Nenhum cristão está sozinho diante da morte

Uma reflexão sobre os fiéis defuntos

As Crônicas destes dias sugerem muitas reflexões sobre o fim trágico do jovem campeão motociclista Marco Simoncelli, mas especialmente aqueles que frequentam a web podem ver como a sua morte comoveu realmente tantas pessoas, especialmente os jovens.

Talvez nem todos os comentários que lemos são apropriados, mas também nem as reações mais cínicas podem esconder o sentido de perda. Algumas pessoas têm observado que a engrenagem desumana dos Meios, a cada dia, põem diante de nossos olhos a morte de milhares de pessoas, muitas vezes de forma muito mais terrível do que a de Simoncelli, sem que isso suscite a menor reação. Nós, sacerdotes, no entanto, não nos surpreendemos muito. Todos já celebramos o funeral de alguns jovens, com a igreja extremamente lotada de gente.

A morte de um jovem é algo fora do normal e nos causa sérios questionamentos. No nosso tempo, no entanto, a questão da morte é um desses tópicos que são geralmente calados, escondidos, e até mesmo diria que é o primeiro a ser removido.

Por um lado busca-se dissimular a dimensão trágica, banalizando o significado dela; basta pensar no silêncio que é imposto sobre a questão do aborto ou a característica de facilidade que querem dar na introdução da eutanásia, ou das tentativas desajeitadas de exorcizar o medo da morte, como “Halloween”.

Mas por outro lado até mesmo nos escondem o significado existencial, como se fosse uma questão que não nos diz respeito. Culturalmente parece que de fato vale o sofisma do velho Epicuro: Quando eu estou a morte não está, quando a morte está, eu não estou, portanto o problema não existe, é inútil pensá-lo. Só que, como todos podem entender, o problema não é o momento da morte, mas o morrer que nos acompanha a cada dia, o nosso morrer e o dos nossos seres queridos, e é algo que não se resolve virando-se para o outro lado.

Remover a morte da cena da nossa existência é eliminar um elemento essencial e confiável que serve para entender quem somos e orientar as nossas escolhas de forma sensata. Realizando uma operação de soma, se pulamos uma parcela o resultado será  inevitavelmente errado. Querer ignorar a morte leva inexoravelmente a errar na vida.

Ora, o trágico fim de um jovem amado e famoso faz reaparecer na cena, ainda que seja por um momento, a realidade trágica da morte. A emoção suscitada sacode o nosso ser até à raíz e não deveria ser menosprezada com superficialidade.

Mas, como questionar-se serenamente sobre a morte? Serenidade e morte parecem ser um oxímoro, uma contradição. A própria morte é realmente uma tragédia em si, a destruição do homem na terra, a última conseqüência, o “salário” do pecado, do mal, o que Deus, como é ensinado no livro da Sabedoria não criou e nunca quis. Como superar o medo? A Igreja vem em nosso socorro.

O Senhor confiou à ela as chaves que abrem as portas da vida. Pela liturgia, a Igreja nos apresenta as questões fundamentais da existência à Luz de Cristo, daquele que assumiu a morte transformando o seu significado.

Particularmente os primeiros dias de Novembro são dedicados à celebração da grande festa de Todos os Santos, e no dia seguinte, a Comemoração de todos os Fiéis Defuntos. Ilumina-se assim o mistério da morte em todos os seus aspectos: primeiro nos é mostrada a meta que somos chamados a alcançar atraversando a morte, ou seja, a plena santidade e o céu, e no dia seguinte  é abordado o senso da difícil luta interior diante da perspectiva da morte.

A comemoração do 02 de novembro realmente nos ajuda. Orar pelos mortos nos permite sentí-los próximos, muito além da privação da presença física. Receber a Eucaristia consente um encontro verdadeiro e profundo com Cristo e portanto com os seres queridos que nos deixaram e vivem unidos à Ele, seja na condição de plena alegria do céu, seja naquela purificação do purgatório.

Visitar o cemitério na fé ajuda-nos a relativizar o que nos angustia neste mundo e elevar os nossos olhos para o céu, reencontrando o justo desprendimento e a paz interior. A intercessão pelos mortos reafirma e fortalece a esperança pela salvação: experimentamos que nenhum cristão está só diante da morte e nem mesmo diante dos danos causados nele pelo pecado, mas descobrimos que nos podemos ajudar mutuamente muito além dos nossos estreitos limites da vida terrena. Aprendemos que o céu é habitado por almas generosas que nos amam, nos apoiam e nos esperam no paraíso.

Cuidado, porém. Isso não é mera ritualidade, como é comum até certo ponto, em todas as tradições religiosas, diante da morte. A liturgia da Igreja tira a sua força do Mistério pascal, da vitória de Jesus Cristo sobre o pecado e a morte. Uma vitória que está plantada na história e nos é transmitida no Batismo. Portanto, o consolo da fé não é uma ilusão, nem muito menos uma aposta no escuro. Ela não tira a sua eficácia do rito em si, mas da força da vida cristã despertada pelo rito.

Se somos cristãos é porque temos experimentado pessoalmente a vitória sobre a morte, portanto, nenhuma morte, por mais dolorosa que seja, pode jogar-nos no desânimo. De fato, existem maneiras de morrer muito mais amargas e perigosas do que a morte física. Fracassos, decepções, medos e sofrimentos que afligem a vida dos homens, e que levam ao desespero até induzirem paradoxalmente ao suicídio com tal de escapar deles. Especialmente os nossos pecados nos asfixiam, reconheçamo-lo ou não.

Mas o cristão fez a experiência que o Senhor nos redime da morte interior, nos livra de toda morte, perdoando-nos, levantando-se do desespero, reconstruindo personalidades destruídas, famílias em crise, comunidades à deriva… Todo cristão verdadeiro já colocou um pé no céu, já tem em si a promessa de vida eterna e pode lidar a questão da morte com serenidade. Por isso, muito além da retórica de ocasião destes dias, podemos confiar, cheios de esperança, a alma de Marco Simoncelli à misericórdia de Deus, rezando para que um dia todos nós possamos participar plenamente, juntamente com o campeão Simoncelli, à maior das vitórias, a Páscoa Cristo.

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Pe. Antonio Grappone

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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