História da Igreja: Concílio Vaticano I

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O Concílio do Vaticano I foi o acontecimento de maior relevo na História da Igreja do século XIX.

Os preparativos

Mais de trezentos anos haviam decorridos após a última assembleia do Concílio de Trento (3-4/12/1563), quando Pio IX, em dezembro de 1864, comunicou secretamente aos cardeais a sua intenção de reunir novo Concílio Ecumênico: os tempos, ingratos como eram, o exigiam; era preciso deliberar sobre os remédios a oferecer-lhes – o que se faria por excelência num Concílio.

A Bula de convocação saiu aos 29/06/1868, convidando também os protestantes e os ortodoxos separados; estes, porém, não compareceram. a notícia de um próximo Concílio suscitou entusiasmo e também.apreensões; o público só sabia que seriam condenados erros contemporâneos, reafirmada a doutrina da Igreja, revistas a disciplina, a obra missionária, a formação dos seminaristas Mas na Cúria Romana reinava um certo mistério sobre os intensos preparativos do Concílio. A agitação pública aumentou quando em fevereiro de 1869 a revista jesuíta La Civilta Cattolica anunciou que o Concílio estava para definir a infalibilidade papal. o mundo não católico imbuído de liberalismo proclamava-se defensor da liberdade dos simples fiéis católicos, “subjugados pelo domínio obscuro e obscurantista dos eclesiásticos”. Na Alemanha, o historiador Pe. lnácio Dollinger (1799-1890) colocou-se a frente do movimento antiinfalibilista, com diversos escritos contrários a definição. O Presidente de Ministros da Baviera, Clodoveu de Hohenhole, procurou suscitar uma intervenção dos Governos europeus contra os pretensos perigos do Concílio. Os bispos alemães reunidos em Fulda (setembro de 1869) enviaram um escrito ao Papa em que declaravam não julgar oportuna a definição, embora não se opusessem a doutrina; temiam as reações dos Governos e cisões entre os próprios católicos. Em verdade, a definição desse dogma podia parecer ousadia numa época em que se respirava o liberalismo.

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Concílio Vaticano I – Parte 1

Concílio Vaticano I – Parte 2

Concílio Vaticano I – Parte 3

O decorrer do Concílio

O Concílio foi aberto aos 08/12/1869 na basílica de São Pedro, com a presença de 764 prelados. – No mesmo dia e na mesma hora, abria-se em Nápoles, sob a presidência de Ricciardi, um anticoncílio, do qual participaram 700 delegados maçônicos do mundo inteiro; a Indignação dispersou esse conciliábulo após poucos dias, tal era a indignação popular provocada por blasfêmias contra Cristo e sua Mãe Imaculada.

Quatro foram as sessões públicas do Concílio. A terceira, aos 24/04/1870, promulgou uma Constituição Dogmática Dei Filius, unanimemente aprovada: o cap. 1° afirma a existência de um Deus pessoal, livre, Criador de todas as coisas e independente do mundo criado (contra o materialismo e o panteísmo); o capítulo 2° ensina que certas verdades religiosas, como a existência de Deus, “podem ser conhecidas com certeza pela luz natural da razão humana” (contra o ateísmo e contra o fideísmo69 num século em que a fé cristã era escarnecida pelo racionalismo, o Concílio defendia a razão!); o texto desse 2º capítulo acrescenta que houve uma Revelação Divina, a qual chega até nós mediante tradições orais e Escrituras Sagradas. O capítulo 3° proclama que a fé é uma adesão livre do homem a Deus, que surge um dom da graça divina. O capítulo 4° define os setores próprios da razão e da fé e lembra que qualquer aparente desacordo entre razão e fé Sé pode vir de falsa compreensão das proposições da fé ou das conclusões da razão.

A quarta sessão do Concílio, aos 18/07/1870, definiu a infalibilidade do Papa e seu primado de jurisdição sobre a Igreja inteira. O texto proposto a discussão dos padres conciliares foi debatido de março a julho; a assembleia se dividiu em dois campos: a grande maioria julgava a definição oportuna e necessária (eram apoiados por uma corrente de leigos franceses, encabeçados por Louis Veuillot, que, repudiando os resquícios de galicanismo, eram ditos ultramontanos, pois ultrapassavam a cordilheira dos Alpes para aderir a Roma); os demais eram contrários à definição; destes, poucos se opunham ao dogma como tal; outros apenas negavam a oportunidade de o proclamar, por causa das reações que isto poderia provocar. Entre os adversários da definição, citam-se o bispo Strossmayer de Djakovar (Eslavônia), que, depois da definição, aceitou fielmente a sentença do Concílio; e a bispo Hetele, que aduzia o caso do Papa Honório contra a infalibilidade.

Este caso já foi abordado no capítulo 1°: sabe-se que Honório I (625-38), homem pouco especulativo, foi solicitado pelo Patriarca Sérgio de Constantinopla para aderir ao monenergismo e ao monotelitismo70; Honório parece ter dado razão a Sérgio em suas cartas, ordenando que não se falasse mais nem de uma nem de duas energias (atividades) em Cristo; o Concílio Ecumênico de Constantinopla III em 681 condenou, por isto, o Papa Honório I. Ora deve-se dizer que Honório não tencionou pronunciar definições dogmáticas no caso; além disto, depreende-se do contexto mesmo das duas famosas cartas que, quando Honório fala de uma Sé vontade em Cristo, ele se refere ao plano moral e não ao plano físico (a vontade humana e a vontade divina em Jesus queriam sempre a mesma coisa). O mal de Honório não foi ter aderido ao erro, mas foi permitir, por descuido, que este se propagasse.

Os argumentos da oposição foram sendo desfeitos. Quando viram a causa perdida, 56 dos oposicionistas se retiraram de Roma, tendo pedido e obtido a licença do Papa, aos 17/07/1870; deixaram, porém, uma carta ao Santo Padre, em que afirmavam seu propósito de conservar sempre fidelidade e submissão a Santa Sé. No dia seguinte, 18/07, 533 padres conciliares deram voto favorável à Constituição Pastor Aeternus; dois apenas se manifestaram contrários, mas logo se anexaram a sentença positiva. Pio IV promulgou logo a Constituição, o que provocou calorosa aclamação em toda a basílica de São Pedro.

A Constituição assim aprovada consta de quatro capítulos, que afirmam o fundamento bíblico e patrístico, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano, assim como a infalibilidade do magistério papal. A autoridade do Papa foi definida como sendo sumo e imediato poder de jurisdição sobre toda a Igreja, ficando assim condenados o galicanismo e o febronianismo (cap. 3°). O capítulo 4° define, como dogma revelado por Deus, que as definições do Romano Pontífice proferidas ex cathedra, isto é, na qualidade de Mestre da Igreja inteira, em questões de fé e de Moral, gozam de especial assistência do Espírito Santo; são, pois, infalíveis e irreformáveis por si mesmas, sem necessitar da aprovação da igreja.

Após esta memorável sessão, o Concílio ainda estava no início das suas atividades. Dos 51 projetos de decreto, Sé tinha estudado e publicado dois; das questões disciplinares, Sé quatro haviam sido discutidas, mas não definidas. Não obstante, o Concílio teve que ser interrompido abruptamente, pois no dia seguinte, 19/07, estourou a guerra franco-alemã, que obrigou muitos prelados a regressar a pátria. Sobreveio a ocupação de Roma aos 20/09/1870, que tornou praticamente impossível a continuação dos trabalhos. Em consequência, aos 20/10/1870 o Papa suspendeu o Concílio, que deveria voltar a reunir-se em época mais apropriada, mas na verdade nunca foi reaberto; o Concílio do Vaticano II (1962-65) havia de completar os seus trabalhos.

A importância do Concílio do Vaticano I é enorme para a Igreja. A definição da infalibilidade papal era a conclusão lógica de premissas contidas na própria Escritura (Mt 16,16-19; Lc 22,31; Jo 21, 15-17) e desenvolvidas através dos tempos; principalmente por ocasião dos litígios que afetavam a Igreja, foi emergindo na consciência dos cristãos a preeminência do magistério dos sucessores de Pedro. Precisamente as tendências galicanas e febronianas dos séculos XVII/XVIII serviram para aguçar essa tomada de consciência de modo mais vivo; humanamente falando, os católicos podiam ter optado pelo nacionalismo eclesial, mas o desenrolar dos embates e a ação do Espírito Santo levaram a Igreja como tal a reafirmar a antiga verdade do primado papal tanto em matéria de jurisdição quanto em matéria de doutrina. Numa época de descrença, a fé se afirmava de maneira corajosa. A própria Igreja aparecia como algo de transcendente ou como um Sacramento, que o homem recebe de Deus, a diferença de outras sociedades e instituições.

A centralização explicitada pelo Concílio do Vaticano I teve expressões sempre mais perceptíveis durante os pontificados seguintes. Era preciso que ocorresse o Concílio do Vaticano II (1962-65) para terminar a obra que o anterior deixara inacabada. O Vaticano I Sé pôde abordar a função do Romano Pontífice, dentro do exíguo espaço de sua duração; o Vaticano II abordou também o papel dos bispos e dos presbíteros na Igreja, pondo em relevo o conceito de colegialidade que, sem apagar o primado de Pedro, enriquece a estrutura da Igreja.

Claro está que a agitação pública que precedeu e acompanhou o Vaticano I, não se apaziguou logo. – Os bispos da minoria oposicionista submeteram-se pouco depois, inclusive Hefele de Rottenburg à 10/04/1871). Também a maior parte dos teólogos reconheceram a definição. – No cenário político, a definição do Vaticano I não foi tão focalizada e discutida como o teria sido se não fora a guerra franco-alemã; todavia alguns Estados e Estadistas tomariam atitude de suspeita diante da Igreja; a Prússia e alguns cantões da Suíça adotaram fortes medidas contra os católicos, que levaram ao Kulturkampf (secularização de bens eclesiásticos). Estas consequências desagradáveis, que culminaram no cisma dos Velhos-Católicos, não chegam a extinguir as vantagens que da definição resultaram para a Igreja.

Os Velhos-Católicos

O Sacerdote Inácio Döllinger, já mencionado como adversário da definição, desde cedo mostrara-se favorável ao sistema febroniano. Era famoso historiador e teólogo de Munique, que professava ideias liberais em matéria de doutrina e um certo relativismo ou historicismo.

Após a definição da infalibilidade, continuou a manifestar-se hostil ao Papado, que ele julgava desnecessário. A sua posição professada publicamente valeu lhe a excomunhão da parte do arcebispo de Munique em 1871 – censura este que em 1872 atingiu outros professores de Faculdades alemãs, por se terem agregado a Döllinger. Aos poucos esses adeptos do mestre, a revelia do próprio mestre, resolveram fundar uma Igreja própria, cujo chefe era o professor João Frederico von Schulte, de Praga. A partir de 1872 foram sendo criadas paróquias de “Velhos-Católicos”. Esta designação se deve ao fato seguinte: quando o arcebispo de Munique voltou de Roma, após o Concílio, convidou Inácio Döllinger a “trabalhar Para a Santa Igreja”; este respondeu secamente: “Sim, Para a antiga Igreja! – Há uma Sé Igreja, replicou o arcebispo, não existe nova nem antiga Igreja! – Mas fizeram uma nova!”, retrucou o professor. Por conseguinte, Döllinger pertencia a Velha Igreja; resolveram também instituir um bispo Para si em 1873 na pessoa do professor de Teologia Joseph Hubert Reinkens, que foi receber a ordenação episcopal das mãos do arcebispo jansenista de Utrecht na Holanda.

Em Pentecostes de 1874 um Sínodo em Bonn aprovou a constituição eclesiástica traçada por Schulte: cada povo tem sua Igreja nacional autônoma; as Igrejas nacionais estão ligadas pela “Conferência” de seus bispos. A autoridade suprema é o Sínodo, do qual fazem parte todos os eclesiásticos e os deputados dos leigos de cada paróquia; o Sínodo promulga leis e examina a administração. Na paróquia a autoridade suprema toca à assembleia dos fiéis, que elege o seu pároco; a este assiste o Conselho Paroquial.

Os Velhos-Católicos aos poucos foram sendo penetrados por teses protestantes, que lhes pareciam corresponder à disciplina da Igreja dos oito primeiros séculos (donde o nome “Velhos-Católicos”): rejeitaram, portanto, além do primado do Papa, o celibato sacerdotal, a confissão auricular, as indulgências, o culto dos santos, as procissões e peregrinações, a Imaculada Conceição. Introduziram a língua alemã na liturgia da Missa. Estas inovações causaram descontentamento dentro da própria comunhão cismática: dos Velhos-Católicos faziam-se Neo-protestantes. O próprio Inácio Döllinger abandonou publicamente a facção que ele inspirara.

Aliás, a figura de Döllinger ficou sendo misteriosa. Ele não teria levado suas ideias a tais consequências práticas; não queria o cisma formal. Conservou-se sempre fiel aos votos do seu sacerdócio; absteve-se de celebrar a S. Missa após a excomunhão. Sempre levou vida muito modesta, de severa sobriedade e muito trabalho. Parece que no fim da vida sentia saudades da Igreja de sua juventude. Desaconselhou mesmo a um de seus discípulos, Blennerhasset, que o seguisse no caminho tomado após o Vaticano I. O fato é que morreu em 1890 sem se ter reconciliado com a Igreja.

Em 1889, os Velhos-Católicos e os jansenistas se aliaram na chamada “União de Utrecht”. As tendências liberais se fizeram sentir muito especialmente na Suíça, onde os Velhos-Católicos são chamados “Igreja Cristã Católica”, dirigida por leigos e não por teólogos, como na Alemanha, porque as razões da oposição ao Vaticano I eram mais políticas do que teológicas.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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