O dia a dia de uma criança manoba

Relato do padre Fausto Tentorio, martirizado em outubro nas Filipinas

ROMA, 25/11/2011 (ZENIT.org) – A vida do padre missionário Fausto Tentorio, martirizado no último 17 de outubro na ilha de Mindanao, nas Filipinas, é vislumbrada neste relato escrito por ele mesmo e publicado no boletim Mondo e Dintorni, do “laboratório missionário” de Lecco, em dezembro de 2001. É um texto de grande significância sobre o ambiente em que o padre Fausto viveu seus trinta anos de missão entre os manobo, uma tribo local. O testemunho poderia ser lido para os nossos jovens nas escolas, para terem uma ideia do quanto são privilegiados em contraste com a realidade de outros jovens de lugares distantes. Neste 11 de novembro, o padre Fausto recebeu postumamente a Medaglia d’Oro alla Memoria, do governo da Lombardia.

Segue seu relato

“Vou narrar um dia na vida de uma criança manoba, no decurso do ano escolar que dura aqui dez meses, do início de junho até o final de março, tirando os sábados e domingos.

A jornada começa cedo. Eles costumam levantar ao canto do galo, entre as quatro e cinco da manhã, dependendo de quantos quilômetros cada um tem que andar até chegar à escola. Assim que acordam, antes ainda de levantar, eles se estiram no estrado para vencer o frio que penetra pelas paredes da choça, feitas de varas entrelaçadas de bambu. Pouco depois, afastam o pedaço de pano que lhes serviu de cobertor e pulam do leito forrado de palha.

Já de pé, sem parar de se mexer, eles sacodem a esteira sobre a qual dormiram, quase sempre roída pelos ratos que, nessas paragens, já são de casa. E a recolocam sobre o estrato de varas de bambu, que ficará erguido durante o dia.

No lusco-fusco de antes da aurora, porque só amanhece entre as cinco e meia e seis da manhã, eles começam seus afazeres do lar. Se é menina, ajuda a mãe a fazer o fogo, varrer o chão, preparar de comer ou cuidar dos irmãozinhos caçulas. Se é menino, ajuda o pai a trazer lenha, buscar água e levar o pasto para a criação – búfalos, cavalos, cabras -, se é que possuem alguma.

Despachadas as tarefas, eles vão se lavar na fonte ou no rio. Quase nunca têm sabonete: eles pegam uma pedra áspera e a esfregam na pele, tratando de arrancar o sujo. Lavam a roupa ali mesmo, também sem sabão e sem nada, torcem-na e voltam a vesti-la.

De volta em casa, preparam-se para a escola. Tiram a roupa lavada e a estendem: até o meio-dia vão ficar enxutas. Botam o uniforme da escola e olham se a mãe cozinhou alguma coisa para o café. Se tem, é batata doce fervida, e se não tem, eles pegam o pouco que vão levar à escola para almoçar:  milho moído grosso ou arroz cozido. Rara vez vai de acompanhamento um peixe seco ou salgado, meio ovo cozido em água fervente, ou só sal puro, mesmo. E tudo é transportado enrolado numa folha de bananeira.

É hora de preparar a “mochila”, ou o saquinho de plástico, botando dentro a comida, um caderno, uma caneta e um lápis. Estão prontos para partir às seis ou às sete, conforme a lonjura da escola, e vão se chamando aos gritos enquanto passam na frente das cabanas das outras crianças. Caminham para a escola todos em grupo, os pés descalços e os calçados na mão, para tentar não gastar a sola, colinas acima e abaixo e atravessando torrentes sem ponte, debaixo de chuva ou de sol, por cima do barro ou do pó, percorrendo uns cinco, seis quilômetros.

Na escola, enxugam o suor com a mão e fazem fila para o iça- bandeira e o hino nacional. São as 7h15. Depois do hino, eles encaram dez minutos de ginástica, embora tenham recém-andado seis quilômetros a pé, limpam o jardim da escola e as salas e, finalmente, às oito, vão para a aula. Cada um tem a carteira que ele próprio teve que fazer e trazer de casa no começo do ano. Em cinquenta metros quadrados, cinquenta crianças se reúnem. Ou mais. Alguns, que ainda não fizeram a própria cadeira, ficam sentados no chão.

As aulas são em tagalog, a língua nacional, ou no dialeto das professoras (sebuano ou ilongo), com alguma frase de vez em quando em inglês. Seja como for, para os pequenos manobos são todas línguas estrangeiras, como são estrangeiros seus companheiros não manobos. Os primeiros meses de aulas são, por isso, duros de verdade: eles se sentem como peixes fora d’água. Se conseguirem resistir, pode ser que eles continuem na escola. Senão, vão largar as aulas e depois será difícil retornarem. As professoras, de qualquer forma, só acompanham os mais interessados.

Às 9h45 há um intervalo de quinze minutos e as crianças saem da escola para respirar um pouco. Quem não tomou café começa a sentir o estômago rosnar e não resiste à tentação de abrir o pacotinho de comida trazida de casa, adiantando o almoço. Depois, ao meio-dia, Deus dirá… Às dez, eles voltam às aulas até as 11h30, quando param de novo até a uma. A hora mais importante é o almoço, para quem não comeu antes, e ele é consumido em no máximo dez minutos. O resto do tempo eles usam para uma soneca embaixo de alguma árvore ou para brincar.

A tarde é mais difícil. O sono começa a pesar, especialmente para os que acordaram às 4h30. Aproveitando mais um breve repouso, às duas e meia da tarde, eles dão uma olhada no tempo. Se ele não está de cara boa e eles moram longe ou têm rios para atravessar, vão já pegando a sacolinha plástica, sapatos na mão, e, muitas vezes sem avisar a professora, voltam a pé para casa, torcendo para não topar com nenhuma cheia nos rios. Se o tempo é bom, eles ficam na escola até as quatro.

Quando voltaram para casa, guardam as coisas a salvo dos ratos, tiram o uniforme, botam de volta aquelas roupas que tinham lavado de manhã e escondem os calçados num cantinho da choça, esperando que os cachorros não os peguem para brincar pela aldeia.

Depois de descansar um pouquinho, eles recomeçam as tarefas domésticas. Meninas ajudam a mãe a fazer a janta e cuidam dos irmãozinhos. Meninos ajudam o pai a tratar os bichos, buscar água e pegar lenha. Lição de casa? Nem pensar! Perto das seis, quando a noite começa a cair, eles jantam: batata doce, arroz ou milho cozido na água. Se tiver, alguma verdura e peixe salgado. Carne é um luxo. Às sete já está escuro e é tempo de estender a esteira na palha para dormir de novo. Não é incomum que as crianças cheguem tarde da escola e adormeçam no chão, pulando o jantar.

É a vida dos pequenos manobos.

O que eles querem? O que eles esperam? Às vezes, é difícil para eles mesmos dizer. Eles não têm muita chance de escolha, mas, devagarinho, estão entendendo que é importante estudar, saber ler e escrever, aprender o idioma e, principalmente, fazer parte da sociedade. Quem se fechar em si mesmo estará perdido.

Um duro desafio para as crianças, mas, com a ajuda de vocês, nós esperamos que elas tenham um futuro mais luminoso.

Fausto Tentorio

***
Por Piero Gheddo

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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