Gelado, mas rico – EB (Parte 2)

O próximo
passo consiste em envolver o paciente em um saco de dormir tradicional e
deitá-lo sobre um caixão de alumínio. Um guindaste levanta o caixão e coloca-o
de cabeça para baixo em uma cápsula de alumínio, onde outros três pacientes já
dividem o mesmo cilindro. Tampa-se tudo e o nitrogênio líquido encarrega-se de
abaixar a temperatura até os 196ºC abaixo de zero necessários. Detalhe: a
pessoa é colocada de cabeça para baixo, pois, se algum acidente acontecer, o
nitrogênio irá evaporar de cima para baixo, mantendo assim o cérebro, parte
mais importante do ser humano, mais tempo protegido. Uma vez dentro do cilindro
de aço, o paciente poderá resistir por mais de mil anos. Quando for retirado
para a futura reanimação, o corpo estará exatamente como no dia em que entrou.
Os cabelos, as unhas e as fisionomias das pessoas estarão perfeitos. A única
diferença será a coloração da pessoa, que será mais branca por causa da
ausência de sangue. Quatro fundações americanas dedicam-se à criogenia – a
técnica de resfriamento usada para manter congelados os corpos. A mais famosa
delas é a Alcor Life Extension Foundation, com sede na cidade de Phoenix, no
Arizona…

O processo
todo funciona assim: uma pessoa assina um contrato com a Alcor permitindo que,
após a constatação de sua morte clínica e cerebral, seu corpo possa ficar
congelado sob a responsabilidade da fundação. Depois disso, o futuro congelado
recebe uma pulseira com seus dados, número de sócio e instruções básicas para
caso de morte. Paga US$ 324 pela manutenção anual deste direito. Estudantes têm
50% de desconto. Os US$ 120 mil necessários para cobrir as despesas de
congelamento e manutenção do corpo normalmente são pagos por apólices de seguro
de vida, cujo beneficiário indicado é a própria fundação…

‘Quem está
aqui é porque quer ver o futuro com os próprios olhos. Nossos pacientes não
viveram o suficiente e querem dar uma esticadinha’, diz  Brian Shoch, administrador da Alcor. Dos 31
pacientes… que estão armazenados na Alcor, o mais velho hibernou aos 99 anos
e o mais jovem, aos 23. O mais antigo é o psiquiatra James h. Bedford, criador
da fundação e o primeiro homem a ser congelado. Obcecado pela criogenia, o dr.
Bedford seguiu passo a passo os mandamentos de Robert Ettinger, inventor da
técnica… Antes de morrer de câncer aos 73 anos, em 1967, o psiquiatra teve
longas conversas com Ettinger para preparar sua passagem para o futuro. Com
todas as informações, dicas e dinheiro levantando (US$ 200 mil), o processo de
congelamento foi executado pelo próprio Ettinger e sua equipe. A família, ainda
chorosa com o passamento do patriarca, manteve-o congelado por quinze anos em
sua casa”.

4. E a
consciência ética?

Responderemos
em duas etapas:

4.1.
Ressurreição de morto?

1. Mediante
o congelamento, não se pretende ressuscitar um defunto. Mas precisamente, eis o
que tal processamento supõe e intenciona:

A medicina
distingue morte clínica e morte real.

A morte
clínica é a que o médico declara, quando verifica que o coração do paciente já
não pulsa e a respiração cessou. Todavia não se sepulta alguém que esteja
clinicamente morto senão 12 ou mesmo 24 horas depois de ocorrido o óbvio: na
verdade, é extremamente improvável que, com a última pulsação do coração, o
organismo se modifique de tal modo que já não possa ser vivificado pelo seu
princípio vital, ou seja, pela alma humana; este deve aí permanecer latente por
mais algumas horas após o óbito clínico, até dar-se a morte real. Aliás, a
experiência mesma ensina que pessoas clinicamente mortas recuperaram suas
funções vitais.

Com efeito,
em 1970, por exemplo, na Inglaterra, registrou-se o caso de uma jovem iraniana
que em Brighton ingeriu pesada dose de barbitúricos. Foi transportada para o
hospital, onde o médico de serviço nela averiguou todos os sinais de morte
clinica. Todavia na câmara mortuária a jovem começou a se agitar; estava apenas
em coma profunda. Foram-lhe então aplicados os processos de reanimação,
mediante os quais a paciente se recuperou e, sadia, deixou o hospital cinco
semanas mais tarde.

Donde se vê
que a cessação das pulsações cardíacas e da respiração não indica a morte real
do indivíduo.

2. Mais
precisamente, no tocante ao coma, convém notar o seguinte: o coma é um estado
caracterizado pela perda (total ou parcial) da consciência e a cessação mais ou
menos total das funções de sensibilidade e motricidade. Distinguem-se seis
graus de coma, segundo a respectiva profundidade e gravidade. Desses seis,
sejam mencionados ao menos quatro graus: o coma leve ou de vigia, o coma de
gravidade média, o profundo e o ultrapassado.

No coma
profundo ainda há sintomas de que o cérebro esteja vivo, pois o sistema
vegetativo ainda se manifesta espontaneamente. Somente no coma ultrapassado
(que já não é propriamente coma) é que o cérebro já não funciona e a vida
vegetativa central está extinta. O eletroencefalograma se conserva
constantemente liso. O colapso do organismo é total. Nessas circunstâncias, os
peritos já tentaram de todos os modos restabelecer as funções cerebrais, mas em
vão. Já não há recuperação.

Conclui-se,
pois, que, entre o estado de morte clínica (declarada por haverem cessado
respiração e pulsações cardíacas) e o de coma ultrapassado irrecuperável, há
uma gama assaz variada de estados do organismo suscetíveis de reativação e
recuperação para a plena vida.

3.
Conscientes disto, os médicos, desde que verifiquem a morte clínica de alguém,
podem supor que o princípio vital (ou a alma) desse paciente perdure no
respectivo organismo até que se dê tal destruição dos órgãos e tecidos que já
não possa mais subsistir aí um princípio de vida (ou a alma humana).

Interessa,
pois, aos médicos deter o processo de deterioração do organismo em virtude do
qual se dará a morte real. Ora, para deter tal processo, não há (segundo dizem
muitos) recurso mais indicado do que o congelamento. Este paralisa as
atividades todas do organismo (inclusive a deterioração); conseqüentemente,
conserva-se presente na pessoa em coma a respectiva alma. Pode-se então esperar
que, em época futura, o organismo esteja em condições de ser descongelado e
receber medicamentos ou tratamentos novos, que a medicina esteja para
descobrir. Caso tal medicação seja aplicada com êxito e o paciente recupere a
vida plena, não se dará a ressurreição de um morto, mas apenas a reativação de
um organismo inerte. ¹

Fica
naturalmente a dúvida: será que a baixa temperatura, paralisando as funções do
organismo, não constitui um clima violento ou artificial demais para a vida
humana? Será que o organismo do homem pode subsistir a 79º Celsius abaixo de
zero ou a temperaturas ainda mais baixas? Será que os corpos até hoje
congelados ainda estão vivos? – Quem julgar poder responder afirmativamente,
não terá dúvida em admitir que o congelamento ou a crioterapia é aceitável do
ponto de vista medicinal.

Todavia
põe-se agora uma dúvida de consciência:

4.2. Será
lícito congelar?

A resposta
abrange dois aspectos:

4.2.1.
Congelamento do organismo e plano de Deus

A prática do
congelamento se enquadra tranqüilamente dentro do programa gera da medicina,
que é “preservar a vida humana e defendê-la contra as ameaças da morte”. Não há
dúvida, trata-se de recurso novo da medicina e, por isto, raro e dispendioso;
além do mais, os seus resultados são incertos e fortemente hipotéticos, podendo
mesmo ser nulos. Em conseqüência, nenhum paciente tem a obrigação de pedir tal
tratamento, nem médico algum tem o dever de aplicar tal processo.

É certo que
o congelamento em vista de uma reativação posterior não derroga aos desígnios
do Criador. O homem deve morrer tanto segundo as leis naturais da biologia (os
órgãos se desgastam pelo uso e perdem sua vitalidade) como segundo as
proposições da fé (a morte é o salário do pecado, diz São Paulo em Rm 6, 23).
Seria utópica e vã a pretensão de livrar da morte o composto “corpo e alma” que
peregrina sobre a terra; cedo ou tarde, este deve ceder à decomposição para ser
restaurado sob forma gloriosa, em configuração a Cristo ressuscitado (apenas a
alma humana, e não o composto “corpo e alma”, é, por sua natureza, imortal).

¹ Note-se
bem: a palavra precisa, no caso, é realmente reativação, isto é, volta às
atividades; não reanimação (o que poderia significar volta da anima, alma, ao
corpo).

Ademais o
sábio cristão tem consciência de que as conquistas positivas da medicina em
nada derrogam ao poder e à soberania de Deus. É por graça e dom do Criador que
o homem consegue progredir nos setores da ciência e da técnica; tais avanços
têm levado muitos cientistas a reconhecer ainda mais evidentemente a sabedoria
e a grandeza de Deus no mundo criado. É, pois, para desejar que a ciência
continue a desenvolver-se, contanto que respeite sempre as leis de Deus e a
dignidade do ser humano (imagem e semelhança do Criador).

Tenham-se em
vista as palavras do Concílio do Vaticano II:

“Bem longe
de julgar que as obras produzidas pelo talento e a energia dos homens se opõem
ao poder de Deus, e de considerar a criatura racional em competição com o
Criador, os cristãos estão antes convictos de que as vitórias do gênero humano
são um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu inefável desígnio” (Const. Gaudium
et Spes nº 34c).

4.2.2. E a
deontologia médica?

Dois tópicos
vêm ao caso:

1) Visto que
o congelamento ainda é recurso extraordinário e incerto, não deve ser aplicado
a um paciente adulto sem o consentimento deste – consentimento dado previamente
em estado de lucidez mental. Muitas pessoas, embora não tentem o suicídio,
aspiram a terminar seus dias na terra e repousar-se da fadiga cotidiana. A fé
cristã reconhece a legitimidade de tal atitude. É lícito a alguém desejar a
morte para si mesmo, contanto que não o faça por covardia, mas, sim, para
unir-se a Deus mais plenamente; tenham-se em vista as palavras de São Paulo:

“Para mim, a
vida é Cristo, e morrer é lucro… Sinto-me coagido por esta alternativa: de um
lado, o desejo de partir e estar com Cristo, o que é muito melhor. Mas, de
outro lado, por vossa causa, é mais necessário permanecer na carne” (Fl 1,
21.23).

Note-se
também que o paciente congelado está sujeito a voltar à vida pública dentro de
decênios, quando as circunstâncias ambientais e a civilização serão muito
diversas das atuais. Poderá readaptar-se ao ambiente? Sentir-se-á à vontade,
sem poder contar com o apoio dos familiares e amigos que o acompanham
anteriormente? – Tal sorte não deve ser imposta a pessoa alguma. Sabe-se que
são rejeitadas pela consciência moral as experiências in anima nobili (no ser
humano) cujo resultado seja incerto.

Ao se tratar
de crianças pequenas, a responsabilidade do processo pode ser compartilhada
pelos genitores e pelos médicos; julgarão em consciência se o congelamento
poderá ser benéfico ao pequenino.

2) A
congelação de paciente supõe a morte clínica devidamente averiguada; somente
depois desta pode ser empreendida. Como se entende, não seria lícito a um
médico antecipar-se à morte clínica para provocar o congelamento do indivíduo,
pois tal processo extingue a consciência psicológica e moral do enfermo, sem
garantia de recuperação da mesma.

Em suma, o
novo processo de defesa da vida humana ainda está envolto em numerosas
interrogações, apresentando traços de fantástico. Não deve ser desprezado nem
condenado, porque se baseia em premissas aceitáveis, tem sua lógica e não
recorre a meios ilícitos; pode-se talvez tornar fator de progresso da ciência.
Contudo requer-se sobriedade e uso de raciocínio quando se pensa em aplicar
concretamente tal tipo de tratamento e prever os seus efeitos; que o bom senso
e o realismo prevaleçam sempre sobre a fantasia e a imaginação mirabolantes!

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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