Liturgia da Palavra: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”

Por Dom
Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

SÃO PAULO,
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do
próximo domingo – VI do Tempo Comum Lv 19, 1 – 2.17-19; 1 Cor 3, 26 – 23; Mt 5,
38 – 48 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da
Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio
Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense,
assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em
língua portuguesa da Agência ZENIT.   

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DOMINGO VII
DO TEMPO COMUM

Leituras: Lv
19, 1 – 2.17-19; 1 Cor 3, 26 – 23; Mt 5, 38 – 48

“Sede
perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.

São
palavras que abrem uma perspectiva impossível para as capacidades humanas, pois
o limite e a inconsistência constituem o núcleo mais profundo da nossa condição,
enquanto criaturas. Apesar disto, paradoxalmente, são estes limites que
constituem também a fonte secreta do nosso desejo inextinguível de plenitude
que nos transcende, e nos abrem à procura incessante daquele que é a nascente
inesgotável da vida e da felicidade: Deus. 

Dentro de
nós se trava esta batalha estrutural entre limite e abertura para o infinito,
entre falhas e invocação de libertação. Cada um pode se reconhecer no grito
sofrido e cheio de esperança do apóstolo: “Infeliz de mim! Quem me libertará
desta condição mortal? Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso!” (Rm 7,
24 – 25). 

Porque será
que Lucas, no passo paralelo, substitui a expressão de Mateus “Sede perfeitos
como o vosso Pai celeste é perfeito”, com “Sede misericordiosos como o vosso
Pai é misericordioso” (cf. Lc 6, 36)? 

Será que é
para nos encorajar a nos aproximarmos com confiança Àquele que se fez próximo a
nós na humildade da carne do seu Filho, como o bom samaritano foi próximo ao
homem abandonado semimorto pelos assaltantes, ao longo da estrada entre
Jerusalém e Jericó? (cf. Lc 10, 29-37).

É na
proximidade compassiva para com os pequeninos e os pecadores que Jesus revela
de maneira especial a “perfeição” e a “santidade” de Deus, como Pai. E nos
convida a aprender agir no estilo do Pai e dele mesmo, com a finalidade de nos
tornarmos “filhos do Pai que está nos céus” (Mt 6, 45; Lc 6, 35) e seus
discípulos (cf. Jo 13). 

Já o livro
do Levítico (1a Leitura) faz ressoar o convite: “Sede santos, porque eu, o
Senhor  vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). É verdade que o AT destaca com
freqüência a santidade de Deus, como separação, distância e transcendência. Mas
é também verdade que com igual insistência e força o AT nos mostra que ele
manifesta a sua santidade “olhando a miséria do seu povo oprimido e escutando
seu grito” (cf. Ex 3,7-10). O lugar onde esplende a sua glória e a sua
santidade não é somente a beleza da criação, nem o esplendor do templo de
Jerusalém, mas o cuidado pela pequenez do seu povo Israel e a atenção
privilegiada pelo órfão e a viúva. 

Aqueles aos
quais Ele se revela na sua santidade transcendente são os mesmos que Ele envia
em missões desafiantes em favor do seu povo, para que sejam testemunhas críveis
da sua santidade e compaixão. Afinal, Ele é o Deus não dos céus longínquos, mas
da terra; é o Deus da história, e da história dos sofridos, para que ela se
torne habitação onde os moradores possam gozar da sua própria vida. 

O salmo
responsorial é uma magnífica contemplação deste rosto “novo” do Deus dos
antigos pais: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e todo o meu ser, seu santo
nome!… Pois ele te perdoa toda culpa e cura toda a tua enfermidade… O
Senhor é indulgente e favorável, é paciente, é bondoso e compassivo… Como um
pai se compadece de seus filhos, o Senhor tem compaixão dos que o temem” (Sl
102).

As
manifestações de Deus aos patriarcas e aos profetas, de Abraão a Moisés, de
Isaías a Ezequiel, e a missão que a eles entrega, testemunham o constante
estilo de Deus. Jesus, o Verbo feito carne, nos faz tocar com mão o coração do
Pai, exatamente através da partilha da nossa fragilidade humana: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória que ele tem junto ao
Pai como Filho único, cheio de graça e verdade… Ninguém jamais viu a Deus: o Filho
Unigênito, que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,14;18).

Com o
grande padre da Igreja Santo Ireneu, poderíamos resumir a surpreendente
contemplação da santidade de Deus, manifestada no mistério da Encarnação, com a
famosa expressão: “A glória de Deus é o homem que vive. A vida do homem é a
visão de Deus” (Adversus Haereses). E o prefácio da Transfiguração canta a
glória do Senhor na mesma linha: “Jesus manifestou sua glória e fez
resplandecer seu corpo, igual ao nosso… Desse modo, como cabeça da Igreja,
manifestou o esplendor que refulgiria em todos os cristãos”. 

Onde se
revela a santidade de Deus no homem/mulher? Já o livro do Levítico abre a
estrada. Um coração que não guarda dentro de si ódio ou rancor para com seu
próximo, que não procura vingança, na lógica do instinto. Quando a pessoa chega
a “amar o seu próximo como a si mesmo”, considerando o outro como portador de
mesma dignidade, fundamenta a ordem das relações humanas sobre a santidade de
Deus e reconhece que esta gera comportamentos responsáveis. A comunidade que se
inspira em tal critério “participa da santidade” de Deus. “Se quereis
obedecer-me e guardar minha aliança, sereis minha propriedade entre todos os
povos… Sereis um povo sagrado, um reino sacerdotal” (cf. Ex 19,5 – 6). São
Pedro transfere esta perspectiva ao novo Israel que é a Igreja (cf. 1 Pd 25,
9).

O Concílio
Vaticano II, fundamenta sobre esta relação profunda com o Senhor, a vocação de
todos os cristãos à santidade, segundo o chamado de cada um, na Constituição Lumem
Gentium (nn. 40 – 42). O mesmo Concílio baseia a possibilidade e o dever da
participação plena, consciente e ativa de todo o povo de Deus à liturgia, sobre
a participação à santidade de Deus recebida no batismo. Este dom divino permite
fazer da própria existência, vivenciada na fé e na caridade, o culto ao Pai em
Espírito e verdade, preanunciado pelo próprio Jesus à mulher de Samaria (cf.
Constituição Sacrosanctum Concilium, nn. 14; 48).  

Esta é ao
final de tudo a verdadeira meta que Jesus abre com o discurso programático da
montanha, quando apresenta si mesmo como cumprimento da Aliança e da Lei, e
quando propõe aos discípulos percorrer o caminho da interiorização dos
preceitos da Lei, e da integridade do compromisso entre atitudes interiores e comportamentos,
quando destaca a exigência da passagem da observância de múltiplos preceitos à
assunção do mandamento único e universal do amor. 

Na
realidade o que significa a passagem da lei do talião – norma que pretende
salvaguardar a “justa proporção” entre o mal feito e a pena – para a paradoxal
lei da rendição às pretensões dos arrogantes, a não ser, a superação do
critério da reciprocidade e do mérito, para abraçar o critério do amor que
almeja vencer o mal com o bem, desarmando o inimigo com a fraqueza do mesmo
amor? (cf. Mt 5, 42). Também em tempos a nós mais próximos, conhecemos exemplos
significativos de “não violência ativa” e eficaz, entre cristãos e não
cristãos, como Gandhi, Martin Luther King, Mandela, Irmã Dorothy Stang. 

Psicólogos
e pedagogos não afirmam que o caminho que só consegue sarar as feridas
profundas da alma e reorientar a vida de pessoas desnorteadas é a cura do amor?

A dinâmica
do amor introduz no dinamismo do Pai e torna novamente fecunda a existência
assolada pelo mal e o ódio. “Vós ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo
e odiarás o teu inimigo! Eu porém vos digo: amai os vossos inimigos e rezai por
aqueles que vos perseguem! Assim vos tornareis filhos do vosso Pai” (Mt 5, 44 –
45). 

O amor ao
inimigo, que se reveste de perdão e de zelo cuidadoso por ele, até entregá-lo
ao Pai como irmão na oração, é o cume da reviravolta da condição humana
realizada por Cristo, e ao qual chega resgatada a trágica relação de Caim com
seu irmão Abel (cf. Gen 4, 8 – 10).

No abraço
do Pai não existe distinção de pessoas; ele faz nascer o sol sobre maus e bons,
e cair a chuva sobre justos e injustos! (cf. Mt 5, 43 – 48). Um horizonte que
Jesus indica aos que o seguem como saída de si mesmos para entrar na lógica do
coração do Pai. Cada um, segundo a graça do Espírito, encontrará sua modalidade
e sua medida para liberar estas potencialidades divinas que guarda no coração.
São potencialidades do Espírito mais do que acervo de preceitos jurídicos e,
por isso mesmo, desafiantes para cada um de nós. 

Paulo na
segunda leitura desce à raiz da “identidade santa” da comunidade cristã e
destaca as modalidades novas de existência que ela pode atingir na liberdade do
Espírito: “acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus
mora em vós” (cf. 1 Cor 3, 16). A santidade de Deus, não é somente exemplo
inspirador. Ela atua a partir do interior da pessoa. É do coração habitado e
transformado pelo Espírito que brota a nova “ética” cristã: uma ética pascal.

A razão
última do respeito absoluto à pessoa e o fundamento de relações reciprocamente
acolhedoras no sinal da gratuidade, nascem da participação à Páscoa. Toda
divisão e toda competição nascem ao invés do egocentrismo, fruto amargo da
sabedoria “mundana”, constituindo uma negação de fato da liberdade recebida em
Jesus e da comum pertença a ele como o único Senhor: “Com efeito tudo vos
pertence: Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a morte, o presente, o futuro; tudo é
vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”(1 Cor 3, 22 – 23). 

O caminho para
passar da sabedoria mundana, fonte de divisão, à liberdade plena dos
regenerados na Páscoa de Cristo, tem a dinâmica da transformação eucarística
por obra do mesmo Espírito: é o que a Igreja pede em cada celebração memorial
da páscoa: “Na verdade, ó Pai, vós sois santo e fonte de toda santidade.
Santificai, pois, estas oferendas, derramando sobre elas o vosso Espírito, a
fim de que se tornem para nós o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso filho e
senhor nosso… E nós vos suplicamos que, participando do corpo e sangue de
Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito santo num só corpo” (Oração eucarística,
2).

Não se dá
vida nova sem que se morra ao homem velho com o Senhor da morte e da vida.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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