Homem e Mulher na sociedade civil e na Igreja – EB

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 509, Ano 2004, p. 482

Em síntese: A Congregação para a Doutrina da Fé publicou em agosto 2004 um documento que reafirma a distinção e a complementaridade de Homem e Mulher, com base nas Escrituras e na Teologia, que não fazem senão reafirmar a lei natural. Tem em vista correntes de pensamento contemporâneas que apregoam o antagonismo dos sexos ou o apagamento da sexualidade física, de modo que todo indivíduo humano tenha o direito de se comportar como homem ou como mulher.
   
A 31 de maio de 2004 foi assinado um documento da Congregação para a Doutrina da Fé; trata-se de uma Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e na Sociedade. O documento tem em vista diversas correntes antropológicas de nossos dias, que nem sempre propõem a autêntica promoção da mulher e da família.
       
Nas páginas subsequentes será apresentada uma síntese de tal documento.

O Problema (§§ 2-4)

Nos últimos anos têm-se delineado novas tendências na abordagem do feminismo:

1) Há os que enfatizam a tradicional subordinação da mulher ao homem e, à guisa de contestação, propõem a oposição da mulher ao homem. Ao abuso do poder responderiam as mulheres com a busca do poder, visando a destronar o homem. Tal atitude redunda em desamor e em prejuízo da família, que perde assim a sua harmonia. Chega mesmo a querer alterar as versões da Bíblia, tidas como machistas, já que Deus aí aparece como Pai e Jesus Cristo como varão.

2) Outros preferem prescindir das diferenças entre o masculino e o feminino, propugnando o nivelamento total entre o homem e a mulher. O que faz o masculino e o feminino não é a diferença sexual corpórea ou biológica, mas sim os condicionamentos históricos e culturais, de modo que todo indivíduo humano tem o direito de escolher: abandone-se o conceito de sexo biológico em favor da noção de gênero ou condicionamento cultural, pois a educação e a cultura é que tornam a pessoa homem ou mulher. – Tal perspectiva pretende fomentar a igualdade dos indivíduos humanos entre si e libertar a mulher de todo determinismo biológico; acaba, porém, destruindo a família bi-parental tendo pai masculino e mão feminina; equipara a homossexualidade à heterossexualidade e favorece a bissexualidade ou mesmo a promiscuidade. Segundo este enfoque, como dito, a natureza humana não teria em si mesma características que se imporiam de maneira absoluta, mas cada pessoa poderia e deveria modelar-se a seu gosto, pois estaria livre de toda predeterminação ligada à sua constituição corpórea.

Frente a tais correntes a Igreja deseja mostrar quanto estão longe de promover o bem da pessoa humana e da sociedade. Este só pode ser assegurado se se conserva a consciência das diferenças naturais existentes entre o homem e a mulher…, diferenças que devem provocar não o antagonismo, mas a complementaridade.

Seguindo a Carta, apresentaremos a doutrina bíblica e as conclusões concretas que dela decorrem.

A mensagem bíblica (§§ 5-12)

Os três primeiros capítulos do Gênesis apresentam a base de toda a antropologia cristã.

Em Gn 1, 27 lê-se: “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou. Homem e Mulher, Ele os criou”. Donde se depreende que já na origem da sua mensagem a Bíblia refere os dois sexos que, juntos, perfazem a imagem de Deus.

A diferença sexual é explicitada em Gn 2, 4-25: o varão (Adão) é criado só, e a mulher lhe é dada como auxiliar, o que em hebraico soa ezer; este termo não implica inferioridade, já que Deus mesmo é dito ezer (auxiliar) do homem em EX 18, 4; Sl 10, 35; a mulher está ao nível do homem, pois é tirada da sua carne e dos seus ossos; por isto também ele abandona pai e mãe e se une à mulher como esposo, formando a família, em que deve haver respeito e amor mútuos.

À criação sobreveio o pecado dos primeiros pais. Este foi uma ruptura da harmonia não só do homem com Deus, mas também do homem com a mulher; o pecado faz que o mútuo amor do casal degenere, cedendo ao egoísmo e à procura do domínio de um sexo sobre o outro, como anuncia a sentença proferida sobre Eva: “Sentir-te-ás atraída para o teu marido e ele de dominará” (Gn 3, 16).

Em suma, dos três capítulos iniciais do Gênesis deduz-se que homem e mulher compartilham a mesma dignidade, perfazendo a imagem e semelhança de Deus; disto se depreende que ele e ela estão numa relação de complementaridade mútua no plano físico e no psíquico; a sexualidade caracteriza a personalidade em todos os seus níveis. O valor dessa união do homem com a mulher é tal que a Escritura faz dela a imagem da aliança de Deus com os homens; todo o Antigo Testamento é perpassado por tal concepção, que o Profeta Isaías assim exprime: “Tal como o jovem desposa uma virgem, o teu Construtor te desposará; e, como a esposa é a alegria do marido, tu serás a alegria do teu Deus” (Is 62, 5).

O Cântico dos Cânticos é um momento muito especial dessa modalidade da Revolução. Nas palavras de um amor muito humano que celebra a felicidade de procurar-se um ao outro, exprime-se o amor de Deus ao seu povo.

No Novo Testamento Jesus Cristo faz as vezes do Esposo, que se une à Igreja; João Batista o introduz; quando interrogado sobre a sua identidade, apresenta-se como “o amigo do esposo”: Quem tem a esposa é o esposo; e o amigo do esposo, que a acompanha e escuta, sente muita alegria ao ouvir a sua voz. Essa é a minha alegria, que agora é completa: Ele deve crescer e eu diminuir” (Jo 3, 29-30).

A Imagem é retomada por São Paulo na carta aos Efésios, que aprofunda o simbolismo nestes termos: “Cristo amou a Igreja e por ela Se entregou… para a apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada” (Ef 5, 25-27).

Aos Coríntios escreve o Apóstolo:

“Sinto por vós um ciúme semelhante ao ciúme de Deus, porque vos desposei com um só esposo, que é Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura” (2Cor 11, 2).

Verdade é que em Gl 3, 27s escreve São Paulo: “Vós que fostes batizados em Cristo, revestistes o Cristo… Não há mais homem nem mulher”. Com estas palavras não tenciona o Apóstolo negar a distinção de homem e mulher, mas, sim, afirmar que a rivalidade, a inimizade e a violência, que desfiguram o relacionamento de parte a parte, são superáveis ou devem estar superadas.

Distintos um do outro desde o início da história, o homem e a mulher, participando da obra de Redenção de Cristo, deixam de conceber a sua diferença como fonte de discórdia a superar com a negação ou com o nivelamento, mas encaram-na como possibilidade de colaboração e complementação. Esta conclusão abre perspectivas para se avaliar o papel da mulher na sociedade civil e na Igreja.

O papel da Mulher na sociedade civil (§§ 13s)

13. Entre os valores fundamentais relacionados com a vida concreta da mulher, existe o que se chama a sua “capacidade para o outro”. Não obstante o fato de um certo discurso feminista reivindicar as exigências “para ela mesma”, a mulher conserva a intuição profunda de que o melhor da sua vida é feito de atividades orientadas para o despertar do outro, para o seu crescimento, a sua proteção.

Uma tal intuição é ligada à sua capacidade física de dar a vida. Permite à mulher alcançar muito cedo a maturidade, sentido da gravidade da vida e das responsabilidades que a mesma implica. É ela, enfim, que, mesmo nas condições mais desesperadas, possui uma capacidade única de resistir nas adversidades; de tornar a vida ainda possível, mesmo em situações extremas; de conservar um sentido tenaz do futuro e, por último, recordar com as lágrimas o preço de cada vida humana.

Embora a maternidade seja um elemento chave da identidade feminina, isso não autoriza absolutamente a considerar a mulher apenas sob o perfil da procriação biológica. Pode haver nesse sentido graves exageros que exaltam uma fecundidade biológica em termos vitalistas e que freqüentemente são acompanhados de um perigoso desprezo da mulher. A existência da vocação cristã à virgindade é de grandíssima importância. Nega ela de forma radical toda pretensão de fechar as mulheres num destino que seria simplesmente biológico… Compreende-se o papel insubstituível da mulher em todos os aspectos da vida familiar e social que envolvam relações humanas e o cuidado do outro. Aqui se manifesta com clareza o que João Paulo II chamou gênio da mulher. Implica isto, antes de mais, que as mulheres estejam presentes, ativamente e até com firmeza, na família, que é “sociedade primordial e, em certo sentido, “soberana”, porque é nesta que, em primeiro lugar, se plasma o rosto de um povo; é nesta que os seus membros adquirem os ensinamentos fundamentais. Nela aprendem a amar, enquanto são amados gratuitamente; aprendem o respeito por toda outra pessoa, enquanto são respeitados aprendem a conhecer o rosto de Deus, enquanto recebem a primeira revelação de um pai e de uma mãe cheios de atenção. Todas as vezes que venham a faltar estas experiências fundantes, é a sociedade no seu conjunto que sofre violência e se torna, por sua vez, geradora de múltiplas violências. Isso implica também que as mulheres estejam presentes no mundo do trabalho e da organização social e que tenham acesso a lugares de responsabilidade, que lhes dêem a possibilidade de inspirar a política das nações e promover soluções inovadoras para os problemas econômicos e sociais.

É para desejar, porém, que a mulher que trabalha fora do lar não fique sobrecarregara, pois ela tem uma tarefa a cumprir no lar como dona de casa, esposa e mãe. Exige-se, de fato, uma justa valorização do trabalho realizado pela mulher na família. Assim as mulheres que livremente o desejem poderão dedicar a totalidade do seu tempo ao trabalho doméstico, sem ser socialmente estigmatizadas e economicamente penalizadas. As que, por sua vez, desejarem realizar também outros trabalhos poderão fazê-lo com horários adequados, sem serem confrontadas com a alternativa de modificar a sua vida familiar ou então arcar com uma situação habitual de stress, que não favorece nem o equilíbrio pessoal nem a harmonia familiar. Como escreve  João Paulo II, “reverterá em honra para a sociedade o tornar possível à mãe – sem pôr obstáculos à sua liberdade, sem discriminação psicológica ou prática e sem que ela fique numa situação de desdouro em relação às outras mulheres – cuidar dos seus filhos e dedicar-se à educação deles, segundo as diferentes necessidades da sua idade”.

4. O papel de Mulher na Igreja (§§ 15s)

Desde as primeiras gerações cristãs, a Igreja considerou-se uma comunidade, gerada por Cristo e a Ele ligada por uma relação de amor, de que a experiência nupcial é a melhor expressão. Daí deriva que o primeiro dever da Igreja é permanecer na presença desse mistério do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, contemplá-lo e celebrá-lo. Nesta matéria, a figura de Maria constitui na Igreja a referência fundamental. Poderia dizer-se, com uma metáfora, que Maria oferece à Igreja o espelho em que esta é convidada a descobrir a sua identidade, bem como as disposições do coração, as atitudes e os gestos que Deus dela espera.

Sempre em Maria, a Igreja aprende a conhecer a intimidade de Cristo… Ela, que recebeu nos seus braços o corpo dilacerado de Jesus deposto da cruz, mostra à Igreja como acolher a vida de todos os que são desfigurados neste mundo pela violência e pelo pecado. De Maria, a Igreja aprende o sentido do poder do amor, como Deus o exerce e revela na própria vida do Filho predileto: dispersou os soberbos… exaltou os humildes” (Lc 1, 52-52). Sempre de Maria, os discípulos de Cristo recebem o sentido e o gosto do louvor perante a obra das mãos de Deus: “o Todo-poderoso fez em mim maravilhas” (Lc 1, 49). Aprendem que estão no mundo para conservar a memória dessas “maravilhas” e vigiar, enquanto aguardam o dia do Senhor.

Embora sejam atitudes que deveriam ser típicas de todo batizado, na realidade é típico da mulher vivê-las com especial intensidade e naturalidade. Assim as mulheres desempenham um papel de máxima importância na vida eclesial, lembrando essas disposições a todos os batizados e contribuindo de maneira ímpar para manifestar o verdadeiro rosto da Igreja, esposa de Cristo e mãe dos crentes.

O belo papel da mulher não comporta a ordenação sacerdotal, visto que Cristo não a conferiu a mulher alguma. Nota, porém, a Carta: “Tal fato não impede que as mulheres tenham acesso ao coração da vida cristã” (§ 16). É a santidade que faz a grandeza de alguém, e não a função que exerce.

5. Comentando…

A Carta assim apresentada provocou protestos da parte de certas correntes de pensamento; a Igreja estaria falando a um mundo que não existe.

Em resposta deve-se observar que o documento em foco não faz senão repetir o que a lei natural ensina (através das Escrituras, no caso). Ninguém pode fechar os olhos para as diferenças corpóreas e sexuais que caracterizam a personalidade de cada indivíduo, nem se pode afirmar que ser homem ou mulher é questão de educação e cultura mais do que de fisiologia. A cirurgia transexual, por mais esmerada que seja, não consegue produzir o aparelho genital masculino ou feminino.

Que a Igreja, baseada na lei natural e na Escritura, apregoa, é a igualdade e não a identidade do homem e da mulher: sim, igualdade quanto à dignidade (não há sexo inferior ou superior) e a não identidade quanto às características da personalidade; tenha comportamento masculino o homem; tenha comportamento feminino a mulher, para que haja harmoniosa complementaridade, enriquecimento mútuo e a construção de uma sociedade digna.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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