História da Igreja: Papado e Império de 891 a 1003

Observações prévias

O Imperador Carlos Magno (800-814) embora cesaropapista, conseguiu realizar o que se chama “o Renascimento Carolíngio” ou um surto de cultura profana e religiosa importante naqueles tempos de baixo nível cultural. O monarca cercou-se de homens sábios, que com ele colaboraram para a expansão da fé, dos bons costumes e da instrução nos territórios francos.

Todavia foi efêmera a prosperidade carolíngea. Logo com o sucessor de Carlos, Luís o Piedoso ou o Bonachão (814-40), começou a decadência do Império, que repercutiu na própria vida da Igreja. Quanto mais o Império perdia sua influência no Ocidente, tanto mais o Papa se via desprovido do apoio necessário para fazer frente aos senhores locais e nobres da Itália; estes se mostravam cada vez mais ambiciosos e perturbavam a vida da Igreja, pois se imiscuíam nas eleições dos Papas e no governo da Igreja. Além disto, as igrejas e os bens eclesiásticos iam-se tornando bens de família; os leigos eram nomeados bispos e abades, que, sem vocação sacerdotal ou monástica, administravam núcleos importantes da Igreja.

Os decênios de decadência cultural e moral do século IX levaram ao triste estado de coisas que faz do século X o século “obscuro” ou o século “de ferro” (Srido) da Igreja; este foi um dos períodos mais dolorosos da história do Cristianismo por causa da interferência de famílias nobres e cobiçosas na vida do Papado.

A situação de declínio era agravada pelas invasões de estrangeiros, às quais a Itália, por sua posição geográfica (exposta aos mares), estava sujeita; os Normandos, os Sarracenos e os Húngaros pilhavam cidades e campos da região – o que dava lugar a furtos, morticínios, vinganças, adultérios…

Relataremos alguns dos traços mais notáveis de época tão denegrida da história da Igreja. E de notar, porém, o seguinte: a principal fonte de conhecimentos que temos da época, é a chamada Antapódosis (= Retribuição ou Vingança), da autoria do bispo Liutprando de Cremona; como o próprio nome o diz, esta obra é passional ou tendenciosa; a quanto parece, o seu autor era figura aduladora e temperamental que exagerou os males do Papado para mais exaltar a ação dos Imperadores. – Além do mais, não se pode ignorar que, simultaneamente com a decadência moral, houve homens e mulheres de elevado valor cristão, santos que dignificaram a sua época: assim S. Ulrico de Augsburgo (? 973), Bruno, arcebispo de Colônia (? 965), Conrado e Gebardo de Constança (? 975 e 995) Volfgango de Ratisbona (? 994), Adalberto de Praga (? 997), Viligis de Mogúncia, Chanceler dos Imperadores Oto I e Oto II (? 1011), Bernardo (? 1022) e Godehardo de Hildesheim (? 1038), Burcardo de Worms (? 1025). Seja mencionada também a fundação do mosteiro de Cluny em 911 (logo no início do século obscuro), casa-mãe de muitas outras Abadias e foco de renovação progressiva. Aliás, em todas as fases da história da Igreja houve, ao lado de pecadores, santos que testemunharam a presença e a ação de Cristo em seu Corpo Místico; foi geralmente dos claustros, da vida unida a Deus pela oração e a ascese, que brotou a seiva nova para revitalizar os ramos da S. Igreja.

Examinaremos agora os principais quadros da época focalizada.

Fim do século IX; o Papa Formoso

No fim do século IX governaram a Igreja os Papas João VIII (872-882), Marino I (882-4), Adriano III (884-5), Estevão V (885-91). Sucedeu-lhes uma figura que suscitou controvérsias, a saber: o Papa Formoso (891-6). Este era, já antes da eleição de João VIII, bispo suburbicário do Porto. O Papa Nicolau I mandou-o como missionário à Bulgária, mas não o quis nomear Patriarca dos búlgaros, como desejavam estes. Por isto, voltou para a sua diocese do Porto. Todavia João VIII o considerava seu inimigo pessoal e o depôs, principalmente por motivos políticos.

O sucessor de João VIII – Marino I – reabilitou Formoso e o restituiu ao bispado do Porto.

Por fim, em 891 Formoso conseguiu subir à cátedra papal. Contudo a pressão dos nobres de Espoleto (Itália) contra o Papa era tal que este resolveu chamar Arnulfo, rei da Alemanha, contra os “maus cristãos”. Arnulfo desceu à Itália, tomou Roma e foi por Formoso coroado Imperador em 896; mas, acometido de paralisia, não pôde impor o domínio germânico na Itália. Em conseqüência, Formoso viu-se novamente desprotegido frente aos adversários, que não lhe perdoavam ter coroado o “bárbaro nórdico”. O Papa morreu em 896.

Os espoletanos conseguiram neste mesmo ano eleger Papa um dos seus partidários: Estevão VI, e aproveitaram-se dele para se vingar da política germânica de Formoso. Estêvão VI em 896 reuniu um Sínodo em Roma para julgar o falecido Pontífice: desenterraram o seu cadáver, sepultado havia nove meses, e o acusaram como réu da ambição de ocupar a Sé de Roma quando era bispo do Porto. Formoso foi condenado; o seu pontificado foi declarado ilegal, nulas as ordenações que conferiu; o seu cadáver foi despojado das vestes sagradas; cortaram-lhe dois dedos; depois, puseram-no num túmulo de peregrinos e, por último, atiraram-no ao Tibre.

Estevão VI, porém, não teve melhor sorte do que o seu antecessor: em 897 o povo revoltou-se contra ele, encarcerou-o e, por fim, estrangulou-o!

Os Papas que se lhe seguiram (Teodoro II, 897 e João, IX, 897-900) procuraram apagar as infâmias cometidas contra Formoso; foram reabilitados os clérigos que ele tinha ordenado; queimaram-se as atas do Sínodo de 896, dito “do cadáver”. Novo Sínodo romano de 898 decretou que a eleição dos Papas, para o futuro, seria realizada pelos bispos subsidiários e pelo clero de Roma; o eleito deveria ser aprovado pelo Senado e pelo povo romanos e sagrado em presença de legados imperiais (isto tudo, a fim de se evitar a ingerência de interesses políticos estranhos).

Chegamos assim ao limiar do século X.

De 904 a 1003

Os nobres da Toscana e de Espoleto não cessavam de cobiçar a cátedra de Pedro. Por isto em 904 obtiveram a eleição do Papa Sérgio III (? 911), que lhes era aparentado. Passaram então a exercer influxo extraordinário na vida dos Papas os membros de uma família romana: Teofilacto, Dux, Magister Militum, Consul et Senator Romanorum; sua esposa Teodora Senior, e suas duas filhas Marócia e Teodora Júnior, principalmente estas três mulheres, muito ambiciosas e imodestas, exerceram, durante decênios, ação predominante sobre o Papado. – O Papa Sérgio III mostrou-se avesso à memória do Papa Formoso, declarando inválidas as suas ordenações; isto originou uma polêmica escrita contra a facção dos formosianos.

Após Sérgio III, governou João X (914-28), que a “senadora” Teodora Júnior conseguiu elevar ao Papado. Tendo procurado reagir contra a demasiada ingerência dos nobres na Igreja, foi encarcerado por ordem de Marócia e, dentro de poucos meses, morreu sufocado na prisão.

Em 931 Marócia fez subir à cátedra de Pedro seu próprio filho, com o nome de João XI (931-5); segundo Liutprando, era filho de Marócia e Sérgio III (o que pode ser posto em dúvida, pois Sérgio parece ter sido homem honesto e íntegro). Em 932, Alberico II, um filho de Marócia, irritado pela política ambiciosa de sua mãe, excitou contra ela a nobreza romana; encarcerou Marócia e pôs sob vigilância o Papa João XI (filho de Marócia e irmão de Alberico II por parte de mãe); passou então a reger o Estado Pontifício até 954 (por 22 anos!), ficando o Papa apenas com o regime espiritual. Alberico II era piedoso (apesar de ambicioso); criou cinco Papas, todos dignos e piedosos: Leão VII (936-9), Estevão VIII (939-42), Marino II (942-6), Agapito II (946-55). No seu leito de morte, em 954, Alberico fez os nobres romanos prometerem que, após a morte de Agapito II, elevariam ao Pontificado o filho Otaviano, de Alberico. A promessa foi cumprida: Otaviano assumiu o cargo com o nome de João XII (primeiro caso de mudança de nome), que governou de 955 a 964. Tinha 17 anos de idade ao assumir; era personalidade incapaz, que encarava a sua nova posição como a de um príncipe mundano (acumulava em suas mãos o governo espiritual e a administração temporal da Igreja).

Sob o pontificado de João XII deu-se um acontecimento de grande relevo: em 962 Oto I, rei da Germânia, tendo vencido adversários e rivais, foi coroado Imperador do Sacro Império Romano da Nação Germânica. Este ato restaurava em favor de Oto os privilégios outrora concedidos a Carlos Magno: ao Imperador tocava a suprema instância judiciária assim como a superintendência sobre os funcionários do Estado Pontifício; o Papa, antes de ser sagrado, deveria jurar-lhe fidelidade. Oto I foi louvado como sendo “o 3º Constantino”, embora tenha sido menos brilhante do que Carlos Magno.

Apenas, porém, Oto deixou a Itália, João XII começou a tramar contra o Imperador. Oto então voltou a Roma; reuniu um Sínodo em 963, que depôs o Papa por acusações gravíssimas, provavelmente exageradas (homicídio, sacrilégio, perjúrio). No seu lugar foi eleito Leão VIII, um leigo, que num só dia recebeu todas as Ordens; era um antipapa’ pois o Papa legítimo nunca pode ser deposto por um Sínodo. Depois que Oto partiu, João XII, que fugira, voltou a Roma e foi reconhecido como Papa legítimo; Leão VIII então fugiu e foi excomungado por um Sínodo Romano de 964.

Morto João XI I, os romanos elegeram Bento V (964), Pontífice douto e digno. Oto, porém, compareceu novamente em Roma; restabeleceu Leão VI II. que ele criara, e exilou Bento V, que morreu em 968.

Em 965 sucedeu a Leão VIII João XIII, provavelmente filho de Teodora Júnior, homem digno, que foi encarcerado por membros da aristocracia romana. João conseguiu fugir e, com o auxílio de sua família, recuperar a cátedra papal. Por essa ocasião, Oto foi mais uma vez à Itália, e lá ficou de 966 a 972, a fim de estabelecer a ordem. Isto proporcionou a João XIII um pontificado tranqüilo.

Oto faleceu em 973. Recomeçaram então as perturbações e rivalidades em Roma. À frente dos nobres passou a família dos Crescentius, sob o novo Papa Bento VI (973-4). O Dux Crescentius mandou encarcerar o Papa, que morreu estrangulado. Foi eleito em seu lugar o Cardeal Bonifácio Franco com o nome de Bonifácio VII (974); após seis semanas, porém, foi deposto por um legado do Imperador Oto III e fugiu para Constantinopla. Crescêncio morreu como monge num mosteiro de Roma!

Sob a tutela de Oto II, subiu ao Pontificado Bento VII em 974, que governou tranquilamente até a morte em 983. Neste ano assumiu o governo da Igreja João XIV; Bonifácio VII voltou de Constantinopla; apoderou-se da cátedra papal, e deixou seu rival João XIV morrer de fome (984). Um ano depois, porém, faleceu repentinamente e seu cadáver foi transpassado por lanças e arrastado pela cidade de Roma sob os ultrajes do povo revoltado.

Em 985 começou a governar o Papa João XV (985-96), sob cujo pontificado Crescêncio Nomentano (filho do anterior Crescêncio) assumiu o governo temporal de Roma como Senator, Dux et Consul Romanorum. Este exerceu tal tirania que o Papa resolveu chamar em seu auxílio o jovem Imperador Oto III (que tinha 16 anos de idade). Antes que chegasse a Roma, recebeu a notícia da morte de João XV (996). Oto III colocou então sobre a cátedra de Pedro o primeiro Papa alemão: o capelão real Bruno de Caríntia, de 24 anos de idade, que tomou o nome de Gregório V (996-99); era homem zeloso, favorável à reforma dos costumes, estranho à política dos pobres de Roma e da Itália. Logo, porém, que o lmperador se retirou de Roma, Crescêncio, que fora anistiado a pedido do Papa, revoltou-se contra Gregório, que teve de fugir; o mesmo Crescêncio instituiu o antipapa João XVI, de origem grega. Oto, porém, recolocou Gregório V na cátedra por força das armas (998) e pronunciou terrível juízo sobre João XVI, que foi cegado, mutilado e encarcerado num mosteiro, enquanto Crescêncio e outros revoltosos foram decapitados em Roma, no Castel Sant’Angelo.

A Gregório V Oto fez suceder o primeiro Papa francês: Silvestre II (999-1003), versado em Filosofia, Matemática e Astronomia. O Papa e o Imperador se entendiam otimamente. Oto era profundamente religioso e homem capaz; hesitava entre fuga do mundo e grandiosos pianos imperiais; queria restaurar o Império Romano sobre bases totalmente cristãs. Muito trabalhou, de acordo com o Papa, pela lgreja na Hungria e na Polônia; mas poucos resultados obteve na política porque os romanos em 1001 o obrigaram a fugir de Roma com Silvestre; este morreu em 1003, após a morte do Imperador com 22 anos em 1002.

A aproximação do ano 1000 suscitou pavores pela apregoada vinda do Anticristo a do fim do mundo. O historiador César Barônio (?1607), porém, exagerou as cores do quadro então vigentes, como se o medo tivesse paralisado a vida pública. Na verdade, os cristãos, impelidos pela expectativa do fim do mundo, parecem ter-se entregue com mais afinco às tarefas de reforma religiosa, de construção de igrejas e de evangelização; os dois Papas Gregório V (996-9) e Silvestre II (999-1003) foram pastores zelosos, mas infelizmente de pouca duração.

Assim chegamos ao fim do século X. A história nos mostra que Deus quis conduzir a sua Igreja através de vicissitudes humanas. A consideração dos fatos evidencia que não são os homens que sustentam a Igreja, mas é o próprio Cristo, que nela vive indefectivelmente. A Igreja havia de superar tal situação no século seguinte a partir de própria vitalidade, guardada intata nos seus mosteiros e santuários.

A história do Papado e do Império continua no capítulo 22.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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