História da Igreja: Wiclef e Hus

concilio-de-constanza-juan-wiclef-jan-husA decadência da disciplina eclesiástica, as desgraças do tempo do Grande Cisma (1378-1417) eram circunstâncias propícias a que se originassem e programassem heresias populares nos séculos XIV/XV. Os seus fundadores são ditos “Reformadores antes da Reforma”, pois de certo modo antecipam os princípios básicos dos Reformadores do século XVI: exaltação unilateral da S. Escritura como fonte de fé, rejeição da tradição e da hierarquia, nacionalismo em oposição à Igreja Romana Universal.

Desses pré- reformadores, já vimos Guilherme Occam e Marsílio de Pádua (cf. capítulo 26). Outros foram, além destes dois, a saber: o inglês John Wiclef (1320-84) e o tcheco Jan Hus (1370-1416).

O Wiclefismo

John Wiclef (1320-84) era um nobre inglês que se fez Sacerdote, professor de Filosofia e Teologia na Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um espiritualismo exagerado. Os cristãos na lnglaterra sempre tenderam a se isolar do resto da Igreja (talvez por sua posição geográfica insular)55 ora o separatismo dos ingleses fornecia clima propício às ideias de Wiclef.

Em 1366 o Parlamento inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João sem Terra a Inocêncio III em 1213, (…) impostos que, havia 33 anos, já não eram pagos; ver capítulo 23. Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef afirmava que os bens temporais são nocivos à Igreja’ e que os príncipes têm, o direito de se apossar dos mesmos quando os clérigos não os utilizam devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades da Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero. Wicief tinha em mira especialmente os mosteiros.

Tais ideias encontravam eco na corte e entre os nobres. A Inglaterra estava debilitada por causa de seus insucessos na guerra dos Cem Anos contra a França; por isto era tentada a apoderar-se dos bens da Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou dezoito teses de Wiclef; todavia a hierarquia inglesa receava proceder contra o herege por causa do seu prestígio na Inglaterra.

Depois da irrupção do Grande Cisma do Ocidente (setembro de 1378), Wiclef atacou o Papado, afirmando que a Igreja não subsiste com a hierarquia, mas é uma comunidade invisível de predestinados: o verdadeiro Papa é Cristo e cada crente é um verdadeiro presbítero diante de Deus; o Papado seria mesmo uma instituição do Anticristo. A S.Escritura seria a única norma de fé; Wiclef mandou traduzir o texto da Vulgata latina para o Inglês, merecendo por isto ser chamado “o Doutor Evangélico”. Rejeitava a real presença de Cristo na Eucaristia; o cristão só receberia espiritualmente o corpo e o sangue de Cristo; a confissão auricular seria uma instituição tardia. Mandava sacerdotes pobres e leigos dois a dois a pregar a “Lei de Deus”; os fiéis católicos chamavam esses pregadores lolardos (de lollium, joio), denominar,ão esta que provinha dos Países-Baixos, onde designava sectários e hereges inflamados.

As ideias de Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em 1381 moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef foi responsabilizado por essa revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um Sínodo de Londres em 1382 condenou sua doutrina. Wiclef retirou-se então para a sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando escritos polêmicos em latim e em inglês. O Wiclefismo continuou a se propagar, mesmo perseguido, criando o ambiente receptivo às idéias do século XVI.

João Hus

A messe do wiclefismo, que não pôde amadurecer na Inglaterra, amadureceu melhor no continente. Ana, irmã do rei Venceslau da Boêmia, estava casada com o rei Ricardo II da Inglaterra. Isto permitia que no século XIV muitos boêmios fossem estudar em Oxford, e muitos ingleses em Praga. Assim vários wiclefistas perseguidos na Inglaterra encontravam refúgio em Praga. O cidadão Jerônimo, da Boêmia, que estudava em Paris e Oxford, levou para Praga as principais obras de Wiclef; ele e seu amigo João Hus tomaram a peito propagar o wiclefismo. Também o solo da Boêmia estava preparado para a fermentação de tais idéias, pois, além de vestígios de antigas seitas (cátaros, valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram notáveis.

João Hus era Sacerdote, professor de Filosofia na Universidade de Praga, e exercia as funções de diretor espiritual na corte. Era homem de costumes irrepreensíveis, bom orador e fanático tanto por motivos religiosos como por razões nacionalistas (os boêmios começavam a se erguer contra o domínio político e cultural dos alemães); certamente as tendências nacionalistas da população muito favoreceram as idéias de Hus.

O wiclefismo encontrou, a princípio, resistência.O arcebispo Sbinko de Praga mandou queimar escritos de Wiclef, excomungou Hus e seus partidários em 1410 e lançou o interdito sobre Praga em 1411. Tais medidas, porém, tiveram pouco êxito.O pregador retirou-se então para o castelo de um nobre seu amigo, para onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O hussismo em breve alcançou influxo predominante na Boêmia.

A apostasia de quase um povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental. O Imperador Segis mundo da Alemanha, irmão do rei Venceslau da Boêmia, convidou Hus a comparecer no Concílio de Constança; o herege, de fato, lá apareceu em novembro de 1414, esperando ganhar os conciliares para a sua doutrina; ver capítulo 28. Hus, porém, só encontrou adversidade e rejeição; foi encarcerado e, como não quisesse renunciar às suas teses, foi condenado como herege em 1415. A mesma sorte sofreu o seu companheiro Jerônimo de Praga onze meses mais tarde.

A história do hussismo

É história assaz complicada.

A execução de Hus foi recebida na Boêmia como uma ofensa à nação. A reação hussista-nacionalista foi violenta os sacerdotes não hussistas foram, em grande número,expulsos. A rainha Sofia e damas nobres tomaram aberto partido por Hus como herói e mártir nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e da Morávia mandou um protesto para Constança afirmando que Hus fora virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma “heresia boêmia” eram invenção do inferno. Ao mesmo tempo formou-se uma Liga para a defesa da liberdade de pregação, para a proteção contra a autoridade episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a praxe do “cálice dos leigos” (comunhão sob as duas espécies)56 como símbolo da facção hussista. Esta dominou a Boêmia quase totalmente durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau restabeleceu os sacerdotes expulsos – o que deu lugar a revolução violenta; foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do coração em consequência deste golpe. Ao seu irmão e sucessor Segis mundo os hussistas negaram obediência, como perjuro e assassino de Hus. Assim começaram as guerras hussistas (1420-31). O Papa Martinho V convocou uma cruzada contra tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas de Segis mundo foram derrotados por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam os hussitas  extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). Os hussistas mitigados foram chamados utraquistas (de sub utraque specie, sob ambas asespécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e Sigismundo. Os Taboristas, ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar os sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia, abraçaram idéias apocalíptico-milenaristas 57; proclamavam a abolição de todas as diferenças de classes; na região que eles dominavam, dava-se total transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de igrejas e de mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os Taboristas devastaram a Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o mar do Norte, sob a direção de André Procópio o Velho, sacerdote católico apóstata.

Já que não era possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas procuraram a via das conversações. O Concílio de Basileia convidou os hussistas a comparecer – o que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por quinze delegados de ambos os partidos (taboristas e utraquistas), formularam suas reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos leigos, proibição de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos abusos contra a “lei de Deus”. As conversações no Concílio foram úteis, mas terminaram em Praga com um acordo dito Compactata Pragensia (30/11/1433): os quatro postulados hussistas foram aceitos com certas restrições:

1) o cálice dos leigos, desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que Cristo está todo presente sob ambas as espécies;

2)  a pregação livre desde que realizada por sacerdotes aprovados;

3) a punição dos pecados mortais, desde que públicos, por iniciativa das autoridades competentes, e não de pessoas particulares;

4)  a administração idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.

Os taboristas recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os católicos em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e reconheceu Sigismundo como rei.

O nome “hussista” foi desaparecendo aos poucos. Aqueles que faziam uso do cálice dos leigos, foram chamados simplesmente “utraquistas” ou “calixtinos”, enquanto os outros católicos da Boêmia eram ditos “subunistas” ou “unistas”. A situação da igreja ainda ficou agitada por muito tempo na Boêmia , até os nossos dias há vestígios de hussismo ou no nacionalismo tcheco.

Alguns utraquistas não se deram por satisfeitos com o acordo oficial e procuraram novas formas de religião; eram camponeses que apregoavam uma vida de trabalho manual agrícola, retirada do convívio social e político e uma Igreja despojada e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido da “Unidade dos lrmãos” (Unitas Fratrum) ou dos Irmãos Boêmios; muitos deles incorporaram-se finalmente aos luteranos no século XVI.

Somente em 1629 o edito de “Restituição” do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as duas espécies entre os católicos da Boêmia.

Reflexão final: como se vê da exposição feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias relacionadas não só com a teologia, mas também com os problemas sociais dos Séculos XIV/XV. – As guerras devastaram a Europa nestes dois séculos: a de Cem Anos (1337-1453), entre a França e a Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre as Casas da Borgonha e de Orleães, na França; os Países Baixos eram sacudidos por guerras civis entre nobres e democratas; na Alemanha, havia guerras entre príncipes, cavaleiros e cidades. A medida que os príncipes iam centralizando o seu poder, a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes eram os que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e angustiados ainda queriam viver à custa destes.

Assim os tempos se tornaram cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos fortes que obtinham vitórias, tomava proporções extraordinárias; em consequência, as insurreições dos camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da sociedade; quem obtivesse vitória, crivava os olhos e incendiava as casas dos adversários vencidos. O correr dos acontecimentos havia de levar a revolução religiosa e social do século XVI, associada principalmente ao nome de Martinho Lutero, revolução à qual se oporia a obra de renovação católica associada ao Concílio de Trento e a floração de Santos que encheram o mesmo século XVI.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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