Fundamentos Bíblicos: Eucaristia – EB (Parte 1)

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 9, Ano 1958, p. 359

“Quais os fundamentos bíblicos da fé na real presença de Cristo na Eucaristia?”

A Sagrada Escritura apresenta textos concernentes
1)
à promessa, 2) à instituição e 3) à celebração da Sagrada Eucaristia,
textos que dão claro testemunho da real presença do Senhor no sacramento
do altar.

Percorramos as principais dessas passagens.

A promessa da S. Eucaristia

A
promessa se acha consignada em Jo 6. O quarto Evangelista, escrevendo
mais de trinta anos após os demais ou seja, por volta do ano 100, não
quis reiterar a narrativa da instituição da Eucaristia já apresentada
por S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e São Paulo (1 Cor 11); procurou,
antes, desenvolver o profundo significado doutrinário do gesto de Jesus,
referindo a promessa que o Senhor fizera do Pão da Vida.

Qual seria então o conteúdo de Jo 6?

Reúne
três episódios harmoniosamente concatenados a fim de incutir uma grande
tese ou o mistério da Eucaristia:  a multiplicação milagrosa dos pães
(1-15) significa o poder de Jesus sobre o pão; o caminhar sobre as águas
(16-21) incute o poder do Senhor sobre o seu corpo e os elementos da
natureza; por fim, o sermão sobre o Pão da vida (22-71), utilizando os
ensinamentos dos dois quadros anteriores, anuncia um pão que será o
próprio corpo de Cristo.

Nesse sermão, que nos interessa de modo
particular, Jesus se propõe diretamente como o pão que dá a vida
verdadeira, imortal. Alguns exegetas julgam que na primeira parte do
discurso (22-50) o Senhor tem em vista o consumo meramente espiritual,
que se dá mediante a fé: quem crê, come… Tal interpretação é
aceitável; não se poderia, porém, estender à segunda parte do sermão
(51-71), a qual visa claramente o consumo sensível de um pão que é a
verdadeira carne do Cristo; tenham-se em vista, por exemplo, as
expressões muito vivas e concretas do trecho 6,51-56:

51 “Eu sou o pão vivo que desceu do céu se alguém comer deste pão, viverá eternamente!

O pão que eu darei é a minha carne, entregue para a vida do mundo.

52 Puseram-se, então, os judeus a disputar entre si: “Como pode esse dar-nos a comer (phagein) a sua carne?”

53
Retornou Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a
carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em
vós.

54 Quem come (ho trogon) minha carne e bebe meu sangue, tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia.

55 Porque minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida.

56 Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim, e eu nele”.

A
clareza e a insistência destas palavras exigem sejam entendidas em seu
pleno realismo. Note-se que no v. 52 os judeus perguntavam como Jesus
lhes poderia dar a sua carne a comer (phagein), em grego); então,
visando esclarecê-los, Cristo, longe de enveredar por uma explicação
alegorista, reafirmou o sentido literal das suas palavras, utilizando no
v. 54 expressão ainda mais forte, isto é, o verbo trogo, que significa
“mastigar, dilacerar com os dentes”, sem sentido pejorativo, mas num
realismo extremo.

Quem quisesse interpretar metaforicamente os
dizeres do Mestre, deveria comprovar explicitamente a sua tese – o que
seria difícil ou impossível, pois o sentido metafórico que as expressões
de Jesus podiam ter em linguagem semita é inadmissível no contexto de
Jo 6: “comer a carne de alguém” significaria metaforicamente “ofender
essa pessoa, perseguí-la até a morte” (cf. S1 26,2); “beber o sangue de
alguém” equivaleria a “arder de ódio para com tal pessoa”. Ora está
claro que Jesus, em Jo 6,54, não podia convidar os seus ouvintes ao ódio
para com o Divino Mestre, prometendo-lhes em troca a vida eterna.

Os
ouvintes de Cristo entenderam naturalmente as palavras do Senhor em
sentido literal, perguntando conseqüentemente, cheios de admiração:
“Como nos pode dar a comer a sua carne?” (v. 52). Ora acontecia que,
quando os discípulos se enganavam a respeito das afirmações do Divino
Mestre, tomando ao pé da letra expressões que deviam ser entendidas
metaforicamente, o Senhor tratava de desfazer o equívoco (cf. Jo 3,3-8;
4,32-34; 11,11; Mt 16,6-8); no caso, porém, de Jo 6, Jesus, visando
esclarecer seus ouvintes surpresos não somente não atenuou o realismo de
suas palavras, mas, ao contrário, o acentuou: nos vv. 53 e 54
acrescentou, em sua resposta, a menção de “beber o sangue do filho do
Homem” e de “mastigar, dilacerar com os dentes a sua carne”. O Senhor
manteve destarte a sua posição, muito embora soubesse que, em
conseqüência, vários dos seus ouvintes haveriam de O abandonar (cf. v.
66); Cristo não hesitou mesmo em intimar os doze discípulos a definir a
sua atitude com toda a clareza: ou crer no realismo das palavras
anteriormente proferidas pelo Senhor e, conseqüentemente, acompanhá-Lo,
ou negar fé e, conseqüentemente, afastar-se (cf. v. 67).

Eis,
porém, que o v. 63 tem causado dificuldades exegéticas: “É o espírito
que vivifica; a carne para nada serve. As palavras que Eu vos disse, são
espírito e vida”. Que tinha em vista o Senhor com esta advertência?

Jesus
apenas visava remover um entendimento grosseiro de suas afirmações, o
entendimento chamado “cafarnaítico” (porque característico dos ouvintes
de Cafarnaum, onde Jesus falava): não se tratava de comer carne enquanto
tal (está claro que esta por si só não santifica o homem) nem de comer a
carne do Senhor em suas condições terrestres (como se come à carne do
açougue), mas, sim, de receber a carne de Cristo glorificada e elevada
aos céus, emancipada das leis do espaço e do tempo. É a carne nessas
circunstâncias novas que Jesus chama “espírito”; é espírito, porque está
toda penetrada pela Divindade (na verdade, é a Divindade de Cristo que,
mediante a carne, vivifica os fiéis na Eucaristia).

Acrescentou o
Senhor que as suas palavras são espírito, não como se tivessem de ser
entendidas em sentido figurado, mas pelo fato de terem um alcance
espiritual e de exigirem um entendimento sobrenatural (na fé); são vida
também, porque nos revelam o meio dos termos a vida em nós.

S. Agostinho (+430), tão explorado pelos simbolistas, propõe de maneira admirável a exegese de Jo 6,63):

“A
carne para nada serve, se ela está só. Que o Espírito (=a Divindade) se
junte a ela, como a caridade se pode juntar à ciência, e então ela
servirá muito. Pois, se a carne para nada servisse o Verbo não se teria
feito carne para habitar entre nós. Se Cristo muito nos valeu
encarnando-se, como é que a carne para nada serve? Eis contudo que o
Espírito se empenhou em nossa salvação mediante a carne. A carne foi o
receptáculo: considera o que ela continha, não o que ela era… O
Espírito é que vivifica, a carne para nada serve: minha carne, que dou a
comer, não é a carne  tal como eles a concebiam (= como carne de
açougue)” (In Io tr. 27,5).

São João Crisóstomo (+ 407) diz o mesmo sob nova forma:

“Se
aquele que não come a carne de Jesus e não bebe o seu sangue, não tem a
vida em si, como seria verdade que essa carne, sem a qual ninguém
possui a vida, para nada serve? Vês, por conseguinte, que a frase. “A
carne para nada serve” significa não a carne de Jesus, mas o modo carnal
como eles escutavam” (In Io 6,63 hom. 47, ed. Migne gr. LIX 265).

De
resto, o sentido realista de Jo 6 é reconhecido por não poucos autores
liberais e até protestantes (Zahn, Schanz, Bauer, Loisy).

É à luz de Jo 6 que se dão entender os episódios abaixo referidos.

As narrativas da instituição

As
narrativas da instituição durante a última ceia do Senhor empregam, por
sua vez, palavras muito claras: “Isto é meu corpo… Isto é meu
sangue”.

Jesus naquela ocasião, ao deixar as derradeiras
instruções aos discípulos, terá evitado qualquer termo de sentido
ambíguo (nas horas supremas e decisivas os homens costumam recorrer à
linguagem precisa). Cristo, assentado à mesa com os Apóstolos, tinha
diante dos olhos todas as gerações cristãs através da história; sabia
previamente que de maneira geral, durante séculos e séculos, os seus
discípulos haviam de interpretar os seus dizeres em sentido realista,
prestando adoração ao SSmo. Sacramento. Não obstante, segundo as
hipóteses racionalistas Cristo, “que não queria ensinar a real presença
na Eucaristia”, teria usado termos ambíguos, induzindo em erro seus
primeiros discípulos, homem simples e rudes, e, depois deles, uma
multidão de fiéis cristãos! Diga-se mais: Cristo teria usado termos
aparentemente claros para ocultar um simbolismo assaz difícil de se
aprender; com efeito, é árduo definir qual o significado metafórico que
Jesus possa ter tido em mira ao proferir as suas palavras simples sobre o
pão e o vinho; em 1577, sessenta anos após o surto do luteranismo, São
Roberto Belarmino dizia ter aparecido havia pouco um livrinho que
apresentava duzentas interpretações dos protestantes para as palavras:
“Isto é meu corpo”!

Contra a perspectiva de um Jesus a induzir em
erro os seus discípulos, insurgia-se em 1529 o humanista, crítico
irônico, Erasmo de Rotterdam, que escrevia a Bero a propósito das
diversas sentenças “eucarísticas” dos Reformadores (Lutero, Zwingli):

“Jamais
me pude persuadir de que Jesus, a Verdade e a Bondade mesmas, tenha
permitido que por tantos séculos a sua Esposa, a Igreja, haja prestado
adoração a um pedaço de pão em lugar de adorar a Jesus mesmo”.

Ademais
a formula de consagração do vinho soa, segundo Mt e Mc: “Isto é o meu
sangue, o sangue da Aliança, que será derramado por muitos” (Mt 26,28;
cf. Mc 14,24), frase que faz eco às palavras de Moisés: “Este é o sangue
da Aliança…” (Ex 24,8). Ora não há dúvida de que o Legislador do
Antigo Testamento, ao falar assim, tinha diante dos olhos o sangue de
uma vítima a selar a Aliança sinaítica. Donde se pode concluir que
Jesus, ao falar na última ceia, tinha em vista verdadeiro sangue, o seu
próprio sangue.

Contudo costumam-se propor objeções à interpretação óbvia das palavras de Jesus. Assim:

a)
vários são os textos da Sagrada Escritura em que Cristo ou os Apóstolos
empregam o verbo “ser” no sentido de “significar simbolizar”. Sirvam de
exemplo.

Jo 14,6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”;

Jo 10,7: “Eu sou a porta das ovelhas”;

Jo 15,1: “Eu sou a verdadeira videira, e meu Pai o vinhateiro”;

1 Cor 10,4: A pedra era o Cristo” (texto particularmente utilizado pela exegese protestante).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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