bonifácio VIII, que em 1298 sublinha a continuidade com os cinco livros do
Liber Extra. Estão reunidos, com modificações de tal modo profundas, a ponto de
aproximar, em certos aspectos, esta coleção às modernas codificações, os
decretos dos concílios gerais celebrados em Lyon em 1245 e em 1274, e os
decretais posteriores a 1234.

Clementinas (ou
Clementinae): coleção de Clemente V; compreende, quase exclusivamente, atos de
Clemente V, que, depois de uma primeira promulgação feita por este Pontífice,
são revistas e promulgadas por João XXII em 1317. Diversamente dos livros Extra
e Sextus, não em valor exclusivo, deixam em vigor as decretais precedentes,
salvo no que dispunham em sentido contrário a elas.

Extravagantes: de João XXII;
coleção de caráter puramente privado, publicada por João Chappuis em 1500.
Reúne 20 decretais de João XXII (1316-1334).

Extravagantes Communes: de
vários Pontífices nunca reunidas em coleção autêntica. Coleção de caráter
puramente privado, publicada por João Chappuis em 1503. Reúne 70 decretais
atribuídos a vários papas, de Urbano IV (1261-1264) a Sisto IV (1471-1484).

O direito eclesiástico,
contido nesse Corpus, constitui o direito clássico da Igreja Católica (sendo
comumente assim denominado). A tal Corpus do direito da Igreja Latina
corresponde, de algum modo, o Syntagma Canonum ou Corpus Canonum Orientale da
Igreja Grega.

Leis posteriores
(principalmente as do tempo da contra-reforma católica dadas pelo Concílio de
Trento, e promulgadas posteriormente por vários Dicastérios da Cúria Romana),
nunca foram reunidas numa coletânea única. Esse o motivo que, com o correr dos
tempos, tornou a legislação paralela ao Corpus juris Canonici, um “imenso
acúmulo de leis sobrepostas umas às outras”.

No Concílio Vaticano I
(1869/1870), os bispos solicitam uma nova e única coletânea de leis. O Papa Pio
X (1903/1914) propõe-se a coligir e reformar todas as leis eclesiásticas.

Bento XV (1914-1922), em
27-05-1917, publica na AAS (Acta Apostolicae Sedis) de 28-06-1917, a Constituição
Providentissima Mater Ecclesia, promulgando o primeiro Código de Direito
Canônico (Código Pio-Beneditino) para a Igreja latina. Entra em vigor em 19-05-1918.
Compõem-se de 2.414 cânones, redigidos em forma breve, abstrata e sem menção de
suas motivações, distribuídos em 5 livros. Não tem universalidade absoluta,
pois só se refere à Igreja latina. Tinha a seguinte estrutura:

Livro I: Normae Generales (trata
das leis e da sua eficácia, dos costumes, do cômputo do tempo, dos rescritos,
privilégios e dispensas).

Livro II: De personis
(contém a disciplina relativa aos clérigos, aos religiosos, aos leigos).

Livro III: De Rebus
(refere-se aos sacramentos, aos lugares e tempos sagrados, ao culto divino, ao
magistério eclesiástico, aos benefícios e outros institutos não colegiais, aos
bens temporais).

Livro IV: De processibus
(considera os juízos, as causas de beatificação e canonização, e alguns
procedimentos especiais a respeito dos clérigos).

Livro V: De delictis et
poenis (disciplina a matéria penal).

Pio XI, em 1929, durante o
Concílio Vaticano I, confia os trabalhos preparatórios a uma comissão
cardinalícia, para a codificação dos direitos dos orientais.

Em 1935, a comissão para
codificação é transformada numa comissão para a redação do código de direito
canônico oriental.

Em 1943, é impresso um
primeiro esboço do código de direito canônico oriental. Em 1945 é impresso um
novo projeto (esquema), com numerosas modificações.

Pio XII (1939/1958), em
22-02-1949, pela Carta Apostólica Crebrae allatae sunt, promulga os cânones
sobre o sacramento do matrimônio, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em
02-05-1949.

Pio XII (1939/1958), em
06-03-1950, pela Carta Apostólica Sollicitudinem Nostram, promulga os cânones
sobre os processos, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 06-01-1951
(Giorgio Feliciani no livro As Bases do Direito da Igreja, Paulinas, 1994,
indica a data de 06-01-1950, porém, de acordo com o Prefácio da edição de 1994,
do CCEO, editado pela BAC, consta a data de 06-03-1950).

Pio XII (1939/1958), em
09-02-1952, pela Carta Apostólica Postquam Apostolicis Litteris, promulga os
cânones sobre os religiosos, os bens temporais da Igreja e o significado dos
termos, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 21-11-1952.

Pio XII (1939/1958), em
02-06-1957, pela Carta Apostólica Cleri sanctitati, promulga os cânones sobre
os ritos orientais e sobre as pessoas, para as Igrejas orientais. Entra em
vigor em 15-08-1958.
Assim, as partes promulgadas constituíam os seguintes títulos pela ordem do
projeto do futuro Código:

Título II: Dos Ritos
Orientais.

Título III: Das pessoas
físicas e morais.

Título IV: Dos clérigos em
geral.

Título V: Dos clérigos em
particular.

Título XIV: Dos monges e dos
religiosos restantes.

Título XVII: Dos leigos.

Título XIX: Dos bens
temporais e da Igreja.

Título XXIV: Do significado
dos termos.

Promulgaram-se, no total,
3/5 partes dos 2.666 cânones que constituíam o projeto do futuro Código do ano
de 1945. Os 1.095 cânones restantes permaneceram no arquivo da Comissão.

João XXIII, em 25-01-1959,
dá a primeira notícia do Sínodo de Roma e do Concílio Vaticano II. Início:
11-10-1962. Realizado em quatro períodos: de 11-10 a 08-12-1962, de 29-09 a 04-12-1963, de 14-09 a 21-11-1964 e de 14-09 a 08-12-1965.

Após a conclusão do Concílio
Vaticano II, segue-se intensa atividade legislativa por parte da Santa Sé,
emanando as necessárias normas de concretização das decisões conciliares e
introduzindo no ordenamento jurídico canônico as reformas que parecem ser
exigidas. Entre as numerosas disposições podem ser destacadas:

a instituição do Sínodo dos
bipos (Motu Proprio Apostolica Sollicitudo, de 15-09-1965);

as normas relativas à faculdade
de dispensa dos bispos (Motu Próprio De episcoporum muneribus, de 15-06-1966);

as disposições para
aplicação de alguns decretos conciliares (Motu Proprio Ecclesia sanctae de
06-08-1966);

a restauração do diaconato
permanente na Igreja latina que torna acessível este grau da ordem sacra também
às pessoas casadas, como já era previsto pela constituição Lumen Gentium (Motu
Proprio Sacrum diaconatus ordinem de 18-06-1967);

o reordenamento da Cúria
romana (constituição Regimini Ecclesiae universae de 15-08-1967);

a nova disciplina relativa
às funções dos legados pontifícios (Motu Proprio Sollicitudo omnium Ecclesiarum
de 24-06-1969);

as inovações à normativa dos
matrimônios mistos (Motu Proprio Matrimonia mixta de 31-03-1970);

as normas que privam os
Cardeais, de mais de 80 anos, do direito de eleger o Pontífice e da qualidade
de membros dos dicastérios da Cúria romana (Motu Proprio Ingravescentem aetatem
de 21-11-1970);

a agilização do procedimento
dos processos matrimoniais (Motu Proprio Causas matrimoniales de 28-03-1971);

a nova disciplina da
primeira tonsura, das ordens menores e do subdiaconato (Motu Proprio Ministeria
quaedam de 15-08-1972);

as disposições acerca da
vacância da Sé apostólica e a eleição do Pontífice (Constituição Romano
Pontífice eligendo de 01-10-1975).

João Paulo II, em
25-01-1983, pela Constituição Sacrae Disciplinae Legis, promulga o segundo
Código de Direito Canônico para a Igreja latina. Entra em vigor em 27-11-1983.

João Paulo II, em
28-06-1988, promulga a Constituição Apostólica Pastor Bonus, sobre a Cúria
Romana. Entra em vigor em 01-03-1989.

João Paulo II, em
18-10-1990, pela Constituição Sacri Canones, promulga o Código de Cânones das
Igrejas Orientais. Entra em vigor em 01-10-1991.

João Paulo II, em
18-05-1998, pela Carta Apostólica sob a forma de Motu Próprio Ad Tuendam Fidem,
altera os cânones 750 e 1371 do Código de Direito Canônico, e os cânones 598 e
1436 do Código de Cânones das Igrejas Orientais.

LEI FUNDAMENTAL DA IGREJA
(Lex Ecclesiae Fundamentalis)

“A LFI, concebida como
Lei constitucional comum e prévia à promulgação dos Códigos Latino e Oriental,
embora nunca tenha passado de um Projeto (Schema), nem tenha sido promulgada,
todavia constitui o fundamento central das aspirações reformadoras do direito
eclesial e marcou a sistemática do Código de 83 e até chegou a ser recebida
substancialmente por ele. A idéia de uma LFI surge dentro do Concílio Vaticano
II, quando, em 8 de dezembro de 1963, o Bispo Maronita Khoreiche, do Líbano,
pede uma ‘lei fundamental’, que fosse válida para toda a Igreja, tanto oriental
como latina.

Foi, porém, Paulo VI, quem,
de forma oficial, explicitando suas idéias, expressas na Encíclica Ecclesiam
suam, propôs, em 29 de novembro de 1965, aos Cardeais Membros e aos Consultores
da Comissão Pontifícia para a reforma do Código de Direito Canônico, ‘a
peculiar e grave questão, visto que há um duplo Código de Direito Canônico, um
para a Igreja Latina, outro para a Igreja Oriental, se não conviria elaborar um
Código comum e fundamental, contendo o direito constitucional da Igreja (ius
constitutivam Ecclesiae continens)’ ” (Dicionário de Direito Canônico.
Carlos Corral Salvador e José Maria Urteaga Embil. Edições Loyola).

“(…) Muitos elementos
distinguem o direito oriental do latino, para que se possa reuni-los em um Código único, sem
sacrificar um ao outro; e o direito que seria sacrificado seria certamente o
direito oriental. Que se pense na terminologia muitas vezes diferente, como
também nas instruções próprias do Oriente, como a do Patriarcado, dos sínodos,
do rito, das eleições episcopais, etc… Que se pense nas instituições que não
existem em direito oriental autêntico, como a dos cônegos, dos benefícios, das
censuras ‘latae sententiae’ etc.

Assim, enquanto no direito
latino um só cânon basta para regulamentar a instituição patriarcal,
considerada como simples honra, é preciso, no direito oriental, mais de
duzentos cânones para determinar a instituição patriarcal. Pelo contrário, em
direito oriental autêntico, o tratado ‘de delictus et poenis’, poderia caber em
quatro páginas. Como fazer um Código único com elementos tão diferentes?”
(A Igreja Greco-Melquita no Concílio – Discursos e Notas do Patriarca Máximo IV
e dos Prelados de sua Igreja no Concílio Ecumênico Vaticano II. Edições Loyola).

“(…) Como se concebia
a LFI? Em primeiro lugar, como Lei, isto é, enquanto norma jurídica positiva
(ou melhor, positivada, em forma de cânones ou artigos); como Fundamental, quer
dizer, como norma suprema e universal, que estivesse por cima de todas as
demais leis ordinárias em toda a Igreja, tanto Universal, como Particulares, de
qualquer rito. Fundamental, em sentido jurídico, é o mesmo que Constitucional,
pois expressa, em linguagem jurídica, e somente sob essa perspectiva –
necessariamente limitada e incompleta -, a estrutura básica da Comunidade
Eclesial, de modo puramente ao que são as Constituições dos Estados (chamam-se
Cartas Constitucionais ou Leis fundamentais).

Adota-se o termo Fundamental
para se evitar, assim, a palavra mais usual, na linguagem jurídica civil e para
desfazer o equívoco que possa ou poderia provocar o termo Constitucional, como
se a Igreja não possuísse, já, sua própria Constituição, tanto no sentido
dogmático, como no pastoral (a Constituição Dogmática da Igreja, Lumen Gentium
e a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual, a Gaudium et Spes).
Descartou-se o termo Código, pois tal denominação significa, mais precisamente,
codificação ou coleção de leis.

Embora não tenha nascido, a
LFI projetada contém um valor absoluto em sí mesmo e um valor relativo de
vigência. O valor absoluto lhe é atribuído, em primeiro lugar, por ter
constituído uma tentativa séria de apresentar, tanto à Igreja Universal como às
Particulares, uma lei tal, que fosse, de verdade, comum a todas elas,
justamente na ocasião em que todos, seus representantes se encontraram num
Concílio – o Vaticano II -, ao mesmo tempo em que se previa a reforma de ambos
os Códigos, o latino e o oriental, cujos princípios e estruturas básicas tinham
sido marcados pelo Concílio. (…) O valor relativo de vigência compete à LFI
por ter determinado a sistemática do Código, informando seu conteúdo e passado
em sua maior parte ao Código” (Dicionário de Direito Canônico. Carlos
Corral Salvador e José Maria Urteaga Embil. Edições Loyola).

“Em todo o caso, a
objeção de que a Igreja não pode dotar-se de uma lei constitucional, porque já
está contida no Evangelho, parece superável, uma vez definitivamente
esclarecida a natureza jurídica da Lex Ecclesiae fundamentalis. (…) Deve-se
salientar que, em seu conjunto, as críticas aos diversos esquemas da Lex
Ecclesiae fundamentalis são tidas como merecedoras de atenta consideração por
parte da autoridade. De fato, não só o projeto foi colocado de lado mas, como
melhor se mostrará em seguida, João Paulo II, apresentando o novo Código,
indicou que no Evangelho está contida a única verdadeira e insubstituível lei
fundamental da Igreja.” (As Bases do Direito da Igreja. Comentários ao
Código de Direito Canônico. Giorgio Feliciani. Edições Paulinas).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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