Liturgia da Palavra: O dinamismo intrínseco do reino de Deus na história

Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

SÃO PAULO, quinta-feira, 14 de julho de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 16º domingo do Tempo Comum – 1ª: Sap 12, 13.16-19; 2ª: Rm 8, 26-27; Ev.: Mt 13, 24-43 -, redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.

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DOMINGO XVI TEMPO COMUM

O dinamismo intrínseco do reino de Deus na história

Leituras: 1ª: Sap 12, 13.16-19; 2ª: Rm 8, 26-27; Ev.: Mt 13, 24 -43

“O reino dos céus é semelhante à…”.

Como vimos na meditação do domingo passado, Jesus, ao narrar suas parábolas, continua desvelando progressivamente a ação secreta com a qual Deus atua na história dos homens através da sua pessoa. A linguagem das parábolas, pela sua proximidade com a experiência de vida e às palavras de cada dia usadas pelo povo, facilita a comunicação com as pessoas simples, enquanto abre os olhos e o coração dos ouvintes às surpresas e à novidade de Deus. Ao deixar vislumbrar o dinamismo misterioso da sua ação, a pedagogia de Jesus continua sendo a mesma.

A compreensão profunda da sua mensagem, porém, é dom de Deus e do ensino pessoal de Jesus e pressupõe a atitude interior de abertura e de se deixar envolver e comprometer. Os evangelistas destacam o cuidado particular com o qual Jesus introduz os discípulos no sentido profundo das parábolas: “Então, deixando as multidões, entrou em casa. E os discípulos chegaram-se a ele, pedindo-lhe: ‘Explica-nos a parábola do joio no campo’.” (Mt 13, 36). “A vós é dado conhecer os mistérios do reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas, a fim de que vejam sem ver e ouçam sem entender” (Lc 8, 10).

Não é suficiente o conhecimento da mente. Somente quem confessa sob o impulso do Espírito Santo que “Jesus é o Senhor” alcança a salvação (cf. Mc 3, 11; 1 Cor 12, 3). É necessário deixar que a palavra desça até o coração e aí suscite a decisão de se render ao Senhor e ao seu projeto. Maria é o modelo do verdadeiro discípulo: ela escuta e acolhe com todo o seu ser a palavra do reino: “Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera… Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 2, 49-51).

Continuando na imagem da semente jogada no campo com generosidade pelo semeador, Jesus acrescenta outra parábola com a qual ilumina a situação complexa que a boa semente vai encontrar no processo de seu crescimento. Tem grande influência neste processo não somente a qualidade do terreno (Mt 13, 4-9), mas também a convivência com outras ervas ruins, como o joio, que disputam com ela os recursos vitais do terreno (Mt 13, 30).

A comunidade dos discípulos, nascida pela força intrínseca da palavra, se pergunta como pode acontecer que no próprio seio experimente a presença do mal, a falta da fé, as divisões internas, etc. Com a parábola do joio, Jesus entende abrir a fé dos discípulos de todos os tempos ao misterioso dinamismo do reino de Deus e da palavra do evangelho. Permanece um mistério a modalidade com a qual o processo do reino de Deus se insere e se desenvolve na complexidade da história humana, na consciência de cada pessoa, assim como na consciência das comunidades. Seu estilo continua sendo o da fraqueza da Palavra, que continua a se fazer carne, como no próprio Jesus (cf. Jo 1, 14; Gl 4, 4).

É na fraqueza que se manifesta o poder e a força de Deus, assim como a sua sabedoria que confunde a sabedoria humana. Mas tais experiências, na boca dos crentes, se tornam perguntas doloridas sobre Deus, sobre o mundo e sobre si mesmos e invocações apaixonadas de ajuda. “O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza. Pois não sabemos nem como pedir; é o próprio Espírito que intercede em nosso favor com gemidos inefáveis” (Rm 8,26 – segunda leitura).

A experiência do apóstolo Paulo é emblemática. Diante do misterioso “aguilhão na carne” que o atormenta, pede insistentemente ao Senhor para ser libertado, mas recebe a surpreendente resposta: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo seu poder”. Ele, com renovada paz, declara: “Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo… Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 9-10).

Cumpre lembrar que esta radical mudança de perspectiva amadureceu em Paulo através de duras experiências e sucessivas conversões interiores ao Senhor, como ele mesmo nos lembra(cf. 2 Cor 5, 16;Fl 3, 7-8).

A explicação alegórica da parábola (Mt 13, 36-43), elaborada pela comunidade à luz da sofrida experiência amadurecida nos anos, atualiza o ensino de Jesus por todo tempo e por toda situação histórica.

É o que vão destacar as duas parábolas que seguem imediatamente à parábola do joio: o grão de mostarda (Mt 13, 31-32) e o fermento colocado na farinha (Mt 13, 33). Nada pode impedir que a energia vital do reino e da palavra exprima toda sua fecundidade e força transformadora.

Pelo contrário, seja o grão de mostarda, seja o punhado de fermento, ambos desenvolvem uma energia imprevisível e desproporcionada em relação à própria aparência. Esta perspectiva surpreendente, que vem do próprio Deus, alimenta a esperança e ilumina o caminho da comunidade. Igualmente alimenta a esperança e ilumina o caminho de cada um de nós.

No entanto, porém, as inquietações suscitadas pelas experiências negativas no nosso caminho pessoal, dentro e fora da comunidade, impelem para soluções eficazes e imediatas. “Os servos perguntaram-lhe: ‘Queres, então, que vamos arrancá-lo?’ [o joio]” (Mt 13, 28). A convivência com o mal, moral, espiritual, físico, fica insuportável em si, e torna-se escandalosa em relação à maneira humana de pensar em Deus, o onipotente, o Pai cuidadoso, o juiz que faz justiça. Terá porventura Deus tornado-se impotente? A reação mais imediata e razoável dos homens é sempre a mesma: arrancar logo o joio, limpar o terreno, separar e destruir o que impede a beleza do campo e a fecundidade da colheita! Dentro de nós e nas relações com os outros.

A resposta do dono do campo, porém, vai em direção bem diferente: “Ele respondeu: Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo. Deixai-os crescer juntos até a colheita.” (Mt 13, 29-30). Ele abre perspectivas de julgamento que vão além da pressa dos homens, e de sua sede por julgamento e condenação imediatos, segundo critérios aparentemente mais eficazes: “No tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; quanto ao trigo, recolhei-o no meu celeiro”. (Mt 13, 30). Pedro interpreta os pretendidos atrasos de Deus como expressão benevolente da sua paciência e do seu cuidado carinhoso conosco, para que ninguém se perca e todos venham a converter-se (2 Pd 3, 10).

“Vós, Deus de ternura e de bondade, nunca vos cansais de perdoar. Ofereceis vosso perdão a todos, convidando os pecadores a entregarem-se confiantes à vossa misericórdia” (Oração Eucarística VII). A paciência de Deus é oferta de oportunidade para conversão, não descuido. Recentes experiências de ignorar graves abusos de membros qualificados da Igreja em nome da discrição, do bom nome da Igreja e da misericórdia para com os pecadores, mostrou quão diferente foi esta atitude inspirada por critérios humanos, da paciência de Deus ao cuidar do trigo misturado com o joio. 

Desde o início a Igreja de Cristo teve de enfrentar a tentação de se constituir somente pelos “puros”. Pelo contrário, Jesus anuncia a boa nova e acolhe sobretudo os marginalizados e pecadores. Paulo chama o povo de Deus, reunido no sangue de Cristo e santificado pelo seu Espírito, de “santo” e ao mesmo tempo marcado pela fragilidade humana, pelo pecado e sempre necessitado do perdão de Deus (cf. 1 Cor 1, 2; 2 Cor 5, 17-19). Com admirável sentido de fé e de esperança, na Oração eucarística V, a Igreja se apresenta humildemente ao Senhor, como “povo santo e pecador”, para implorar a sua força a fim de construir, na comunhão entre todos os seus membros, “o vosso reino que também é nosso”. E nós, a cada domingo, na profissão de fé do Creio, proclamamos: “Santa a Igreja”.

Hoje em dia, os cristãos ficam vivendo numa sociedade pluralista e, sob vários aspectos, também secularizada. Ela apresenta diferentes pontos de vista, compreensões, interesses, comprometimentos religiosos, políticos, sociais e culturais. Uma situação muito diferente de quando a quase totalidade da população no Brasil e em outras “nações católicas” se referia, pelo menos em nível de práticas religiosas e do costume social, ao mundo da Igreja católica e a seu ensino.

Alguém poderia sentir-se impelido, mais que a confrontar-se com esta complexa realidade histórica, iluminado pelo discernimento espiritual e por uma madura avaliação cultural, a contrapor-se a tudo o que é diferente dos modelos culturais e religiosos vigentes no passado, e da sua própria visão cultural e religiosa, à maneira dos servidores diante do joio.

A parábola parece nos sugerir que, ao olhar de maneira crítica sobre o campo das conquistas do progresso humano, assim como dentro das suas ambigüidades, é preciso apreender a discernir com a simplicidade dos “puros de coração”, prontos a reconhecer também as novas oportunidades de anunciar a boa nova e de espalhar a boa semente do reino que o Senhor nos proporciona. Este nosso tempo constitui uma parábola para nós, a ser interpretada na luz do Espírito de Cristo.

O Concílio Vaticano II, convidou a Igreja a se confrontar com amor e sabedoria espiritual com os sinais de Deus, que se deixam entrever nas situações do tempo atual. Sucessivamente os pontífices de Roma continuaram a transmitir ao povo de Deus esta mensagem de confiança e de discernimento, junto com claras indicações sobre as ambigüidades e sombras da mentalidade atual.

Este trabalho de discernimento entre o trigo e joio toca cada cristão na sua vida cotidiana. É um apelo à responsabilidade pessoal a ser exercitada na comunhão com toda a Igreja. Chama em primeira pessoa os leigos e as leigas não menos que os membros da hierarquia, pelo Espírito e pela vocação recebida no batismo. Foi assim desde o início da comunidade cristã, guiada pelos apóstolos. Não foi fácil para ela sair de Jerusalém e do mundo judaico, berço da sua origem e da sua identidade, para o mundo afora, pagão, grego e romano. Os Atos dos Apóstolos nos relatam este penoso trabalho interior da comunidade e a firme pedagogia com a qual o Espírito conseguiu guiar os apóstolos e as comunidades à plena liberdade em Cristo, através dos medos, confrontos, discernimentos.

A obediência ao Espírito permite à palavra do evangelho “continuar seu caminho e ser glorificada”, graças ao impulso divino e à sua vitalidade interior (cf 2 Ts 3,1).

As parábolas do grão de mostarda e do fermento destacam o dinamismo que o reino tem em si mesmo, e que está atuando no caminho da comunidade e de cada um de nós. Potencialidade, vocação e dom a invocar com a Igreja inteira: “Ó Deus, permanecestes junto ao povo que iniciastes nos sacramentos do vosso reino, para que, despojando-nos do velho homem, passemos a uma vida nova” (Oração depois da comunhão).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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