Liturgia da Palavra: Nos tornarmos o mistério que celebramos

SÃO PAULO, quinta-feira, 10 de março de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – I de Quaresma Gn 2,7-9; 3,1-7; Rm 12-19; Mt 4, 1-11 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.  

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I DOMINGO DE QUARESMA

Leituras: Gn 2,7-9; 3,1-7; Rm 12-19; Mt 4, 1-11

Os primeiros nove domingos do Tempo Comum – caracterizados pelo início da missão de Jesus e a meditação do seu Sermão da montanha – acabaram de deixar-nos um recado de excepcional profundidade e dinamismo humano e espiritual, bem interpretado por Santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti” (Confissões, Livr.1,1; LH do 9º Domingo do Tempo Comum).

A Quaresma nos abre o caminho para que possamos descer até o abismo desta inquietação, onde o coração humano se encontra com a inquietação do próprio Deus para com o homem: “Deus tanto amou o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). “Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). 

Na parábola do “filho pródigo”, ou do “Pai amoroso e misericordioso”, o próprio Jesus nos revela o misterioso dinamismo atuando nos corações do filho e do pai, e que consegue atrair de volta o filho para casa. Para o filho se reinicia uma nova história, quase um novo nascimento (Lc 15, 11-24).

Esta fascinante perspectiva nos joga no abismo da páscoa, lugar onde convergem e se encontram, no amor sacrificado do Ressuscitado, vencedor da morte, o amor gratuito e sofrido de Deus pelo homem e a inquieta busca do homem pela vida plena e a felicidade. A Quaresma marca o nosso retorno, ou o nosso êxodo, da terra da nossa dispersão para a nascente inesgotável e compassiva da vida que é a páscoa de Jesus. Ali se aprende a respirar e viver com o ritmo do coração de Deus. Os Padres da Igreja chamam este misterioso movimento, ativado pela páscoa de Jesus, de procura recíproca entre Deus e o homem, de “sacramento da quaresma”, ou mesmo, de “sacramento pascal”. 

Por termos a imagem de Deus gravada na carne viva do nosso ser, e por termos sido mergulhados nas águas vivas da morte e Ressurreição de Jesus com o batismo na fé da Igreja, nós continuamos vivendo nas entranhas maternas de Deus a misteriosa gestação da nova criatura, juntamente com a criação inteira. Esta, a criação, anseia a ser desenvolvida até sua plenitude e a viver a liberdade própria dos filhos e das filhas de Deus (Rm 8, 18-25). Como atesta João, “desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou” (1 Jo 3, 2). Esta tensão entre o “já” e o “ainda não” nos atravessa internamente.

Deus fica cuidando de nós, de cada um de nós, como seu filho, ou filha, único e continua chamando-nos pelo nome para uma nova existência e missão, com a voz do amor que nos molda sempre mais à sua imagem (cf. Jr 1, 5; Sl 138, 13-16) até que, conformados plenamente a ele em Cristo, seu próprio nome esteja impresso na nossa fronte, em sinal de total pertença a ele na fidelidade e na reciprocidade do amor (cf. Ap 22, 4).

Tal é o dinamismo da páscoa que atravessa e anima tudo o que se deixa abraçar pela energia do Espírito, que ressuscitou Jesus da morte e deu início à nova criação (cf. Rm 1, 4).

No Brasil, a “Campanha da Fraternidade” de 2011 destaca a exigência da formação de uma nova consciência ecológica. O tema da Campanha poderia nos ajudar a nos conectarmos com a relação profunda existente entre si de todos os elementos da criação e a relação da pessoa humana com esses elementos no mesmo dinamismo da páscoa, e sublinhar a responsabilidade que o homem tem em relação à salvaguarda e ao desenvolvimento ordenado e sustentável do planeta Terra e das relações humanas. Esta atenção ajudaria a evitar contrapor, ou simplesmente de justapor, o assunto da Campanha da Fraternidade ao eixo central da quaresma e da páscoa.

Será que no processo global de transformação contínua, que abrange o universo e a existência humana, não está emergindo para o olho contemplativo da fé, o criador e multiforme rosto de Deus, fonte amante da vida, e o dinamismo da páscoa de Jesus, que gera nova vida através da radical transformação da própria morte e do pecado, pela força vital do amor?

Podemos contemplar com estupor e alegria, até onde pode chegar o “admirável intercâmbio” realizado na Encarnação do Verbo de Deus, que acabamos de celebrar nas festas do Natal e da Epifania, e que na Páscoa vai encontrar seu cume.

O convite de Jesus, repetido pela Igreja, ao acompanhar o gesto da imposição das cinzas no primeiro dia da quaresma, “Convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15), é o insistente convite a tomar consciência que nossa identidade de discípulos é um incessante processo de conversão ao Senhor. Pois não sabemos o que somos de verdade, enquanto o que seremos não foi ainda revelado em plenitude, como acabamos de ouvir do apóstolo João (cf. 1 Jo 3, 2).

Somos a admirável obra ainda inacabada do Espírito, a casa e o santuário de Deus em construção, fundamentado sobre a pedra angular que é o próprio Cristo Jesus (Ef 2, 20-22). Somos as crianças, que precisam ainda ser alimentadas com o leite da palavra até que nos tornemos adultos (1 Pd 2, 2-3). Ainda percebemos a realidade profunda de Deus e de nós mesmos, em maneira confusa e às vezes até mesmo distorcida, apenas vislumbrada no espelho da fé, enquanto esperamos conhecer e ser conhecidos em plenitude pelo coração amante de Deus (cf. 1 Cor 13, 12).

A Quaresma exprime e alimenta, ao mesmo tempo, a consciência de pertencer já ao mundo novo nascido na morte e ressurreição de Jesus, e a necessidade de acompanhar com perseverança e humildade o processo incompleto da nossa conformação a Cristo, o homem novo.

Por isso, o sentido profundo da Quaresma, está totalmente na sua orientação para a páscoa, sua origem e sua meta. Contrariamente ao sentido erroneamente difundido entre o povo, a alma profunda da Quaresma é a “sóbria alegria”, irradiada pela luz do ressuscitado que brilha na fé, e que a perspectiva da grande Vigília Pascal tem viva, alimentando a esperança de progredir no caminho com Cristo. “Vós concedeis, Senhor, aos cristãos esperar com alegria, cada ano, a festa da Páscoa” (Prefácio da quaresma, n. 1). 

Cada ano é uma nova espera e esperança de crescimento no Senhor, e por isso cada quaresma – páscoa é uma nova alegria. Uma espiral que nos acompanha, até celebrar na páscoa eterna a nova criação alcançando sua plenitude definitiva (Prefácio da Páscoa, n. 4).

Enfim, a perspectiva da Igreja, através do caminho da Quaresma, é a de nos ajudar a tornarmos em plenitude, o que já somos em raiz, e a nos tornarmos em nossa existência o mistério pascal que celebramos. A Quaresma sem a páscoa fica incompreensível. Mas também a páscoa, sem ter percorrido com seriedade o “itinerário quaresmal”, não poderia ser celebrada e vivenciada como “vida nova” que brota no coração convertido.

A Igreja, guiada pela sabedoria do Espírito, conhece as fraquezas da pessoa humana mesmo mergulhada na páscoa renovadora de Cristo, e por isso nos proporciona, com sábia pedagogia, o caminho da redescoberta da nossa iniciação ao Mistério Pascal de Cristo e da conversão renovada ao Senhor, através do arrependimento e da entrega confiante à sua misericórdia.

Com fina intuição pedagógica, a liturgia faz ressoar na celebração da quarta-feira das Cinzas a palavra do apóstolo na sua perene atualidade: “Como colaboradores de Cristo, nós vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus, pois ele diz: ‘No momento favorável eu te ouvi, e no dia da salvação eu te socorri’. É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2 Cor 6,1-2).

A estrutura do ciclo pascal sustenta este dinamismo interior. A quaresma constitui a primeira parte do ciclo que, no seu conjunto, compreende: Tempo da quaresma – Tríduo Sagrado – Tempo de Páscoa/Pentecostes. O concílio Vaticano II, e a reforma por ele promovida, colocaram novamente em luz os dois elementos que desde sempre caracterizavam a Quaresma, mas que com o decorrer do tempo tinham sido escurecidos: a iniciação cristã, entrada no mistério pascal de Cristo, e a penitência, caminho de retorno às raízes da vida cristã no batismo (Sacrosanctum Concilium 109).

O descuido deste centro da fé e da formação cristã tinha contribuído, infelizmente, a focalizar a atenção da pregação e da prática religiosa do povo de Deus em aspectos significativos em si, mas colaterais à centralidade do mistério de Cristo e do caminho espiritual. A Quaresma se tornou o tempo marcado sobretudo por sinceras devoções populares, centradas nos sofrimentos e na morte de Jesus. A pregação se tornou prevalentemente moralística, centrada sobre o pecado, porém, com pouca conexão com a experiência da páscoa e do batismo, que constituem a nascente viva da moral cristã. Até hoje em dia se pode experimentar facilmente como é difícil contemplar a paixão e morte de Jesus em conexão com a sua ressurreição, e colocar os sofrimentos que cada um enfrenta na luz da paixão e da ressurreição do Senhor.

Os textos litúrgicos destacam com freqüência as dimensões batismal e penitencial do caminho cristão: basta ver o precioso tesouro das leituras bíblicas, assim como dos salmos responsoriais, das antífonas de entrada e de comunhão, das orações, dos prefácios, etc. Aos textos das celebrações da eucaristia, acrescenta-se a grande riqueza da Liturgia das Horas, que propõe uma abundante mesa da palavra bíblica e das reflexões espirituais de numerosos homens e mulheres de Deus, iluminados pela sabedoria do Espírito.

As leituras dos domingos do ano A destacam o itinerário batismal, seja em função dos catecúmenos que se preparam para receber o batismo, seja para orientar os fieis a renovar a graça da própria iniciação cristã. 

A sucessão dos Evangelhos, aos quais estão claramente conexas a primeira e a segunda leitura, é muito eloqüente: No 1º Domingo temos o combate vitorioso de Jesus com o diabo no deserto; esse episódio evidencia nossa condição de pessoas expostas em maneira permanente ao risco e ao combate espiritual (Mt 4,1-11). No 2º Domingo, Jesus transfigurado em cima da montanha, é revelado aos discípulos como o Filho a quem escutar e seguir, e como a meta da nossa peregrinação (Mt 17, 1-9). No 3º Domingo Jesus encontra a mulher samaritana junto do poço. Ele é a água viva que satisfaz nossa sede profunda de vida (Jo 4, 5 – 42). O 4º Domingo apresenta Jesus curando o cego de nascença. Ele é a luz que ilumina nossas trevas e abre o caminho para o Pai (Jo 9, 1-41). No 5º Domingo Jesus ressuscita o amigo Lázaro: ele é nossa vida e ressurreição (Jo 11, 1- 45). No Domingo dos ramos as leituras nos colocam ao seguimento de Jesus. Ele exercida sua realeza da cruz e se põe como caminho de vida (Mt 21, 1-11= a entrada de Jesus em Jerusalém; Mt 26, 14 -27, 66: paixão e morte de Jesus). A grande Vigília Pascal com o anúncio da Ressurreição de Jesus e com suas etapas – liturgia da luz, liturgia da palavra, liturgia batismal, liturgia eucarística – constitui o oceano divino no qual deságua o caminho do povo de Deus, para uma nova experiência de liberdade filial.

Tudo isso constitui um patrimônio antigo e novo de fé e de oração, que a Igreja, com a reforma litúrgica, está pondo nas mãos do povo de Deus inteiro, e não somente do clero como acontecia antes. Uma mesa abundante, capaz de alimentar a Lectio Divina pessoal, a participação ativa à celebração, a pregação, centrada no Mistério Pascal de Cristo. É preciso não ter pressa, nem pretensão de “comer” tudo duma vez. A celebração da Quaresma não é um curso de palestras teológicas e espirituais. É um caminho silencioso de amor junto com o próprio Jesus, é uma refeição da alma junto com ele. Precisa de seu tempo e de sua quietude para “ruminar” e saborear a palavra do Senhor, como diziam os Padres da Igreja, para assimilá-la e deixar ao Espírito a liberdade de atuar em nós.

As leituras e as orações do primeiro Domingo oferecem uma síntese do percurso sofrido do caminho quaresmal, rumo à liberdade pascal, que se deixa vislumbrar ao final para quem perseverar no seguimento de Cristo. 

O combate vitorioso de Jesus com o diabo no deserto (evangelho) indica como está profundamente enraizada no coração do homem e da mulher de todos os tempos a tentação de pôr-se diante de Deus, não no diálogo amante que Deus tinha imaginado com eles ao colocá-los como seus parceiros no jardim da vida (primeira leitura), mas em concorrência com ele, à procura de uma autonomia absoluta.

Jesus, ao invés, procura seu sustento não no pão produzido pelas próprias mãos, herdeiro do fruto proibido da arvore do paraíso, mas na confirmada relação filial com o Pai. Ele abre e indica o caminho certo para voltar às potencialidades originais que guardamos dentro de nós, e para construir um futuro de liberdade filial (segunda leitura).

Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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