O Culto das Relíquias (Parte 2)

A Casa Santa
da Sagrada Familia, tida como transferida pelos anjos de Nazaré para Loreto
(Itália), em 1298, é outra relíquia valiosa que é estudada; pode ser que os
cruzados a tenham trazido da Terra Santa em barcos. Recentemente
alguns pesquisadores italianos comprovaram que os tijolos da Casa Santa de
Loreto são encontrados na Terra Santa de onde teria vindo a Casa. De qualquer
forma esta relíquia é muito considerada pela Igreja e alguns Papas já foram
rezar ali.

O Véu de
Verônica é outra relíquia estimada pelo povo cristão, que segundo uma tradição,
está no santuário do Santo Rosto de Monoppello, na Itália. O Papa Bento XVI foi
o primeiro Papa a visitar este santuário, onde estaria o véu com que uma
mulher, Verônica teria enxugado o rosto de Cristo. (Zenit.org, Vaticano, 31 ago
06)

O Santo
Rosto é um véu de 17×24 centímetros. Pode-se ver nela a imagem de um homem que
sofre, pelos golpes da paixão, como os que sofreu Cristo.

O Pe.
Heinrich Pfeiffer S.I., professor de iconologia e história da arte cristã na
Universidade Pontifícia Gregoriana de Roma, estudou este véu durante treze anos
e foi o primeiro cientista a assegurar que se trata do véu da Verônica que
antes estava guardado no Vaticano.

O livro
apócrifo dos “Atos de Pilatos” (século VI), fala de uma mulher conhecida com o
nome de Verônica (deformação do nome «vera icona», «verdadeiro ícone»), que
enxugou com um véu o rosto de Cristo na Via Sacra.

Apesar
destas fontes incertas, que se encontram já no século IV, segundo constata o
Pe. Pfeiffer, alemão, a história do Véu da Verônica está presente através dos
séculos na tradição católica. Em seu filme «Jesus de Nazaré», o diretor de
cinema Franco Zeffirelli a usou.
Por ocasião do primeiro ano santo da história, no ano 1300, o Véu da Verônica
converteu-se em uma das «Mirabilia urbis» (maravilhas da cidade de Roma) para
os peregrinos que puderam visitar a Basílica de São Pedro no Vaticano.

Confirma o
maior poeta da história da Itália, Dante Alighieri (1265-1321), no canto XXXI
do «Paraíso» (versículos 103-111) na «Divina Comédia».

As marcas
do véu da Verônica se perderam nos anos sucessivos ao Ano Santo 1600, quando o
véu foi encontrado em
Manoppello. O Pe. Pfeiffer explica que no véu de Manoppello,
na margem inferior, pode-se ver ainda um pequeno fragmento de vidro do
relicário anterior, o que demonstraria sua procedência do Vaticano.
Segundo a «Relação Histórica», escrita em 1646 pelo sacerdote capuchinho Donato
de Bomba, em 1608 uma senhora, Marzia Leonelli, para tirar seu marido da
prisão, vendeu por 400 escudos o Véu da Verônica, que havia recebido como dote,
a Donato Antonio de Fabritius.

Dado que a
relíquia não se encontrava em boas condições, Fabritius a entregou em 1638 aos
padres capuchinhos de Manoppello. Frei Remigio da Rapino recortou os cantos do
Véu e o colocou entre duas molduras de madeira. As molduras e os vidros são os
que ainda hoje conservam o véu em Manoppello.

Esta
relação, da qual não há outras provas históricas, diverge da reconstrução do
Pe. Pfeiffer, narrando a história popular da chegada do ícone aos Abruzos, das
mãos de um peregrino, em 1506. Até 1638, o ícone teria passado por várias mãos.
Com a criação desta lenda, opinam alguns dos investigadores, se poderia ter
tentado ocultar o roubo do Vaticano.

O professor
Donato Vittori, da Universidade de Bari, fez um exame do véu em 1997 com raios
ultravioleta, descobrindo que as fibras não têm nenhum tipo de pigmentação. Ao
se observar a relíquia com o microscópio, descobre-se que não está pintada e
que não está tecida com fibras de cor. Isto parece indicar um milagre.

Através de
sofisticadas técnicas fotográficas digitais, pôde-se constatar que a imagem é
idêntica em ambos lados do véu, como se fosse um slide.

A
iconógrafa Blandina Pascalis Shloemer demonstrou que a imagem do Santo Sudário
de Turim se sobrepõe perfeitamente ao Santo Rosto de Manoppello (com mais de
dez pontos de referência). Outro ponto muito interessante.

O Pe.
Pfeiffer recolheu as principais obras artísticas da história que se inspiram no
véu da Verônica, até que Paulo V proibisse sua reprodução, após o provável
roubo no Vaticano, e todas parecem ter por modelo a relíquia de Manoppello.

O Pe.
Pfeiffer explica: «Quando os diferentes detalhes se encontram reunidos em uma
só imagem, esta última deve ter sido o modelo de todas as demais. Todas as
demais pinturas imitam um só modelo: a Verônica de Roma. Por este motivo,
podemos concluir que o Véu de Manoppello não é senão o original da Verônica de
Roma». Mais informações em (http://www.voltosanto.it)

A Igreja
não nos obriga a crer nestas relíquias e deixa ao livre uso da fé de cada um;
mas pelo que vimos acima há chances de que o ícone de Verônica seja verdadeiro;
o que levou o Papa Bento XVI a ter interesse de vê-lo.

O Sangue de
São Januário (S. Gennaro) –  que foi
bispo e mártir e cuja memória litúrgica é no dia 19 de setembro, é outra
relíquia impressionante.

Ele
derramou o seu sangue por Cristo no início do século IV. Era  bispo de Benevento, sofreu o martírio no ano
305 em Nápoles, junto com os seus companheiros, durante a perseguição do
imperador romano Diocleciano. Foi condenado às feras do anfiteatro de Pozzuoli,
juntamente com os companheiros de fé. Por causa do atraso de um juiz, teria
sido decapitado e não dado como alimento às feras.

Um século mais tarde, em 432, na
oportunidade da trasladação de suas relíquias de Pozzuoli para Nápoles, uma
senhora teria entregue ao bispo João duas ampolas contendo o sangue coagulado
de são Januário. Como garantia da afirmação da mulher o sangue se liquefez
diante dos olhos do bispo e de uma grande multidão de fiéis. O evento milagroso,
desde então, se repete todos os anos em determinados dias: no sábado que
precede o primeiro domingo de maio, nos oito dias sucessivos, a 16 de dezembro,
a 19 de setembro e durante toda a oitava das celebrações em sua honra.

Os testemunhos sobre esse fenômeno
começaram a partir de 1329 e são tão numerosos que não se podem contestar.

O prodígio, confirmado também pela
ciência, é seguido por toda a população napolitana. Não há uma explicação
natural para o caso. É o símbolo e um testemunho vivo do sangue de todos os
mártires na vida da Igreja, nascida do sangue da primeira vítima, Jesus Cristo.

 Os Primeiros
marcos da Tradição cristã

Os dois
mais antigos documentos relativos á pratica das relíquias dos mártires a Ata do
“Martírio de Santo Bispo Inácio de Antioquia”, redigida em 110 (três anos após
a sua morte em Roma no Coliseu, jogado aos leões) e a do “Martírio de São
Policarpo”, bispo de Esmirna (Àsia menor), escrita logo após sua morte (ano 156
ou 157).

Observe os
termos com que se encerra o relato do “Martírio de S. Inácio”, o qual foi
publicamente devorado pelas feras:

 “Unicamente as partes mais duras de seus
santos despojos haviam escapado (aos dentes das feras): foram recolhidas,
levadas para Antioquia e depositadas num cofre, à guisa de inestimável tesouro;
assim foram elas entregues à santa assembléia dos fiéis por causa da graça que
reside no mártir” (Funk, Patres Apostolici 
II 284).

Vemos ai
como os primeiros e corajosos cristãos percebiam nos despojos materiais do
mártir a graça ou o valor espiritual que a tais elementos se prendia; mas a
piedade dos fiéis com as relíquias era toda dirigida à pessoa do Santo, que se
tornara perfeito membro de Cristo, e, intercessor diante de Deus. O próprio S.
Inácio, na Carta que escreveu aos romanos, antes de lá´ chegar para o martírio,
escreveu:

“Sou o
trigo de Deus, pelos dentes das feras serei moído, para que me torne pão puro
de Cristo” (Aos Romanos 4,1).

Mais claro
ainda  é o testemunho do “Martírio de S.
Policarpo” (carta circular dos cristãos de Esmirna), que assim descreve o seum
martírio:

“Os judeus
da cidade imaginaram que os cristãos foram fazer de Policarpo (já martirizado)
um outro Cristo.  Vendo então que os
judeus se agitavam, o centurião (romano) mandou colocar o corpo (de Policarpo)
no meio da praça e, de acordo com o costume, fê-lo queimar.  Em seguida, nós, tomando os ossos, mais
preciosos do que pérolas de grande valor e mais puros do que o outro
acrisolado, colocamo-los em lugar conveniente. 
Nesse local, enquanto possível, reunir-nos-emos em exultação e alegria;
e o Senhor nos dará a graça de celebrarmos o aniversário do martírio de
Policarpo para recordarmos aqueles que já deixaram o combate e a fim de
exercitarmos e prepararmos os outros que o martírio ainda aguarda”.  (Martírio de Policarpo, XVIII).

Esse texto
supõe que logo após o martírio do Santo na cidade de Esmirna, os cristãos se
dispunham a usar do seu direito legal de sepultar com honras seus restos
mortais, contra o que se insurgiram os judeus, o que mostra o caráter
profundamente religioso que os discípulos de Cristo atribuíam ao sepultamento
dos mártires; por isto o oficial romano resolveu mandar queimar os restos
mortais de S. Policarpo.  Feito isto, os
cristãos, não se dando por vencidos, ainda recolheram as preciosas cinzas,
levaram-nas para lugar oculto, onde as depositaram; e daí em diante propuseram
a reunir-se lá anualmente a fim de celebrar religiosamente o aniversário do
martírio (o natalício para a vida eterna) de Policarpo.

O autor da
Ata do martírio de S. Policarpo fez questão de explicar aos leitores a
mentalidade que conduzia os cristãos ao cultuarem os mártires e suas relíquias:

“O mártir
Policarpo apareceu em nossos tempos como mestre apostólico e profético…
Adoramos Cristo, como Filho de Deus; quanto aos mártires, amamo-los como
discípulos e imitadores do Senhor, por causa do seu eminente devotamento ao
próprio Rei e Mestre. Oxalá possamos também nós tornar-nos consortes e
condiscípulos dos mártires!”. (Martírio de Policarpo XVIII)

Então, para
cultuar o Cristo em um de seus justos já consumado pela Redenção, é que os
cristãos deram início à celebração anual do martírio (ou do natalício) de São
Policarpo.  Como se vê, este culto se
dirige ao Filho de Deus, pela obra realizada por Cristo em seu discípulo e
mártir.  Isto nada tem a ver com as
apoteoses pagãs. Quando a Igreja cultua o Santo, glorifica o Senhor.

Note que as
datas desses martírios narrados, 110 e 157, são de uma época em que os cristãos,
perseguidos como eram pelo Império pagão, tinham aversão para com os usos pagãos;
davam a vida justamente para não pactuar com os seus costumes politeístas e de
prestar culto a incenso aos Césares. Os dois documentos se referem à veneração
das relíquias em termos tão claros e espontâneos que mostram que isto não era
uma inovação, mas algo já comum e aprovado na Igreja no primeiro século.

Não se
esqueça que os discípulos de João Batista foram buscar o seu corpo e sepultá-lo
com carinho depois que Herodes o mandou degolar:

“Sem
tardar, enviou um carrasco com a ordem de trazer a cabeça de João. Ele foi,
decapitou João no cárcere… Ouvindo isto, os seus discípulos foram tomar o seu
corpo e o depositaram num sepulcro.” (Mc 6, 27-29)

O mesmo se
deu com Santo Estevão:”Entretanto,
alguns homens piedosos trataram de enterrar Estêvão e fizeram grande pranto a
seu respeito.” (At 8,2)

Nesses
martírios de S. Inácio de Antioquia, capital da Síria, e de S. Policarpo de Esmirna,
na Turquia, luzeiro da Ásia Menor, vemos duas comunidades cristãs importantes,
diferentes e distantes, praticar o mesmo culto às relíquias dos seus grandes
Bispos mártires; ora, isto mostra que  este
costume já era arraigado nos cristãos, e estava contida dentro do ensinamento
dos Apóstolos e do próprio Cristo.

Nos séculos
seguintes a devoção aos mártires e aos santos e às suas relíquias foi crescendo
em toda a Igreja, sem qualquer impedimento dos bispos e dos papas.  No séc. III, Tertuliano, famoso escritor,
enunciava em poucas palavras a causa mais remota de tal devoção: “Christus in
martyre est. – Cristo está no mártir” (De pudicitia 22).  Esta frase confirma bem que o culto dos
heróis cristãos era tido como um culto prestado ao Senhor Jesus.

No início
do séc. V houve a primeira contestação ao culto das relíquias por parte de um
herege Vigilâncio, da Aquitânia, que também atacava a virgindade e o celibato,
a vida monástica, assim como diversos pontos da sagrada Liturgia.  São Jerônimo (? 421), doutor da Igreja, escreveu-lhe
uma resposta que é assim resumido por D. Estevão Bettencourt:

O
adversário se escandalizava por lhe parecer que os cristãos adoravam os
mártires. – Estivesse tranqüilo, retrucava Jerônimo: os cristãos só adoram a
Deus; não esqueceram os exemplos de Paulo e Barnabé, os quais rejeitaram as
honras divinas que os pagãos da Licaônia lhes queriam tributar (cf. At 14, 14);
nem esqueceram a conduta de S. Pedro, o qual recusou igualmente a adoração que
Cornélio tentava prestar-lhe (cf. At 10,26). 
Não obstante, julgam poder tributar veneração (o que não é adoração) a
membros humanos santificados pelo serviço de Deus… Invocando os mártires, os
fiéis se inspiram da mais pura intenção religiosa: quem admite que a oração de
um Moisés, de um Estêvão, de um Paulo, teve valor durante a vida terrestre
desses homens de Deus, como não reconhecerá que ela ainda tem maior valor,
agora que estão na glória celeste?

Vigilâncio
alegava desordens verificadas junto aos túmulos dos mártires nas noites da
vigília sagrada. São Jerônimo, lhe respondeu dizendo que esses inconvenientes
eram acidentais e não bastavam para se condenar a própria instituição da
vigília. Vigilâncio ainda afirmava que os milagres registrados junto ás
sepulturas dos mártires serviam aos incrédulos, não, porém, a quem já tinha fé.
 São Jerônimo lhe responde que não
importa tanto saber em favor de quem são realizados os milagres como saber por
que poder são eles efetuados; ora era evidente que a Onipotência divina se
manifestaria em tais portentos, confirmando a fé a devoção dos que a Ela
recorriam por intercessão dos mártires. (Revista PR, Nº 509, Ano 2004, Pg. 513)

Assim, o
grande São Jerônimo concebia a defesa do culto das relíquias.  Os autores posteriores, tanto medievais como
modernos, só confirmaram e desenvolveram as idéias do S. Doutor. S. Tomás de
Aquino (1274), por exemplo, assim escreveu:

“É evidente
que devemos venerar os Santos de Deus como membros de Cristo, filhos e amigos
de Deus e intercessores nossos. Por isto havemos de venerar as suas relíquias
em memória deles; principalmente há de ser venerados os seus corpos, templos e
órgãos do Espírito Santo, que os habitava e por esses corpos agia; aliás, serão
configurados ao Corpo de Cristo pela ressurreição gloriosa. Por isto também o
próprio Deus honra tais relíquias realizando milagres em presença das mesmas” (Suma
Teológica III, qu. 25, art. 6).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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