História da Igreja: A queda do Estado Pontifício

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A figura de Pio IX

Pio VII, ao falecer em 1823, deixou o Estado Pontifício assaz agitado, pois se faziam ouvir vozes em favor da unificação da península itálica – o que implicaria a extinção do Estado Pontifício. Os Papas seguintes Leão XII (1823-29), Pio VIII (1829-30) e Gregório XVI (1831-46) tiveram que enfrentar os movimentos nacionalistas italianos, sendo que Gregório XVI resistiu severamente aos mesmos. A Áustria tinha interesse em manter o Estado Pontifício; por isto ajudava o Papa a reprimir as revoluções internas; temia a eleição de um Pontífice que favorecesse as aspirações italianas. Quanto aos Cardeais, eram, na maioria, do parecer de que o Governo papal se devia mostrar mais aberto.

Em tão difíceis circunstâncias, foi eleito Papa o Cardeal Mastai-Ferretti (16/06/ 1846), que tomou o nome de Pio IX. Tinha vivo,sentimento nacional e largueza de espírito; conseguira tornar-se popular mesmo nas regiões em que o Governo pontifício era menos estimado. Por isto o povo italiano regozijou-se com tal eleição, na expectativa de ser libertado do jugo austríaco e experimentar instituições liberais. Aliás, a propósito deste Papa, corre até hoje a notícia de que foi filiado à Maçonaria; quem primeiro espalhou este rumor, foi Carlos Gasola, no jornal Positivo de Roma, aos 23/03/1849 (ao menos, é o que parece); todavia neste mesmo periódico o próprio articulista se retratou aos 18/06/1857. Este “boato” se baseava na confusão do nome de Giovanni Mastai-Ferretti (o de Pio IX) com o de Giovanni Ferretti Mastai, jovem de vida livre e conhecido em Roma por seus desvarios.

Pio IX era um pastor afável, simpático e jovial; sofria, porém, de indecisão e hesitação nas horas mais importantes; inseguro como era, adotava meias-medidas, que a ninguém satisfaziam. Era pessoalmente alheio aos recursos da diplomacia; por isto confiou grande parte da administração do Estado Pontifício ao seu Secretário de Estado, o Cardeal Antonelli, a quem muito obedeceu. Se Pio IX é criticável como chefe de Estado, ele não merece censura como Pastor: com grande energia e plena dedicação entregou-se as suas tarefas de guardião da S. Igreja, elevando extraordinariamente o prestígio do Papado, durante o mais longo pontificado de toda a história (1846-1878= 32 anos). Este longo período é assinalado por quatro grandes façanhas, entre outras: a entrega do Estado Pontifício (1870), o Concílio do Vaticano I (1869/70), a definição do dogma da Imaculada Conceição (1854) e a publicação do Syllabus (compêndio de proposições errôneas da época) em 1864. Veremos, a seguir, as vicissitudes do Estado Pontifício ou a Questão Romana.

O declínio do Estado Pontifício

Pio IX abriu o seu pontificado concedendo anistia aos desordeiros encarcerados sob Gregório XVI; mostrava assim que seguiria orientação mais liberal que a de seus antecessores. Mandou construir estradas de ferro, autorizou a publicação de jornais novos; abrandou a censura política. A Roma concedeu a estrutura de municipalidade; abriu o acesso de seu Ministério a vários leigos; criou duas Câmaras Legislativas, das quais uma seria nomeada pelo Papa e a outra eleita pelo povo; ambas estariam subordinadas ao Colégio Cardinalício como Senado. A população italiana se regozijou profundamente com estas medidas, enquanto a Áustria as via com maus olhos e a França as apoiava.

O ano de 1848 foi um período de agitações em vários países da Europa. Em abril, o rei Carlos Alberto, do Piemonte-Sardenha, que encabeçava o movimento de unificação da península itálica declarou guerra à Áustria (que apoiava o Estado Pontifício). Pio IX, diante do conflito, declarou-se neutro, pois não ousava contraditar os patriotas italianos nem queria magoar a Áustria católica. o Papa procedia assim como Pai comum. Todavia a sua atitude provocou a ira dos nacionalistas italianos. Cercaram o palácio do Quirinal, onde morava o Pontífice e o ameaçaram seriamente. Para salvar-se, Pio IX, dissimulado sob outros trajes, fugiu para Gaeta no Reino de Nápoles (24/11/1848).

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Aos 09/12/1849, uma Assembleia Constituinte em Roma proclamou a República. Houve dolorosas profanações cometidas pelos chefes revolucionários: Armellini, por exemplo, incensou o Povo, “único Soberano e verdadeiro Deus”; Mazzini, no dia de Páscoa, sentado no trono papal em S. Pedro, mandou celebrar a liturgia por sacerdotes depravados. Igrejas foram saqueadas e muitos clérigos maltratados.

Pio IX em Gaeta apelou para as potências europeias, pois o Congresso Internacional de Viena (1815) tinha reconhecido e confirmado as fronteiras do Estado Pontifício. – A Áustria e a França (aquela por ambição; esta, em parte, por rivalidade) acorreram ao chamado. Após duras lutas, o general francês Oudinot ocupou Roma (julho de 1849),. proclamando aí de novo a soberania pontifícia. o Papa voltou a sua capital em 1850, preocupado com o desencadear dos acontecimentos.

As ocorrências recentes fizeram que o Papa e o Cardeal Antonelli rejeitassem a abertura política iniciada; por seu lado, os austríacos e os franceses mantiveram as tropas na Itália, a fim de evitar novas insurreições. Isto irritou muito os ânimos dos patriotas, que se concentravam no reino do Piemonte-Sardenha; cada vez mais desejosos de mudar a situação, afirmavam “Igreja livre no Estado livre”; o espiritual e o temporal deveriam ser independentes um do outro; a casa de Savoia entraria em Roma e o Papado, desembaraçado de cuidados temporais, teria plena autonomia para realizar sua missão evangelizadora no mundo. Tais ideias foram plenamente assumidas pelo Primeiro-Ministro Camillo Cavour, homem genial, mas maquiavélico, que de 1852 a 1861 dirigiu a política do Piemonte-Sardenha; aliás, nos territórios deste reino, os jesuítas (defensores do Papa) foram expulsos, muitos mosteiros contemplativos fechados e o clero destituído de suas prerrogativas.

Cavour, no seu maquiavelismo, resolveu lutar pela expulsão dos austríacos da Itália, embora estes fossem mais numerosos do que as tropas piemontesas. Para tanto, recorreu a um sonhador, aventureiro, que era Napoleão III, Imperador da França; conseguiu realmente entrar em acordo com este monarca, declarando a guerra a Áustria (notemos que a França fora aliada da Áustria em 1848!).

A campanha bélica foi favorável aos franco-piemonteses; expulsaram os austríacos e os italianos tomaram posse de grandes porções do Estado Pontifício. Pio IX, destituído de apoio, resolveu formar o exército dos “zuavos pontifícios”, voluntários (em parte estrangeiros), comandados pelo general La Moriciére. Este exército, improvisado e despreparado, foi vencido em Castelfidardo (18/09/1860), de modo que Vítor-Emanuel II (1849-1870) do Piemonte ocupou novas províncias pontifícias e foi proclamado “rei da Itália” aos 27/03/1861, com sua capital em Florença.

Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam no Norte e no Centro da Itália, surgia ao Sul um novo perigo: o patriota Giuseppe Garibaldi, inimigo fanático do poder temporal do Papa, após derrubar o rei de Nápoles, fundou a República Napolitana, e anunciou a marcha sobre Roma.

Em 1861, portanto, o Estado Pontifício via-se despojado de dois terços dos seus territórios, reduzido a Roma e à parte mais antiga do Patrimônio de S. Pedro, praticamente impossibilitado de subsistir em virtude do esgotamento financeiro. Cavour reivindicava Roma como capital da Itália; prometia aos católicos respeito à autonomia espiritual da Santa Sé; antes, afirmava que o Papa exerceria sua ação pastoral com mais liberdade e eficácia, porque, renunciando ao poder temporal, teria contribuído para a pacificação da Itália.

Nos anos seguintes, o Piemonte fez várias propostas ao Papa, incitando-o a ceder o resto dos seus Estados. Pio IX e Antonelli respondiam firmemente: “Non possumus. Não podemos!”; ceder o território da Igreja, diziam,. não está em poder do Papa ou dos Cardeais; apelavam para a Constituição de São Pio V, que Pio IX tivera de jurar e que proibia ao Papa alienar, direta ou indiretamente, os bens da Igreja; nem indenizações financeiras nem acordos e garantias internacionais poderiam demover a Santa Sé dos seus princípios. – Esta resistência há de ser entendida também à luz de fatos passados da história do Papado: a independência territorial era condição para que o Papa não estivesse sujeito às influências e ao controle de soberanos estrangeiros; o exílio de Avinhão, tirando os Pontífices do seu território próprio, redundara em descrédito dos Papas, pois o mundo percebia que eram frequentemente inspirados pelo domínio dos reis de França.

A Pio IX só restava uma esperança: a intervenção de potências estrangeiras em favor do Estado Pontifício. Estas, porém, pareciam cansadas e desinteressadas do assunto.

Entrementes, continuavam as operações bélicas. Em 1867, Garibaldi, por instigação secreta do Piemonte, fez nova incursão sobre Roma com 6 mil homens. Por pouco não tomou a cidade; não tendo atacado no momento oportuno, as tropas papais e francesas o venceram em 03/11/1867.

A Questão Romana ficou estacionária até 1870, quando rebentou a guerra franco-alemã. Alegando precisar das suas tropas, Napoleão III retirou-as da Itália, onde guardavam o pequeno Estado Pontifício. Assim mais nenhum obstáculo se opunha ao golpe final da corte de Florença. Em breve, apareceram diante de Roma 6o mil piemonteses, comandados pelo general Cardona. A defesa pontifícia, sob o general Kanzier, só contava 10 mil soldados, de modo que a resistência era impossível. Depois de alguns golpes de artilharia piemontesa, Pio IX mandou capitular aos 20/09/1870. o poder temporal do Papa assim caía – note-se – poucos meses depois que fora definido pelo Concílio do Vaticano I (junho 1870) o primado de magistério e jurisdição do Romano Pontífice. Reconhecera-se o papel capital do Papa no plano espiritual.

Os protestos de Pio IX e do Cardeal Antonelli de nada serviram. Em junho de 1871 Vítor Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam morado os Papas, ficando o Pontífice no Vaticano.

Após a queda…

Para dar aspecto de legalidade aos acontecimentos, o rei mandou realizar um plebiscito em Roma, que lhe deu razão por 40 mil vozes contra 46. Em março de 1871 publicou a “lei das garantias”, que declarava inviolável a pessoa do Papa e lhe reconhecia as honras de soberano; concedia-lhe os palácios do Vaticano, do Latrão e de Castel Gandolfo com uma renda anual de 3.225.000 liras; o rei se empenhava por garantir a livre administração pontifícia, inclusive a realização de futuros conclaves e Concílios Ecumênicos. – Pio IX rejeitou a lei das garantias, assim como a renda anual, pois a aceitação equivaleria a reconhecer a usurpação; confiava na solidariedade dos fiéis, que para o futuro, como até então, haveria de suprir as deficiências do erário pontifício. O governo italiano, inspirado pela Maçonaria, mostrou-se hostil aos sacerdotes e à religião até a guerra de 1914. Desde 1870 até o fim da Questão Romana (11/02/1929), os Papas se consideraram prisioneiros no Vaticano.

A perda do poder temporal teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações dilaceradoras da administração de um Estado. Pode sobressair mais na singularidade da sua missão espiritual.

Depois das tendências centrífugas ou nacionalistas dos séculos XVII/XVIII, Roma tornou-se um ponto de convergência dos bispos e dos fiéis do mundo inteiro. Um Concílio Ecumênico e quatro grandes assembleias de bispos e fiéis realizaram-se sob Pio IX:

1. A primeira por ocasião da definição da Imaculada Conceição em 185467;

2. A segunda em Pentecostes (08/06) de 1862, quando foram canonizados 26 mártires japoneses, dos quais 23 franciscanos e 3 jesuítas. Mais de 300 bispos então reunidos protestaram contra as violências cometidas contra a Santa Sé, redigiram um documento, que de várias partes do mundo recebeu adesões, justificando o poder temporal do Papa para o livre exercício do seu pontificado

3. Aos 29/06/1867 comemorou-se o 18º centenário do martírio dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, com a presença de mais de 500 bispos e cerca de 10.000 peregrinos;

4. A quarta assembléia foi a mais concorrida: em 1877, ano anterior ao da morte do Papa, celebrou-se o 50º aniversário da sua ordenação episcopal. o Pontífice, já muito idoso, despojado de todo poder temporal, foi alvo de especial deferência dos peregrinos, que lhe levaram dons naturais e dinheiro no valor de 7 milhões de francos; amavam-no sinceramente, considerando-o “o mártir”, “a cruz da cruz”.

Antes que Vítor Emanuel morresse (09/01/1878), Pio IX absolveu-o da excomunhão, permitindo que recebesse os últimos sacramentos. Apesar das suas façanhas, o rei nutrira sempre no fundo da alma os sentimentos religiosos da casa de Savoia.

Nota:

1. A definição do dogma da imaculada Conceição foi cercada de fatos muito significativos. Já existia a devoção dos fiéis a esse privilégio de Maria, afirmado na S. Liturgia em obras teológicas, quando aos 17/11/1.830 uma Irmã de Caridade de Paris, Catarina Labouré, em oração viu Nossa Senhora: os seus pés repousavam sobre o globo terrestre; de suas mãos voltadas para a terra jorravam feixes de luz. Formou-se em torno da Virgem uma moldura oval, sobre a qual se liam em letras de ouro estas palavras: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a vós”. A Religiosa recebeu também a ordem de mandar cunhar uma medalha de acordo com tal modelo.

Informado da ocorrência, o arcebispo de Paris, Mons. de Quélen, permitiu a cunhagem da medalha, que se propagou rapidamente. – Tais fatos só fizeram aumentar no espírito dos cristãos a devoção à Imaculada e o desejo de que se definisse o dogma respectivo. Numerosos e insistentes pedidos foram encaminhados à Santa Sé nesse sentido.

Pio IX mandou estudar o assunto por parte de bispos e teólogos e resolveu finalmente proceder à definição aos 08/12/1.854 na basílica de São Pedro em presença de mais de duzentos bispos e enorme multidão de fiéis.

Ora menos de quatro anos após a definição da Imaculada, deu-se um acontecimento, que contribuiu extraordinariamente para confirmar a palavra do Papa: as dezoito aparições de Lourdes, de 11/02 a 16/07 de 1858, sendo que a 25/03 a Bem-aventurada Virgem declarou expressamente ser a Imaculada Conceição; era como o eco da aparição a S. Catarina Labouré e uma resposta à declaração do Papa em 1854.

Note-se ainda: ao definir o dogma da Imaculada Conceição, Pio IX afirmava também que estaria excluído do seio da Igreja de Cristo todo aquele que daí em diante ousasse rejeitar tal definição…

Assim procedendo, Pio IX já estava implicitamente proclamando a infalibilidade papal em matéria de fé e de Moral. A definição desta verdade devia ocorrer pouco depois, por ocasião do Concílio do Vaticano I (1870).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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