Jesus de Nazaré – EB

Revista: ‘PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 221  Ano 1989  p. 187



de Franco Zeffirelli

Em síntese: Franco Zeffirelli é o autor do filme “Jesus de Nazaré”, cuja primeira parte está sendo exibida no Brasil (apresenta acontecimentos desde o nascimento de João Batista até a primeira predição da Paixão) A película é rica em personagens, cenários, coloridos e sons, o que a torna pujante e impressionante Todavia apresenta Maria a sofrer as dores do parto – o que é ambíguo. Quer isto significar que Maria foi mãe como as outras mulheres, sem ter conservado o seu título de virgindade antes do parto, no parto e depois do parto? Ou quer Zeffirelli apenas indicar que Maria, ficando vigem perpétua, compartilhou o sofrimento de todas as mães? A clássica tradição católica sempre representou Maria isenta das dores do parto, a fim de acentuar plenamente a perpétua virgindade da Santa Mãe de Deus. De resto, a isenção das dores do parto em Maria nada tem que ver com a Imaculada Conceição da mesma Senhora.

 Pode-se também observar que o filme de Zeffirelli é pouco transparente ao Transcendental e Divino em Jesus. Além do que apresenta um Cristo cujas atitudes “místicas” nem sempre lembram as do Cristianismo, mas antes se assemelham às de outras fontes de espiritualidade. Todavia estes dois pontos têm pouca importância em confronto com o que se refere ao parto de Maria SS.

Não obstante, reconhecemos que o filme apresenta cenas grandiosas e que, abstração feita do referido episódio, poderá ser útil aos espectadores.

Comentário: O diretor de cinema italiano Franco Zeffirelli, autor de “Romeu e Julieta” e “Irmão Sol, Irmã Lua”, é responsável outrossim pelo filme “Jesus de Nazaré”, uma película cuja primeira parte está percorrendo o Brasil, devendo a segunda parte ser exibida em julho. Visto que o diretor se tornou famoso e o filme tem suscitado controvérsias, propomo-nos, a seguir, comentá-lo sumariamente.

1. “Jesus de Nazaré” ( I )

A primeira parte da película compreende os acontecimentos que vão desde os imediatos antecedentes do nascimento de João Batista até a primeira predição da Paixão por parte do Senhor, durando a sua exibição duas horas e meia.

A película foi filmada no Marrocos, na Tunísia e na Turquia, desde 29 de setembro de 1975 até 28 de maio de 1976.

Franco Zeffirelli consultou eclesiásticos e especialistas para reproduzir da melhor maneira possível as cenas dos quatro Evangelhos que ele selecionou segundo critérios válidos: a natividade de João Batista, a de Jesus, a pregação do Batista, o sermão das bem-aventuranças, a parábola do filho pródigo e outras, o episódio da pecadora anônima (que Zeffirelli impropriamente identifica com Maria Madalena), o demoníaco de Gerasa, a pesca milagrosa, a ressurreição da filha de Jairo, a multiplicação dos pães, a confissão de Pedro…

As cenas não são apresentadas por Zeffirelli na ordem mesma segundo a qual se encontram nos Evangelhos… Em um ou outro caso, o autor fugiu da letra do texto sagrada acrescentando-lhe algum tópico ilustrativo, que não diminui o valor da película assim, por exemplo moleques a ameaçarem de incêndio a casa da pecadora (supostamente Maria Madalena); por ocasião da multiplicação dos pães, no filme é a multidão que se precipita sobre o depósito de pães e peixes recém-produzidos, ao passo que o Evangelho diz que Jesus mandou à multidão que se sentasse sobre a relva, onde lhe seriam distribuídos os víveres. Após o perdão conferido à pecadora, Jesus lhe entrega um vaso de óleo que serviria para embalsamar o seu corpo (o que mescla as cenas de Lc 7 e Jo 12).

Em geral, o filme se apresenta rico em personagens, coloridos, música, som… É fortemente movimentado; exibe cenários grandiosos de desertos, dunas, aldeias, etc., o que bem corresponde ao estilo de Zeffirelli. Em conseqüência, o espectador não pode deixar de admirar o aspecto artístico da película, o qual é eloqüente e digno de apreço. Pergunta-se, porém: como julgar a mensagem transmitida pelo file?

É o que tentaremos dizer a seguir.

2. Refletindo…

Proporemos três pontos mais salientes, sublinhando de novo que é difícil apreciar de maneira exata o filme enquanto não se tem o conhecimento da segunda parte (que, entre outras coisas, apresentará o final da vida de Cristo).

2.1. Opacidade e transparência

Todo filme é geralmente concebido em vista de uma tese que o autor quer sugerir; por isto, o produtor estiliza, realçando um ou outro tópico que ele julgue mais importante para o seu propósito. Principalmente um filme sobre Jesus há de ser transparente à mensagem respectiva, sem, porém, ser piegas ou adocicado. Ora o filme “Jesus de Nazaré” nos pareceu insuficientemente transparente: os personagens e as cenas que apresenta, são marcados por variedade de cores, sons, movimentos, vestes que impressionam profundamente o espectador, mas que pouco ou nada insinuam de transcendente. Talvez uma maior sobriedade dos cenários facilitasse a percepção do outro lado da realidade ou do mistério de Deus feito homem. Aliás, o próprio Zeffirelli declarou:

“Estou interessado no aspecto humano de Cristo, de Maria e dos demais… algo nunca antes apresentado num filme. Cristo tem sido mostrado como uma criatura intocável, super-divina ou como um “hippie” rebelde; ora ambas são concepções que ficam totalmente alheias ao meu roteiro” (prospecto distribuído pela “Condor”).

Na verdade, é importante frisar o aspecto humano de Jesus, pois a salvação que Ele veio trazer se baseou na Encarnação e na partilha do humano com os homens; todavia, para ser fiel à verdade, é preciso que o autor saiba também deixar transparecer, através do humano, o Transcendental ou o Divino em Jesus.

2.2. A figura de Cristo como tal

A figura de Cristo apresentada por Zeffirelli nada tem de hippie (como talvez o tenha o Cristo de Buñel em “A Via Láctea”; também é bem distante do tipo de líder sindical e chefe de massas que Pasolini insinua no “Evangelho segundo S. Mateus”. Um tanto fora de propósito, o Cristo de Zeffirelli assume atitudes místicas que lembram fontes de espiritualidade diversas das da mística cristã. Com efeito, durante a multiplicação dos pães Jesus se coloca em atitude imóvel, com a mão levantada e o olhar fixo no fenômeno; tal gesto é ambíguo, pois lembra o do mago ou o do prestidigitador… Quando Judas se chega a Jesus pela primeira vez encontra-o a orar de olhos fechados, de tal modo que Jesus não responde de imediato a Judas; não haveria uma analogia entre tal atitude e a do guru (mestre) indiano absorvido em oração, disposto a se alhear ao mundo e aos homens sistematicamente? Tal atitude dificilmente corresponde ao que geralmente se pensa a respeito de Jesus Cristo, que foi certamente um grande orante (como homem), mas outrossim um amigo dos homens, aberto a todas as suas necessidades. Em suma, o artista Robert Powell, no papel de Jesus, não foi de todo feliz.

2.3. As dores do parto

Um dos pontos do filme mais controvertidos é o das dores do parto que Zeffirelli atribui a Maria SS. O autor assim justifica a sua opção:

“Para mim, esse nascimento foi tão importante que eu tive de mostrar que a natividade não era o parto agradável que é usualmente mostrado em filmes e pinturas. Maria teve um parto desesperado, com muitas dores. Ela teve o filho, como uma alma pobre e abandonada, muito jovem e sem qualquer ajuda a não ser a do esposo José” (ib.).

“Mostrei o nascimento de Cristo de maneira mais realista possível” (ib.).

Pergunta-se: essas dores do parto pretendiam significar apenas que Maria e Jesus compartilham a condição sofredora dos homens até as últimas consequências? Ou não significam também que Maria foi mãe como as demais mulheres, isto é, sem o título da Virgindade que a fé lhe atribui antes do parto, no parto e depois do parto? Se esta insinuação é a que Zeffirelli teve em vista, então realmente o seu filme destoa da mensagem da fé católica. A Igreja, visando a afirmar a virgindade de Maria no parto, sempre lhe atribui um parto sem dor; este é tido como conseqüência do fato de ter guardado a virgindade até mesmo durante o parto.

Note-se bem, de resto: a isenção de dores no parto, em Maria, não se deve ao fato de ter sido ela isenta do pecado original é que o texto sagrado refere a seguinte sentença do Senhor sobre a mulher após a queda original: “Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez; os teus filhos hão de nascer entre dores” (Gn 3,16). Todavia sabe-se que as dores do parto, no caso, significam a maternidade em toda a sua amplidão; o que o texto do Gênesis quer dizer, é que a mulher, em conseqüência do pecado, exercerá com trabalhos e fadigas a sua típica missão de mãe; se, nesse contexto, a medicina consegue diminuir ou suprimir as dores do parto, nada se lhe opõe da parte da Lei de Deus; a maternidade fica sendo árdua e laboriosa tarefa. Como quer que seja, não é por causa da imaculada conceição de Maria (isenção do pecado original) que a Tradição católica sempre ensinou ter sido indolor o parto de Maria.

São estas as três considerações que julgamos poder oferecer ao público no tocante ao conteúdo do filme “Jesus de Nazaré” de Franco Zeffirelli, em sua primeira parte. Das três, certamente a terceira é a mais poderosa porque de certo modo toca uma verdade de fé, que poderia estar sendo questionada pelo autor.

Resta ainda

3. Uma observação final

Após assistir ao filme “Jesus de Nazaré”, muitas pessoas levantam a questão a respeito do silêncio que no Evangelho cobre o período dos doze aos trinta anos de vida de Jesus. Por que a propósito nada disseram os evangelistas?

– A resposta não é difícil. Visto que já foi amplamente expostas em PR 206/1977, pp. 61-76, basta aqui resumi-la em poucas frases.

Os Evangelhos geralmente são tidos como biografias de Jesus, quando na verdade não o são. Os evangelistas não intencionaram descrever a vida e os feitos de Jesus, mas apenas redigiram por escrito a pregação oral dos Apóstolos. Ora esta começava pelo fim, e não elo nascimento de Jesus; isto é, narrava primeiramente a morte e a ressurreição do Senhor ou a Páscoa do Cristo, pois o que mais importa na mensagem cristã é a notícia de que Jesus salvou os homens derramando o seu sangue na cruz e superando a morte mediante a ressurreição. Em segundo lugar, a pregação dos Apóstolos narrava a doutrina de Jesus apregoada durante a sua vida pública, visto que esta era o pano de fundo necessário à compreensão da morte de Cristo. A vida pública do Senhor não era descrita segundo rigorosos critérios de cronologia e topografia, mas tão somente apresentada em vista da instrução doutrinária dos ouvintes. Para trás da vida pública ou para trás dos trinta anos de Jesus, não era necessário recuar na pregação dos Apóstolos; em conseqüência, S. Marcos nos narra apenas o que houve desde o batismo de Jesus até a sua glorificação, sem aludir à infância do Senhor; S. Mateus e S. Lucas acrescentaram ao esquema da pregação apostólica algo sobre o nascimento e a infância de Jesus porque o quiseram, e não porque isso pertencesse ao conteúdo da mensagem apostólica. Donde se vê que a gênese dos Evangelhos não é a de uma biografia: esta começa pelo nascimento, narra a infância e a juventude do seu herói, depois passa à vida profissional e ao declínio do biografado; se numa biografia falte alguma dessas partes, é justificado perguntar por que falta. O mesmo não se dá no gênero literário dos Evangelhos; estes começam pela Páscoa e encerram sua linha de exposição no Batismo do Senhor ocorrido aos trinta anos; o que para trás neles se acha, é intencionalmente esporádico.

Quem sabe disto, não se surpreende pelo silêncio dos evangelistas sobre o período que vai dos doze aos trinta anos de idade de Jesus, nem vai procurar explicações despropositadas para o mesmo em fontes mediúnicas ou esotéricas, que só podem falar, a respeito, de maneira fantasiosa e ilusória.

Em conclusão, pois, pode-se dizer: o filme “Jesus de Nazaré” de Franco Zeffirelli, em seu conjunto, é válido e interessante. Todavia, no tocante ao episódio do nascimento de Jesus deixa aberta uma questão que de perto toca a fé católica.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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