História da Igreja: O Cisma Grego (Séc. IX e XI)

Cisma - Igreja - IBA MENDES

A ruptura entre bizantinos e ocidentais, que tomou sua forma definitiva no século XI, não é senão o último episódio de uma longa história ou da história das diferenças de duas mentalidades: a grega e a latina. Sobre a união na fé e no amor de Cristo, que estreitavam orientais e ocidentais, prevaleceu, infelizmente, a desunião humana natural.

Comecemos, pois, por examinar as raízes do cisma.

As diferenças entre bizantinos e latinos

1. Há uma diversidade fundamental, que se manifestava de maneiras diversas:

a) O gênio. Os gregos eram intelectuais, cultores da filosofia, das letras e das artes. A elaboração das grandes verdades da fé a respeito da SS. Trindade e de Jesus Cristo deu-se no Oriente (até o Concílio de Constantinopla III, 680/1). Por isto tendiam a desprezar os romanos e, mais ainda, os bárbaros invasores, como rudes e incultos. – Os latinos eram mais amigos da prática, da disciplina, do Direito; por isto tinham os gregos na conta de frívolos, inconstantes e tagarelas (cf. At 17,21); dizia-se no Ocidente: “Graeca fides, nulla fides”, isto é, “palavra de grego, palavra nula”. Essa diversa (índole suscitou, a partir do século V, um antagonismo crescente entre orientais e ocidentais.

b) A língua. Os primeiros documentos da Roma cristã eram redigidos em grego. Depois do século IV, porém, esta língua desaparece do Ocidente, dando lugar ao latim (= dialeto do Lácio ou da região de Roma). O latim era desprezado e desconhecido no Oriente, especialmente após o Imperador Justiniano (? 565). É de notar, por exemplo, que o arquidiácono latino Gregório (depois Papa), certamente homem de valor intelectual passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado papal, sem aprender o grego; julgava que isto não valia a pena (fim do século VI). – Ora a ignorância mútua de línguas muito contribuiu para que as comunicações entre Oriente e Ocidente se tornassem mais raras e sujeitas a mal-entendidos; era preciso recorrer a intérpretes, que nem sempre eram fiéis (tenham-se em vista as atas do Concílio Niceno II referentes às imagens).

c) Liturgia e disciplina. Havia tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante, por exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de jejum (os latinos jejuavam no sábado; os gregos, não), à matéria da Eucaristia (pão sem fermento ou ázimo no Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao celibato do clero, ao uso da barba (muito caro aos orientais)… Essas tradições, por não afetarem as verdades da fé, eram perfeitamente aceitáveis; haveriam, porém de tornar-se motivo de debates em tempos de controvérsia.

2. Ao lado da diversidade fundamental, levemos em consideração a mentalidade que se foi formando em Bizâncio ou o “bizantinismo”.

Em 330 Constantino transferiu a capital de Roma para Bizâncio, que ele quis chamar “a nova Roma”. Esta fora até então uma localidade insignificante, que muito sofrera por parte dos Imperadores Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também carecia de significado; a sua comunidade cristã não fora fundada por algum dos Apóstolos (como as de Jerusalém, Antióquia, Alexandria, Roma…); o primeiro bispo que se lhe conhece, Metrófanes, é do início do século IV (315-325) e sufragâneo31 do metropolita de Heracléia.

Compreende-se então que, o prestígio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os bizantinos o quisessem obter por suas reivindicações. De modo geral, ia-se tornando difícil aos bizantinos reconhecer a autoridade religiosa de Roma, já que todo o esplendor da corte imperial se havia transferido para Constantinopla.

Acresce que os Imperadores bizantinos, herdeiros do conceito pagão de Pontifex Maximus (Pontífice Máximo no plano religioso), se ingeriam demasiadamente em questões eclesiásticas, procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle. Os monarcas, nas controvérsias teológicas, muitas vezes favoreciam as doutrinas heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que difundiam a reta fé. Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependentes do Imperador, procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam rivalizar com o Patriarca de Roma, sucessor de Pedro, aderindo à heresia e provocando cismas: dos 58 bispos de Constantinopla desde Metrófanes até Fócio (858), um dos vanguardeiros da ruptura, 21 foram partidários da heresia; do Concílio de Nicéia I (325) até a ascensão de Fócio (858), a sede de Bizâncio passou mais de 200 anos em ruptura com Roma.

Registraram-se mesmo atos de violência cometidos por imperadores contra alguns Papas: Justino I mandou buscar à força o Papa Vigílio em Roma e quis obrigá-lo a subscrever normas religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante II procedeu de forma análoga contra o Papa Martinho I, que em Roma (649) se opusera à heresia monotelita, favorecida pelo Imperador; Justiniano II mandou prender em Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações promulgadas pelo Concílio Trulano II (692); Leão III, iconoclasta, em 731 subtraiu a Roma a jurisdição sobre a Ilíria e sobre parte do “Patrimônio de S. Pedro” (Itália meridional).

3. O distanciamento entre orientais e ocidentais ainda foi acentuado pela criação do “Sacro Império Romano da Nação dos Francos”, cujo primeiro Imperador Carlos Magno recebeu a coroa, em 800, das mãos do Papa Leão III. – O descaso ou a hostilidade dos bizantinos associados à opressão dos lombardos no Norte da Itália, dera motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar simpático, para o povo recém-convertido dos francos, pedindo-lhes o auxílio necessário para instaurar nova ordem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a Carlos Magno visava a prestigiar os francos nessa sua missão. Como se compreende, em Bizâncio tal ato foi mal acolhido, os orientais julgavam que só podia haver um Império cristão, como só pode haver um Deus; o Imperador reinava em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja; daí grande surpresa e escândalo quando souberam que o bispo de Roma sagrara em 800 um “bárbaro” para governar um segundo Império cristão!

Apesar de tudo, deve-se dizer que até o século IX o primado de Roma ainda era satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou em termos novos e funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio (? 897) e Miguel Cerulário (?1059).

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A ruptura sob Fócio

Em 858 foi ilegitimamente deposto por adversários políticos o Patriarca Inácio de Constantinopla. Em seu lugar, subiu à cátedra episcopal um comandante da guarda imperial, Fócio, que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco dias todas as ordens sacras e foi empossado, sem que a Sé estivesse vaga (pois Inácio não renunciara).

Não conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído das funções pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha contra os cristãos ocidentais. A situação se tornou mais tensa pelo fato de que O Papa Nicolau I enviou missionários latinos à Bulgária, cujo rei Bóris, recém-batizado, hesitava entre a obediência a Roma e a obediência a Constantinopla. A entrada dos latinos em território tão próximo das fronteiras gregas irritou os bizantinos; a cólera chegou ao auge quando estes souberam que legados de Roma estavam a caminho de Constantinopla, onde deveriam informar o Imperador de que a Bulgária se tornara decididamente latina. Presos antes de penetrarem em território imperial, os legados do Papa foram expulsos (866); Fócio enviou uma carta aos bispos do Oriente condenando a conduta dos “ocidentais bárbaros”: além da evangelização da Bulgária, censurava-os por praticarem o jejum no sábado, celebrarem a Eucaristia com pão ázimo e,. principalmente, por terem acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé. Como sabemos, o credo niceno-constantinopolitano professava: “Creio no Espírito Santo, que procede do Pai… Todavia a partir de fins do século VI, a Igreja na Espanha propagou a fórmula: …que procede do Pai e do Filho (Filioque)”. Na França este acréscimo foi sendo aceito; Carlos Magno patrocinou-o. Os monges francos o cantavam no Monte das Oliveiras em Jerusalém, ainda que por isto fossem duramente atacados pelos gregos e acusados de heresia (808). 0 Papa Leão III (795-816), em atenção aos gregos, desaprovou o uso dos latinos e aconselhou os francos a deixar de o fazer; mas não foi atendido. – Ora Fócio levantou com veemência contra os ocidentais a acusação de terem alterado o Credo13.

Por conseguinte, um Concílio reunido em Constantinopla em 867 depôs Nicolau I, que morreu naquele mesmo ano, dez dias depois que o Patriarca Fócio fora destituído por uma revolução palaciana. Inácio foi recolocado na sé patriarcal. Em 869/70 celebrou-se o oitavo Concílio Ecumênico em Constantinopla, sob a direção de três legados papais; foi excomungado Fócio e a comunhão com Roma foi restabelecida. Mas de novo em 879 Fócio assumiu a sé de Constantinopla; reuniu um sínodo nesta cidade em 879/80, que rejeitou o de 869/70 e hostilizou os latinos (os gregos consideram este o oitavo Concílio Ecumênico). Fócio morreu num mosteiro em 897 ou 898. Os Patriarcas seguintes restauraram e confirmaram a união com Roma, a qual, porém, estava gravemente abalada após tantas discórdias.

A cisão definitiva em 1054

O século X foi marcado pela criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia dos Otos (962) – o que muito irritou os bizantinos, que viam nesse fato a renovação do gesto de 800 (coroação de Carlos Magno Imperador). As relações com Roma eram frias; bastaria um pequeno incidente para reavivar as acusações feitas no passado. Isto, de fato, aconteceu em 1014: o Papa Bento VIII introduziu o Filioque no canto da Igreja Romana a pedido do Imperador Henrique II. O Patriarca bizantino Sérgio II reagiu propagando os escritos de Fócio sobre o assunto. Em 1043 tornou-se Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário, homem ambicioso, que deu livre curso à paixão antiromana; em 1053 mandou fechar as igrejas dos latinos em Constantinopla e confiscou os mosteiros destes; acusava-os principalmente de usar pão ázimo na Eucaristia; um dos funcionários imperiais parece ter calcado aos pés as hóstias dos “azimitas” como não consagradas. Estes fatos causaram grande agitação no Ocidente; o Cardeal Humberto da Silva Candida, erudito e talentoso, escreveu um “Diálogo”, em que refutava as objeções dos gregos e os acusava de Macedonismo (por não aceitarem o Filioque).

Todavia o Imperador bizantino Constantino IX desejava boas relações com o Papa Leão IX para que este o ajudasse a combater os normandos, que devastavam as possessões bizantinas na Itália Meridional; em resposta a uma carta do Imperador, Leão IX enviou uma legação a Constantinopla em 1054, composta pelo Cardeal Humberto da Silva Candida e por dois outros prelados. O Imperador mandou queimar um libelo acusatório anti-romano para favorecer o diálogo. Mas Miguel Cerulário se mostrou intransigente; chegou a proibir os Ocidentais de celebrar Missa em Constantinopla. A vista disto, os legados romanos reagiram com o recurso extremo: aos 16/07/1054, em presença do clero e do povo depositaram sobre o altar-mor da basílica de Santa Sofia em Constantinopla uma Bula33 de excomunhão contra Cerulário e seus seguidores; despediram-se do Imperador e tomaram o caminho de volta para Roma. – Os legados papais julgavam que, diante deste gesto, o Patriarca retrocederia. Em vão, porém. Miguel Cerulário excitou tumulto em Constantinopla contra o Imperador acusado de cumplicidade com os romanos; Constantino IX reagiu violentamente. Num Sínodo o Patriarca pronunciou o anátema sobre o Papa e seus legados e promulgou um manifesto que convidava os demais bispos do Oriente a se Ihe associarem. Na verdade, o proceder de Cerulário foi em breve imitado pelos outros bispos orientais e pelos povos evangelizados por Bizâncio (serbos, búlgaros, rumenos, russos), acarretando a grande divisão que até hoje perdura apesar das tentativas de reatamento que se deram nos séculos XIII e XV.

Quanto a Cerulário, levou sua paixão ao ponto de reivindicar para si as, insígnias imperiais; por isto em 1057 foi exilado pelo Imperador Isaac I e morreu no desterro em 1059.

Em nossos dias verifica-se que a cisão não se fundamenta apenas em motivos teológicos, mas também em razões de rivalidade cultural e política acobertadas por pretextos religiosos. A profissão do Filioque decorre de um estudo mais preciso do dogma trinitário, plenamente consentâneo com as verdades da fé; não é necessário que os orientais o introduzam no seu canto litúrgico. A excomunhão mútua de Roma a Constantinopla foi cancelada após o Concílio do Vaticano II e o caminho está aberto para bom entendimento entre orientais a latinos. Aqueles têm o título de ortodoxos, porque ficaram fiéis à reta doutrina durante as controvérsias cristológicas dos séculos V-VII.

A Santa Igreja, representada pelo sucessor de Pedro em Roma e pelos fiéis que estio em comunhão com ele, continua a ser, mesmo após a separação de Bizâncio, a depositaria junto à qual os homens encontram incontaminados os meios necessários à sua santificação.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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