Liturgia da Palavra: Construir a casa sobre a rocha da Palavra do Senhor

Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguraçã

SÃO PAULO, quinta-feira, 3 de março de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – IX do Tempo Comum Dt 11, 18; 26-28; 32 – Rm 3, 21-25a; 28 – Mt 7, 21-27 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.  

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DOMINGO IX DO TEMPO COMUM

Leituras: Dt 11, 18; 26-28; 32 – Rm 3, 21-25a; 28 – Mt 7, 21-27 “Quem
ouve estas minhas palavras e as põe em prática,… construiu sua casa
sobre a rocha. Quem ouve estas minhas palavras e não as põe em
prática… construiu sua casa sobre a areia” (Mt 7, 24-26). “Uma passagem da espiritualidade do Deuteronômio, centrada sobre a fiel observância da Torá/Lei
de Israel, como sinal de fidelidade sincera à aliança e garantia de
felicidade, para a relação pessoal com Jesus, Palavra vivente do Pai,
vivenciada na fé, rocha firme sobre a qual vai se construindo a casa da
identidade e da verdadeira vida do discípulo”.   Poderíamos
resumir assim o longo caminho que a Palavra de Deus deste domingo nos
fornece; Palavra arraigada nos grandes horizontes do discurso da
montanha, que nos acompanha há algumas semanas. O horizonte de vida
delineado por Jesus está profundamente enraizado na tradição espiritual
de Israel e, ao mesmo tempo, porém, o supera com sua radical novidade. O
novo centro é a pessoa de Jesus e a relação vital que o discípulo é
chamado a instaurar com ele e com o Pai no Espírito. O caminho
aberto por Jesus com sua experiência pessoal, e iluminado por seu
ensinamento, visa alcançar a vida plena na liberdade dos filhos e das
filhas do Pai. Este objetivo corresponde ao projeto original com o qual
Deus “criou” e “moldou” o povo de Israel, como protótipo da nova
humanidade, ao resgatá-lo da escravidão do Egito e da idolatria, e
estabelecendo com ele uma relação privilegiada de aliança para a
liberdade no amor.  O livro do Deuteronômio constitui uma
reflexão teológica e espiritual sobre a grande experiência da libertação
e do deserto, vivenciada por Israel sob a guia do Senhor, com a
finalidade de sustentar e orientar o povo ao enfrentar os novos desafios
que em cada geração encontra no seu caminho. Um texto central do livro
coloca na boca de Moisés esta afirmação: “Tirou-nos daí… para nos
dar a terra que havia prometido aos nossos pais. E nos mandou cumprir
todos esses mandamentos… para nosso bem perpétuo, para que continuemos
vivendo como hoje. Ficaremos justificados diante do Senhor nosso Deus, se pusermos em prática todos os mandamentos que nos ordenou”
(Dt 6, 24-25). Estas palavras constituem quase com a síntese luminosa
da fé de Israel e do ensino espiritual deste livro, e desenha o estatuto
social do povo de Deus, coerente com aquela experiência fundamental.
Esta visão unitária foi amadurecendo através da dura passagem do exílio
em Babilônia, interpretado pelos autores do livro sagrado como punição
divina pela infidelidade à aliança e à legislação que a acompanhava. A memória da libertação da escravidão por iniciativa de Deus, o dom da lei/torá”Eis que ponho diante de vós benção e maldição: a
benção, se obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus que hoje vos
prescrevo; a maldição, se desobedecerdes aos mandamentos do Senhor
vosso Deus…. por seguirdes outros deuses, que não conhecíeis” (Dt
11, 26-28). É uma escolha sem alternativas, entre a vida e a morte. A
observância da legislação sagrada é condição absoluta para instaurar a
autêntica relação com o Senhor – “ficaremos justificados” (Dt 6,24) – e entre os membros do povo. 
finalizada a orientar o bem-estar na sociedade, o estabelecimento na
terra prometida aos antigos patriarcas, como lugar onde realizar o
modelo da vida na liberdade e no serviço ao Senhor, constituem a nova
perspectiva existencial de Israel, indicada de maneira taxativa pelo
Deuteronômio: A
palavra bíblica se faz apelo à liberdade e à responsabilidade de cada
pessoa diante dos dons de Deus. Seguir o caminho indicado com cuidado
paterno pelo Senhor, que liberta e dá a vida, como Israel experimentou
na sua história, leva à realização da própria vocação original que é um
chamado à liberdade e à felicidade. Desviar deste caminho e desta
relação com o Senhor é seguir sonhos que não têm raiz nem consistência, e
não produzem frutos de vida, mas de morte.  O caminho de
interiorização da experiência histórica de libertação e da palavra
gerada pela mesma experiência, nas mãos de “homens religiosos” foi
perdendo sua linearidade. Os “intérpretes autorizados” da lei acabam
deslocando a atenção da ação libertadora e salvífica do Senhor para a
“observância” das prescrições da legislação e das suas interpretações,
multiplicadas até regulamentar os pormenores da vida cotidiana.  Vai
crescendo o pesadelo das normas e das tradições, originalmente nascidas
para promover o autêntico espírito de serviço ao Senhor e de
solidariedade com os demais, na liberdade e no amor. Perde-se a conexão
das leis com sua raiz interior, fonte da vida. Como se a observância das
normas e das tradições dos antigos pais tivesse a capacidade, em si
mesma, de “justificar” a pessoa na sua relação com Deus e dar-lhe a
vida.  Contra este processo de esvaziamento da energia vital da torá/lei,
reagem vigorosamente os profetas e o próprio Jesus, como nos atestam os
evangelhos, na dura polêmica com os escribas e os fariseus do seu
tempo, sobre o sábado, o templo, os alimentos, o contato com os doentes,
a relação com os pecadores, etc.  Contra todo formalismo religioso e jurídico, Jesus faz própria a invectiva de Isaías: “Este
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim; o culto
que me prestam é inútil, pois a doutrina que ensinam são preceitos
humanos” (Is 29, 13 – Mt 15, 8-9).  Jesus, pelo contrário,
reivindica a coerência entre a vida, com suas escolhas e comportamentos
cotidianos, e a vontade do Pai. Ela é a única maneira para responder com
amor e autenticidade ao seu amor gratuito e fiel. Por isso o
“mandamento” do amor se torna o “único” mandamento da Nova Aliança, pois
ele é capaz de dar alento à vida inteira do discípulo e de orientá-la
com a mesma intensidade para o Pai e para os irmãos. “Nem todo aquele
que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no reino dos céus, mas o que põe
em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Tal é a vida de Jesus, a tal é chamado a tornar-se o discípulo.  Perspectiva
talvez desanimadora. Quem poderia alcançar tal objetivo com as frágeis
forças humanas? Aqui, porém, está a novidade absoluta da relação com
Jesus, e através de Jesus, para com o Pai. É uma relação que transmite a
vida mesma do Pai e de Jesus, através do seu Espírito, àqueles e
àquelas que se alimentam da sua Palavra, e por ela se deixam guiar. Eles
e elas chegam a constituir com Jesus a única, mais extensa e unida
família, com o vínculo de uma consanguinidade espiritual: “Quem é
minha mãe e meus irmãos? E, apontando com a mão os discípulos, disse:
‘Aí estão minha mãe e meus irmãos. Quem cumprir a vontade de meu Pai do
céu, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 48-50).  Quando
Jesus convida a cumprir a vontade do Pai, nos convida a por em jogo
inteiramente a própria existência, colocando-a em suas mãos, e confiando
na sua benevolência fiel e paterna, sem alguma presunção de ter algo a
receber, como uma devida recompensa pelo próprio serviço ou por méritos
presumíveis diante de Deus. O modelo da verdadeira fé é aquele do
oficial pagão que tem consciência da própria indignidade para receber
Jesus na sua casa, porém, confia na capacidade e vontade de Jesus de
curar seu servo, mesmo de longe (Lc 7, 1-10). É aquele da mulher
pecadora, que em silêncio chora aos pés de Jesus, os lava com suas
lágrimas, os unge com seu perfume precioso e os seca com seus cabelos e
seus beijos (Lc 7,36-50). É aquele do publicano, que no limiar do
templo, à distância, nem sequer levanta os olhos ao céu e bate no peito
invocando piedade sobre si, pecador (Lc 18,9- 14). Estas pessoas, humildes e autênticas, são “o homem prudente”
que construiu sua casa sobre a rocha. As pessoas fundamentadas sobre
estas atitudes de fé e de confiante entrega ao Senhor encontram nele a
firmeza para resistir às enxurradas e às tempestades da vida, certas que
o próprio Senhor está pronto para sustentar sua casa e estender sua mão
que salva, como com os discípulos na tempestade do lago (cf. Mt 8,
23-27). Afinal, não nos ensina com clareza Jesus que ao discípulo convém estar sempre ao seu serviço, com generosidade e paz? “Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei:’Somos servos inúteis, cumprimos nosso dever’.”
(Lc 17,10). Para o discípulo, o serviço no amor é o lugar da plenitude
da vida não da humilhação. O próprio serviço ao Senhor no amor é já sua
abundante recompensa. “Amo, porque amo”, gostava repetir o grande místico São Bernardo. O paradoxo extremo, para os que seguem Jesus deixando tudo, é que eles vão receber “cem vezes mais”
o que abandonaram por amor dele e do evangelho (cf. Mc 10, 28-31). A fé
que conduziu o discípulo a escolher Jesus como seu verdadeiro tesouro
acaba dilatando o coração dele até experimentar a “plenitude” que o
Senhor providencia. Ainda mais, a fé conduz o discípulo a ganhar a vida,
enquanto a perde para Jesus! “Quem se empenha em salvar a vida, a perderá; quem perder a vida por mim, a salvará” (Lc 9, 24). Apontar
o dedo acusador contra os “fariseus” do tempo de Jesus e contra uma
certa presunção deles, de autojustificar-se diante de Deus através da
observância das leis e da fidelidade às tradições herdadas, seria
esconder-se diante do desafio sempre atual do comportamento e das
palavras cortantes de Jesus. Comportamento e palavras que nos interpelam
hoje, do mesmo modo com que o faziam com os contemporâneos dele.   A
sociedade contemporânea destaca a exigência de retribuir as pessoas
segundo “os méritos” e o valor mostrados no desenvolvimento efetivo das
próprias tarefas e iniciativas, e não segundo a posição ocupada na
escala da burocracia ou da sociedade. Está bem. Esta perspectiva por si
só visa valorizar e estimular as pessoas. Outra característica da
sociedade moderna é que nela tudo se vende e tudo se pode comprar. As
relações se tornam sempre mais de tipo comercial, mesmo as que por sua
natureza deveriam ficar no sinal da gratuidade e da festa.  Ao
ler os evangelhos, parece que os “fariseus e os mestres da lei” tinham
transferido de antemão estas dinâmicas para o âmbito religioso e mesmo
para a relação com Deus, pela relevância desproporcional atribuída à
observância das leis religiosas. Quanto desta mesma atitude ocultamente
mercantilista está poluindo de fato também certas formas da nossa
experiência religiosa, e até nossa maneira de rezar? O que está, às
vezes, por trás do pedido e da oferta dos sacramentos como “seguro” para
a salvação? Em que medida está bem fundamentado o costume de “pagar
promessa” para nossa Senhora ou a um santo?  Que magnífica orientação nos oferece o salmo responsorial! “Senhor, eu ponho em vós a confiança: sede uma rocha protetora para mim”
(Sal 30). É a partir do próprio enraizar-se no Senhor, “rochedo e
fortaleza”, que se pode construir a própria casa sobre a rocha.  Será
que certos modelos de catequese, quer antecedentes ao concílio Vaticano
II, quer oriundos de alguns movimentos mais recentes, seriam realmente
imunes desta mentalidade um pouco mercantilista antiga e moderna?
Estamos construindo com a sabedoria do Espírito, que nos faz alegrar
pela iniciativa gratuita do Pai e nos impele a responder-lhe com amor na
liberdade, ou estamos construindo, como o homem sem juízo, sobre a
suposta garantia dos nossos méritos?     Paulo, na segunda leitura, nos traça o caminho certo. Ele reivindica com força “a justiça de Deus que se realiza, mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que tem a fé”
(Rm 3, 22). Diante deste dom gratuito de Deus, ninguém pode ter a
presunção de fazer valer o próprio mérito, nem os judeus herdeiros da
aliança e da lei, nem os pagãos considerados pessoas sem orientação
certa de vida.  “A justificação se dá gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Jesus Cristo” (Rm 3, 24).  Além
das sutilezas teológicas, úteis para explicar mais profundamente as
afirmações tão cortantes de Paulo, está clara para nós a boa nova
anunciada por Jesus e realizada na sua morte e ressurreição: a nova
realidade do reino, que á a partilha da vida do próprio Deus nos é doada
de graça em Cristo Jesus. Este dom divino deve ser recebido com
gratidão, celebrado com alegria e  assumido como nova energia capaz de
mover nossa existência de filhos e filhas do Pai.  Este é o cerne
do Mistério Pascal de Jesus, que revirou a orientação da vida do
apóstolo, e  ao redor do qual desenvolve com paixão e inteligência
espiritual a carta aos romanos. Este é o Mistério Pascal no qual fomos
imergidos pelo nosso batismo na fé da Igreja. Este é o Mistério Pascal
que vamos nos preparar a redescobrir mais profundamente, e a celebrar
com alegria na santa Páscoa de 2011, a partir do domingo próximo, início
da santa Quaresma.  ” Ó Deus,… dai nos proclamar nossa fé
não somente em palavras, mas também na verdade de nossas ações, para que
mereçamos entrar no reino dos céus” (Oração depois da comunhão).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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