História da Igreja: Igreja e Império no séc. IV

5. Vimos que a era das perseguições à Igreja termina com a ascensão do Imperador Constantino (306-337). Examinamos agora a figura deste monarca e as marcas que deixou na história.

Constantino e a Paz de Milão

Constantino era filho de Constâncio Cloro, Imperador Romano responsável pelo Ocidente da Europa. Subiu ao trono na Gália em 306, ao passo que seu cunhado Licínio ficou com a parte oriental do Império.

1. Em 312 Constantino teve que enfrentar Maxêncio, que dominava Roma. A sua religiosidade não era a da mitologia fantasiosa dos antigos romanos, mas cultuava Apolo-Sol numa espécie de monoteísmo ainda vago. Antes da batalha contra Maxêncio, Constantino aproximou-se mais do Cristianismo. Diz o historiador Eusébio de Cesaréia, na sua Vida de Constantino escrita em 337, que, antes de entrar em guerra, Constantino e seu exército viram sobre o sol, numa tarde, o sinal de uma cruz luminosa acompanhada pelos dizeres Toutoi nika (com este sinal vencerás!). Na noite seguinte, Cristo terá aparecido a Constantino, ordenando-lhe que fizesse um estandarte (lábaro) com o monograma de Cristo (X atravessado por um P, isto é,  ou )3. A notícia desta visão é discutida pelos historiadores. O fato é que Constantino venceu o rival Maxêncio junto à Ponte Mílvia em Roma aos 28/10/312. Embora ainda não fosse cristão, Constantino reconhecia cada vez mais o valor do Cristianismo; por isto em fevereiro de 313 promulgou o Edito de Milão, que reconhecia a religião cristã como lícita e dotada de plena liberdade (não, porém, religião do Estado – o que só aconteceria em 380); em conseqüência, os templos e outros bens imóveis confiscados deveriam ser restituídos aos cristãos. Este gesto teve enorme importância, pois desfazia o vínculo até então existente entre o Estado Romano e a religião pagã.

Constantino governava apenas o Ocidente do Império. No Oriente seu cunhado Licínio assumiu atitude oposta em relação ao Cristianismo por causa da rivalidade política com Constantino; embora tenha aceito inicialmente o Edito de Milão, Licínio, a partir de 320, foi sufocando a vida dos cristãos; dificultou-lhes até a celebração do culto sagrado. Constantino, porém, venceu e destronou Licínio em 324, tornando-se único senhor do Império. Desde então o Imperador mais ainda favoreceu o convencido da superioridade da religião cristã. Em 324, o Imperador enviou um Manifesto aos súditos do Oriente, em que exprimia o desejo de que cada um  abandonasse “os templos do engano” e entrasse “na casa radiante da vida”; proibia, porém, que se molestasse quem quer que fosse por causa das suas crenças religiosas..

Belas igrejas puderam surgir em Roma (a de São Pedro foi construída por iniciativa do próprio Constantino), em Jerusalém, Belém…, igrejas que tomaram o nome de basílicas (basiliké em grego é o adjetivo de basileus, Imperador, e, significa imperial igreja). Os templos pagãos foram caindo em ruínas, especialmente os de Vênus, cujo culto era imoral; o matrimônio e a família receberam proteção legal de acordo com os princípios do Cristianismo; o domingo, que os pagãos chamavam “dia do sol”, mas que era o dia a Ressurreição de Jesus, foi declarado dia festivo oficial. Constantino se dizia publicamente adorador do Deus dos cristãos, embora só tenha recebido o Batismo no fim da vida (e não antes, como se poderia crer).

2. Muito importante, no reinado de Constantino, foi também a transferência da capital de Roma para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a cidade de Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em consequência, Roma foi mais e mais abandonada pelo poder imperial; tornou-se sempre mais importante pelo seu valor religioso (nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros). A transferência da capital para Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivessem cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria – o que infelizmente resultou num cisma em 1054.

Após longo e próspero reinado, Constantino faleceu em 337.

Os cristãos orientais veneraram-no, juntamente com sua mãe Helena, como Santo ou, melhor, como o 13º Apóstolo. Os ocidentais foram mais sóbrios, atribuindo-lhe o título de “Magno”, bem justificado, pois certamente Constantino realizou obra de imenso alcance para a história da humanidade. Há, porém, quem julgue que a proteção concedida por Constantino ao Cristianismo desvirtuou a Igreja, contaminando-a com crenças e práticas do paganismo. É o que passamos a considerar atentamente.

A época constantiniana

1. Quanto à pessoa de Constantino, pode-se dizer que passou por uma evolução religiosa notável. Vagamente monoteísta, quando começou a governar, reconheceu no Cristianismo um fator que lhe asseguraria êxito político; daí o apoio que em seus primeiros tempos de governo outorgou à Igreja. Aos poucos, porém, Constantino foi assimilando a própria mensagem do Evangelho, de modo que não pode ser tido como “hipócrita beato”. Em 315, por exemplo, declarava: “Dedico pleno respeito à regular e legítima Igreja Católica”, e vinte anos mais tarde: “Professo a mais santa das religiões… Ninguém pode negar que sou um fiel servidor de Deus”(ver Daniel-Rops, L’Eglise des Apôtres et des Martyrs. Paris 1948, p. 495).

Constantino acreditava ter recebido uma missão especial de Deus para harmonizar o Estado e a Igreja. Dizia ser o epískopos (vigilante) de fora; assim, por exemplo, falou a  Bispos reunidos num Concílio regional: “Vós sois epískopoi (= bispos) daqueles que estão dentro da Igreja; eu, porém, fui constituído por Deus epískopos (= vigilante) daqueles que estão fora da Igreja”6. Com tais palavras Constantino queria afirmar que se considerava encarregado das populações ainda não cristãs, às quais deveria levar o Evangelho; mas, através desse encargo, o Imperador se julgava habilitado a orientar até mesmo as controvérsias teológicas, nas quais interveio mais de uma vez.

Não há dúvida de que Constantino, simultaneamente, trazia o título de “Grande Pontíficie” da religião pagã, título que seus antecessores já tinham usado. Pode-se crer que ele assim procedia por motivos políticos e diplomáticos, mais do que por convicção íntima; como dito, tinha uma formação doutrinária eclética ou incompletamente cristã e sujeita a temores supersticiosos. Além disto, deve-se reconhecer que os instintos de violência persistiam na alma de Constantino apesar da sua adesão ao Cristianismo; foi, por exemplo, responsável pelos morticínios de seu filho Crispo e de sua esposa Fausta.

2. A ingerência de Constantino em assuntos internos da Igreja encontrou apoio em Bispos do Oriente. A liberdade subitamente concedida por Constantino à Igreja deslumbrou muitos cristãos e os tornou propensos não só a obedecer ao Imperador, mas, por vezes, também a pedir a intervenção do mesmo em questões religiosas (como, por exemplo, os arianos e os donatistas). Estes fatos se tornaram nocivos à Igreja Oriental nos séculos IV/VI, gerando o que se chamou “o Cesaropapismo”7; no Ocidente, o mesmo não ocorreu, pois as populações ocidentais não mereciam os cuidados dos Imperadores bizantinos; estes chegaram a desprezá-las, de modo que a Igreja latina pôde com liberdade seguir o seu curso de expansão e implantação.

Deve-se ainda observar que o envolvimento dos Imperadores na ordem interna da Igreja não deturpou a estrutura e a doutrina do Cristianismo. A mensagem do Evangelho foi, através de tais vicissitudes, vivida pelo povo de Deus de modo a poder transmitir-se íntegra às gerações subsequentes. O fato de terem cooperado entre si a Igreja e o Império não é um mal em si; não há por que rejeitar de antemão o bom entendimento entre aquela e este, a menos que se professe um maniqueísmo (dualismo) sócio-político. Se um Imperador se diz católico e nada prova que não é sincero, a Igreja tem o direito e o dever de contar com ele como filho seu, a quem compete proclamar o Evangelho.

Juliano o Apóstata (361-363)

Os descendentes de Constantino – Constantino II (337-40) e Constâncio (337-61) – continuaram a obra de cristianização do Império, recorrendo, não raras vezes, à força e intervindo na disputa ariana (ver capítulo 9).

Em 361 subiu ao trono Juliano, filho de um semi-irmão de Constantino Magno. Embora educado no Cristianismo, recebeu influência de mestres helenistas e, em particular, do neoplatônico Máximo de Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, era entronizado, declarou-se publicamente adepto da  religião helenista antiga – o que lhe valeu o cognome de “Apóstata” (desertor). Praticava fervorosamente o culto do Sol com os sacrifícios respectivos e a magia.

Juliano quis promover a restauração da cultura pagã transferindo da Igreja para instituições pagãs favores e direitos diversos. Os “galileus”(assim eram chamados os cristãos) deveriam deixar os cargos mais elevados do Império; proibiu aos mestres cristãos que explicassem aos seus alunos os clássicos autores gregos – o que obrigava os jovens a frequentar as escolas pagãs.

Juliano tentou criar uma Igreja de Estado neoplatônica , copiando de certo modo os moldes da Igreja Católica. Fundou, pois, asilos e orfanatos, albergues para os viandantes; promoveu instrução religiosa para o povo e disciplina penitencial para os sacerdotes pagãos.

No intuito de prejudicar a Igreja, favoreceu as heresias e as cisões entre os cristãos. Para tentar demonstrar que Cristo se havia enganado (cf. Mt 24,2), permitiu aos judeus que voltassem à Terra Santa para reconstruírem o Templo de Jerusalém; todavia terremotos e incêndios frustraram tal empreendimento. O próprio Imperador combateu com a pena o Cristianismo escrevendo três livros “Contra os Galileus”, dos quais só conhecemos fragmentos contidos na réplica aos mesmos escrita por S. Cirilo de Alexandria.

Juliano não quis desencadear perseguição sangrenta, como tinham feito seus antecessores. Não quis condenar à morte os cristãos, pois dizia: “Todos correriam ao martírio, como as abelhas voam para a colmeia”(ed. Migne, t. 50,573); tal era o anseio dos cristãos, de chegar à perfeição do martírio. Contudo o zelo fanático dos funcionários e do povo pagão levou a conflitos e derramamento de sangue. Os resultados obtidos pelo Imperador foram assaz escassos e efêmeros, em parte por causa da breve duração do seu reinado, em parte também por causa da falta de ambiente no Império para o retorno às antigas práticas pagãs.

Juliano morreu durante uma expedição contra os persas, tendo 32 anos de idade. Reconheceu o fracasso de sua tentativa, no leito de morte, onde terá exclamado: “Vencestes, Galileu!”- o que não é fato histórico, mas bem traduz o estado de ânimo do Imperador. Juliano era mais romântico do que dado ao concreto; por isto o seu plano de reforma não suscitou entusiasmo entre os pagãos. S. Atanásio o comparou a “uma pequena nuvem que se dissolveu rapidamente”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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