Família: Dom e Compromisso, Esperança da Humanidade – Parte 1

Introdução

Este
tema, que expressa e reúne elementos fundamentais da família, abre a mente e o
coração à amplas perspectivas que partem da certeza da presença do Senhor na
Igreja doméstica: “O Senhor está entre vós”, lembrava o Sucessor de
Pedro na sua carta às Famílias, Gratissimam sane (n. 18). Esta presença do
Senhor, “Cabeça da Igreja” (Ef. 5, 23), que enche as casas de
eminente energia (cf. Ef. 5, 27), é a chave e razão desta certeza, que dá
consistência à esperança pela qual se aspira e se caminha em direção ao futuro
que está nas mãos de Deus, e que nos introduz dinamicamente no Terceiro
Milênio. O Santo Padre, João Paulo II, afirmou na Carta Apostólica Tertio
Millennio Adveniente: “É necessário, portanto, que a preparação do Grande
Jubileu passe, de certa forma, através de cada Família” (n. 28). E
anteriormente havia dito que, “o futuro da humanidade passa pela
família” (FC 86).

O
tema, que em alguns aspectos quero somente abordar de maneira introdutória, tem
uma perspectiva cristológica que enriquece, neste campo específico, a reflexão
e a oração neste primeiro ano do Triênio de preparação ao Jubileu do Ano 2000,
que tem como tema: “Jesus Cristo, único Salvador do mundo, ontem, hoje e
sempre” (TMA 40).

O
tema “A família: dom e compromisso, esperança da humanidade”, que
proponho de comentar, será feito no Encontro mundial das Famílias e do
Congresso Teológico-Pastoral1.

O
tema escolhido pelo Santo Padre, enquadra-se em um momento histórico, depois da
celebração do Ano da Família, que permitiu ponderar mais profundamente as
amplas possibilidades da família, assim como os desafios e dificuldades que
enfrenta. No primeiro Congresso Teológico – Pastoral, de outubro de 1994 em
Roma, o tema central foi: “A Família: coração da civilização do
amor”. Os escritos foram publicados.

Nos
últimos anos, foram realizados em todo o mundo encontros de caráter
internacional, convocados pela Organização das Nações Unidas (ONU), que podemos
indicar em um itinerário que vai do Rio a Istambul, desde a Conferência do Rio
de Janeiro sobre o meio ambiente em 1992, passando pelo Cairo sobre População e
Desenvolvimento em 1994, por Pequim, sobre a mulher em 1995, e pôr último a
Conferência de Istambul sobre a Habitação em 1996. Neste mesmo ano realizou-se,
também, em Roma, na sede da FAO, o encontro mundial sobre a fome. Estes eventos
políticos tiveram realmente uma estreita relação entre si , para não falar de
uma relação intencional.

Convém
advertir que enfocamos a família, fundada sobre o matrimônio, como instituição
natural, com seus fins e bens específicos, célula primordial da sociedade, cuja
verdade está enraizada no coração e na experiência dos povos,- faz, portanto,
parte do seu patrimônio cultural- realidade que abre-se a todos os povos, de
todos os séculos, fiéis ou não fiéis. A nossa reflexão não limita-se somente
àquilo que é abordável pela razão, mas de forma especial, temos bem presente a
dimensão sacramental do matrimônio com a abundante riqueza que nos oferece a fé.
Isto foi evidenciado pelo Concílio (cf .Gaudium et Spes, 49).

1. A FAMÍLIA

O
contexto histórico caracterizado por uma série de mudanças e alterações nas
modalidades da reflexão, muitas vezes cheias de ambigüidades, que veio
instaurando-se, e que de certa forma colocam em discussão a razão de ser e o
próprio significado da família, com a sua fisionomia insubstituível e própria,
fundada no projeto de Deus Criador, fez com que hoje, seja imprescindível,
insistir no artigo (no singular) A família.

É
preciso ressaltar o uso do singular: A FAMÍLIA, quando torna-se mais freqüente
um uso do plural, AS FAMÍLIAS, pelo fato que o uso do plural, comporta uma
negação do modelo da mesma, fundada no matrimônio, comunidade de amor e de
vida, de um homem e uma mulher, abertos à vida. Ligado ao conceito original e
no singular de A família, está a sua filosofia, o seu fundamento antropológico
sobre o qual o Papa abordou muitos aspectos iluminadores do seu magistério2.

Se
permanecemos sem confusões, sem concessões indevidas, o modelo da família
pensado por Deus, como instituição natural nos distanciamos de uma visão
superficial e precipitada, que concebe o matrimônio e a família como simples
fruto da vontade humana, produto de acordos frágeis. Consensos, acordos que não
oferecem a estabilidade e a identidade como uma riqueza, mas contrariamente, a
precariedade, portanto a unidade matrimonial está sujeita a deterioração
através de sucessivas erosões que debilitam a família.

No
texto de Gênesis 2, 24, o Senhor declara solenemente o projeto de Deus, desde o
princípio da criação (“ab initio”: como modelo pensado pelo Criador).
Existe uma ordem estabelecida por Deus desde a criação (AP ARCHES) (cf. Mt.
19,4): “Criou-os homem e mulher. Por isso o homem deixará, seu pai e sua
mãe e se unirá a sua mulher e os dois serão uma só carne. De modo que não são
mais dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus
uniu.”3. O Catecismo da Igreja Católica traz o comentário de Tertuliano:
“Não existe nenhuma divisão quanto ao espírito, quanto a carne; pelo
contrário,.ali aonde a carne é uma, um também, é o espírito.” (C.E.C., n.
1642). É necessário lembrar que, “carne”, na linguagem bíblica,
refere-se não só ao aspecto material do homem , mas ao homem como pessoa, como um
todo. São Paulo, na carta aos Efésios, refere-se também a esta passagem da
Gênesis (cf. Ef. 5, 31) e a apresenta como o “grande mistério (to
mysterion. mega)” (Ef. 5, 32), no que diz respeito à Cristo e a Igreja. O
“gran de mistério” (o maior dos mistérios, no processo que refere-se
a Escritura), baseia-se no fato que o homem (anthropos: Adão), é o tipo (typos)
do amor de Cristo e da Igreja4.

O
tema que comentamos, encontra a chave no dom, que tem a sua fonte em Deus, da
onde todo dom provêm (cf. Gc 1,17). É o dom recebido na Igreja (“dom da
Igreja”) e por ela, através da Igreja doméstica.

O
consentimento é o elemento indispensável que constitui o matrimonio, é o dom
que os futuros esposos se oferecem reciprocamente numa acolhida livre e
explicita . (C.E.C., n. 1626). Este “ato pelo qual os esposos se dão e se
recebem” (C.E.C., n. 1627) deveria ser expresso na fórmula que todo o
casal deveria saber de memória e exprimir de forma pessoal e significativa.

Poderia
dizer-se que a insistência da Igreja em uma adequada preparação ao matrimônio,
nas diferentes etapas, busca assegurar que o “SIM” dos esposos tenha
toda sua segurança e densidade (cf. C.E:C., n. 1632), já que está na base dos
bens e exigências do amor conjugal. Ali se encontra a chave da felicidade, como
exprime a bênção nupcial do ritual: “que encontrem suas felicidades
doando-se um ao outro”. A celebração liturgica deve expressar tudo que
representa esta recíproca entrega entre os esposos , a Igreja e Deus, com este
amor derramado em seus corações5.

O
dom dos esposos, pontual e permanente, que supõe e exprime uma liberdade
madura, com a forma canônica do sacerdote que recebe o consentimento em nome da
Igreja, “exprime visivelmente a realidade eclesiástica do matrimônio”
(cf. C.E.C., n. 1630, 1631), um compromisso público, com o “vínculo
estabelecido por Deus” (C.E.C., n. 1640), vínculo irrevogável que exige
fidelidade entre os esposos, e a Deus, fiel no que dispõe a Sua sabedoria.
Cristo está presente no coração das liberdades humanas, com a sua potente continuidade,
em um ato renovado quotidianamente, com o qual os esposos são quase
(“veluti”) consagrados, observa a Gaudium et Spes (n. 48).

Os
esposos não podem alcançar suas felicidades e plenitudes fora desta verdade que
enriquece o sentido de suas liberdades. Os esposos entregam-se reciprocamente
em Cristo, que vai em suas direções oferecendo as energias necessárias para
superar as limitações de uma liberdade vulnerável, necessitada, permitindo
assim , aos mesmos, de expressar com sinceridade “eu. recebo você. como esposo(a)
e prometo de ser-te fiel . por todos os dias de minha vida”6. Estas
palavras que acompanham as mãos dos esposos que se cruzam, estão carregadas de
significados e devem advertir aos mesmos sobre os riscos de uma traição do
amor, que o mundo apresenta como um direito ou até mesmo libertação. Assim, a
palavra torna-se inexpressiva e o gesto vazio, insignificante.

2.
DOM E COMPROMISSO

A
família, fundada no matrimônio, comunidade de vida e de amor, (de “toda
vida”, na apresentação do Código do Direito Canônico, can. 1055), tem como
“elemento indispensável” que “constitui o matrimônio” em
uma troca de consentimentos (cf. C.E.C. 1626).

O
consentimento, observa o Catecismo da Igreja Católica, consiste em um “ato
humano com o qual os esposos dão-se e recebem-se mutuamente” (GS 48)
(C.E.C., 1627). Esta doação recíproca faz-se através da palavra como solene
promessa, que vai acompanhada por gestos que evidenciam esta vontade de mútua
entrega. O dom que se oferece, a própria pessoa, assume a categoria do dom, quando
acolhido – completa o Catecismo- “Eu te recebo como esposa” –
“Eu te recebo como esposo”. Este consentimento que une os esposos
entre si, encontra sua plenitude no fato que os dois “vão formar uma só
carne” (C.E.C., n. 1627).

O
consentimento, como expressão deste dom, que constitui o matrimônio, “a
aliança matrimonial” e que constitui uma comunidade para toda vida”
(C.E.C., n. 1601) é um dom de Deus. Nele encontram a fonte e seu autor. Quando
os esposos entregam-se um ao outro, atingem a condição de ser um presente de
Cristo , que doa o homem a mulher e a mulher ao homem. É “uma íntima
comunidade de vida e amor conjugal, fundada pelo Criador. Portanto é o próprio
Deus o autor do matrimônio”(GS 48). No matrimônio, recorda o Concílio
Vaticano II, “O Salvador dos homens e Esposo da Igreja vai ao encontro dos
esposos cristãos”(GS 48).

É
este o projeto da criação pensado pôr Deus no início, que o Senhor santifica
solenemente e eleva à dignidade do sacramento. É Deus que une no matrimônio,
nessa comunidade “estruturada com leis próprias”, como instituído
“estabelecido pela ordenação divina”, que não depende do arbítrio
humano (cf. C.E.C., n. 1603). São bem conhecidas as passagens da teologia
bíblica que mostram, dentro de uma precisa antropologia, como está fundada no
coração humano o chamado à compartilhar, à complementação, à uma acolhida, na
realidade do primeiro casal. Nesta união, cujo autor é Deus, O mesmo
compromete-se e projeta-se no horizonte da Aliança de Deus com a humanidade, de
Cristo com a Igreja. Com particular ênfase escreveu Max Thurian: “Não é um
simples contrato que se relaciona com uma fidelidade recíproca. Deus em pessoa
realiza este mistério de união lhe dá uma segurança contra os perigos da
dissolução. É a característica primordial do matrimônio cristão. O matrimônio é
a união em Deus e de Deus.”7

O
matrimônio cristão tem uma relação direta com a Aliança de Cristo. Neste
sentido o consentimento não é um ato entre dois, mas “triangular” (na
expressão de Carlo Rocchetta), como um “SIM” dito dentro de um
“SIM” de Cristo e à Igreja. O consentimento dos esposos não pode ser
separado da adesão a Cristo. “O tradere se ipsum de Cristo à Igreja, vem
mostrar em profundidade, o tradere se ipsum dos esposos”8. O que Deus uniu
transformando em “uma só carne” o homem não pode submeter aos seus
caprichos nem reivindicar nenhum arbítrio. O matrimônio não é um consenso,
fruto de mutáveis acordos humanos, mas uma instituição que funda suas raízes no
terreno sagrado: a mesma vontade do Criador. Não é um belo presente dos
parlamentos, como resultado de estratégias políticas dos legisladores. O
domínio completo pertence a Deus e é Ele quem vem nesta direção e oferece o
dom. Comenta Joachim Gnilka: “Não separe o homem o que Deus juntou”(MT.
19,6) é compreensível somente, se pode-se partir do pressuposto que Deus é quem
une todos os casais de esposos”9.

O
dom expresso no consentimento “pessoal e irrevogável” que estabelece
a Aliança do matrimônio, põe o selo de qualidade na doação definitiva e total
(cf. C.E.C., n. 2364).

A
doação para formar “uma só carne” é uma oferta pessoal, não
oferecem-se coisas, que articulam-se em palavras-promessas e funda-se no
Senhor. Porque é uma doação pessoal, não entra em jogo , no seu projeto
original, a dialética do possuir, do domínio.. Por isto não é destruição da
pessoa, mas a realização da mesma na dialética do amor, que não vê no outro uma
coisa, um instrumento que se possui, se usa, mas o mistério de uma pessoa em
cujo o rosto delineiam-se os traços da imagem de Deus. Só uma adequada
concepção da “verdade do homem”, da antropologia que defende a
dignidade do homem e da mulher, permite superar plenamente a tentação de tratar
o outro como coisa e de interpretar o amor como uma empresa de sedução. Não é
um amor que degrada, elimina, mas que exalta e realiza. Só assim decifra-se e é
interpreta esta categoria do dom, que libera do egoísmo, de um amor vazio de
conteúdo, que é insuficiente e instrumentaliza, e que liga a união simplesmente
a um divertimento sem responsabilidade, continuidade, como exercício de uma
liberdade que se degrada, alheios à verdade.

Impõe-se,
com toda força a categórica declaração conciliar: “O homem, que é na
terra, a única criatura que Deus quis para si mesmo, não pode encontrar-se
plenamente senão através do dom sincero de si mesmo” (GS 24). Tem,
portanto, a dignidade final, não de instrumento ou de coisa, e na sua qualidade
de pessoa é capaz de dar-se, não somente de dar.

Os
esposos nessa entrega recíproca, na dialética de uma doação total, “formam
uma só carne”, uma unidade de pessoas “communio personarum”, a
partir do próprio ser com a união de corpos e espíritos. Dão-se com a energia
espiritual e de seus próprios corpos na realidade de um amor no qual o sexo é
ao serviço de uma linguagem que exprime esta entrega. O sexo, como recorda a
Exortação Apostólica Familiaris Consortio, é um instrumento e sinal de
recíproca doação: “a sexualidade através da qual o homem e mulher doam-se
um ao outro, com os atos próprios, exclusivos do esposos, não é em absoluto
algo puramente biológico, mas que diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa
humana enquanto tal. Ela realiza-se de maneira verdadeiramente humana, somente
se é parte integral do amor com o qual o homem e a mulher empenham totalmente
um para com o outro” (FC 11).

É
muito difícil abordar toda riqueza que contêm na expressão “uma só
carne”, segundo a linguagem bíblica. Na Carta às Famílias, o Santo Padre
dá um significado mais profundo à luz dos valores da “pessoa” e do
“dom”, como o fará também em relação ao ato conjugal, que está
incluído nesta concepção da Sagrada Escritura. Assim escreve o Papa na Gratissimam
sane: “O Concílio Vaticano II, particularmente atento ao problema do homem
e da sua vocação, afirma que a união conjugal- na expressão bíblica “uma
só carne”- não pode ser compreendida e explicada plenamente senão
recorrendo aos valores da “pessoa” e do “dom”. Cada homem e
cada mulher se realizam plenamente através da entrega sincera de si mesmo; e
para os esposos, o momento da união conjugal constitui uma experiência
particularíssima de elo. É neste momento que o homem e a mulher, com a sua
masculinidade e feminilidade, tornam-se dom recíproco. Toda a vida no
matrimônio é um dom, mas isto torna singularmente evidente quando os cônjuges,
oferecendo-se reciprocamente no amor, realizam aquele encontro que os fazem
“uma só carne” (Gên. 2,24). Eles vivem então um momento de especial
responsabilidade, pelo motivo da potencialidade pro-criativa vinculada ao ato
conjugal. Naquele momento, os esposos podem transformar-se em pais e mães,
iniciando o processo de uma nova existência humana que depois desenvolve-se no
ventre da mulher” (Grat. sane, 12).

Nesta
perspectiva, e comentando o “mistério da feminilidade” na sua Catequese
sobre o amor humano, João Paulo II, observa (em relação à Gênesis 4,1): “O
mistério da feminilidade manifesta-se e revela-se através da maternidade, como
diz o texto: “a qual concebeu e deu a luz”. A mulher está na frente
do homem como mãe, sujeito da nova vida humana que nessa é concebida e desenvolve-se,
e dela nasce ao mundo. Assim também revela-se em profundidade o mistério da
masculinidade do homem, o significado gerador e paterno do seu corpo”. E
na nota sublinha: “A paternidade é um dos aspectos da humanidade mais
sobressalentes na Sagrada Escritura”10. Tornaremos a este tema quando
examinaremos o dom do filho.

À
luz da teologia da doação, o Papa reflete sobre a linguagem do corpo e sobre o
conjunto da sua expressividade e significação do dom pessoal da pessoa humana.
“Como ministros de um sacramento, que constitui-se através do
consentimento e aperfeiçoa-se através da união conjugal, o homem e a mulher são
chamados a exprimir esta misteriosa linguagem dos corpos em toda a verdade que
lhe é própria. Através de gestos e reações, de todo o dinamismo, reciprocamente
condicionado da tensão e do prazer, aonde a direta fonte é o corpo na sua
masculinidade e feminilidade, o corpo na sua ação e interação, e através deste,
o homem “fala”, a pessoa (.). E, exatamente no nível desta
“linguagem do corpo” que é algo além da reação sexual e que como
autêntica linguagem das pessoas, é colocada abaixo da exigência da verdade,
isto é, normas objetivas-, o homem e a mulher exprimem-se reciprocamente de
forma mais completa e profunda enquanto os é consentido pela mesma dimensão
somática da masculinidade e feminilidade: “o homem e a mulher exprimem si
mesmos na medida de toda verdade de suas pessoas”11. Esta relação e
dimensão pessoal, assim expressa, “numa só carne”, é relação com o
próprio Deus, enquanto o casal, como tal, é imagem de Deus. “Podemos
deduzir que o homem se fez a imagem e semelhança de Deus, não somente através
da própria humanidade, mas através da comunhão das pessoas.”12

É
esta verdade que enaltece e dignifica o que deveria ser transmitido no conteúdo
de tal nome, na educação sexual, que mostra a grandeza da sexualidade, na sua
dimensão pessoal, como uma linguagem de amor: doação-aceitação-compromisso, que
não fecha as pessoas em si mesmas, ou em um ciclo fechado de prazer, sem
abertura, mas que se dirige a Deus e adquire novas dimensões de eternidade, ou
seja, que não limita-se à atos fugazes que o tempo cancela ou desgasta, mas que
se eleva até a própria fonte do amor.

Esta
expressão com uma linguagem humana, pessoal, de totalidade, como faz a não marcar
a existência em um significativo profundo compromisso? De nenhuma maneira, até
depois da morte de um dos cônjuges, permanece algo desta relação. Não
discutimos minimamente do direito que tem o viúvo ou viúva de casar-se de novo.
Todavia, levando em consideração certas orações bem significativas da liturgia
oriental, em caso de novas núpcias, naquelas que não têm exatamente palavras de
elogios, mas quase de permissão, tolerância, parece-me que abre-se uma pista de
explicação pelo tipo de relação assumida e que não é exatamente indiferente
para a pessoa que se é inundada do dom.

É
preciso resgatar o sentido da doação, liberá-la, de uma cultura que ameaça a
dignidade do homem e da mulher e que destrui a relação pessoal dos esposos,
como se o processo da entrega não correspondesse à reservas profundas da
personalidade e como se uma ciência, digna de tal nome, não pudesse ajudar a
verdade do homem.

Não
é o momento de introduzirmo-nos em considerações que o nosso Secretariado fez
no Documento que tem o título, onde apresenta o seu conteúdo central: “Sexualidade
Humana: Verdade e Significado”. Esta perspectiva é também reconhecida
fundamentalmente pelas conquistas da razão, pelo desenvolvimento de uma ciência
que aproxima-se realmente ao ser do homem. Uma projeção que supera o egoísmo e
considera o outro, é altruísta, não é estranha ao pensamento de Freud. Hoje
pode-se denunciar uma tal banalização do sexo que detêm-se em estados e etapas
prévias nos quais o egoísmo fecha e isola com a modalidade de uma imaturidade
que destrui a linguagem do amor, a verdade, e procura sua vítima no próprio
homem e mulher.

Muitas
vezes os protagonistas aproximam-se do matrimônio com uma personalidade
severamente perturbada por uma cultura falsa que é como uma bomba para o
próprio matrimônio. O fato é que a linguagem sexual, como comportamento
harmônico e articulado, que está no início da verdade, não deve reduzir-se
somente ao aspecto biológico, é às vezes traduzido por escritores da qualidade
de Marguerite Yourcenar nas suas “Memórias de Adriano”. Permitam-me
de recordar algumas das suas expressões que, parecem-me ilustram a verdade que
o magistério quer transmitir. A linguagem dos gestos, dos contatos, passa na
periferia do nosso universo ao seu centro e torna-se mais indispensável que nós
mesmos, e aparece o prodígio maravilhoso, no qual vejo mais uma assunção da
carne pelo espírito que um simples jogo da carne, em uma espécie de mistério da
dignidade do outro que consiste em oferecer-me nesse ponto de apoio do outro
mundo.13 Existe então uma intuição, não exclusiva do universo da fé, que
restitui ao sexo a sua grandeza e o resgata do vazio de um uso instrumental que
na cultura do consumismo se parece muito ao desprezável: usa-se e joga-se fora!
É a globalização da pessoa que está em jogo, na qual seus atos não são
exteriores, quase se pudesse atribuir a outro, numa forma de
“irresponsabilidade” básica e infantil. O homem que sente-se incapaz
e inseguro de responder pelos seus atos, que assume o tom de jogos provocados
por um ser sonolento.

Retornamos
a um pensamento de M. Yourcenar que bem transmite uma impressão ética: “Eu
não sou daqueles que dizem que suas ações não lhes assemelha. Devem
assemelhar-se, porque as ações são a única medida e o único meio de fixar-me na
memória dos homens ou na minha mesma. Não existe entre eu e os atos por mim
feitos, um hiato indefinível, e a prova, é que eu provo uma continua
necessidade de avaliar-lhes, explicar-lhes, e dar conta a mim mesmo”14.Na
linguagem sexual o homem exprime-se, de certa forma desenha-se, modela-se e
traça o seu destino. O dom, a verdade do mesmo e o seu sentido, adquirem uma
estatura e proporção digna do homem. Por isto a Familiaris Consortio sublinha
este valor sem o qual o sexo se esvazia, perde sua verdade, até transformar-se
em caricaturas e deformações que ferem e desfiguram o que deve brilhar no
mistério de uma carne: “o amor conjugal comporta uma totalidade aonde
entram todos os elementos da pessoa- chamado do corpo e do instinto, força do
sentimento e da afetividade, aspiração do espírito e da vontade-; o amor
conjugal dirige-se a uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além
da união numa só carne, não conduz senão a um só coração e a uma só alma
“(F.C. 13).

O
consentimento, o dom recíproco, (recordado antes) é “pessoal e
irrevogável”; a doação é “definitiva e total”. Seu local nobre,
próprio, único é o matrimônio. Neste a doação é verdade!

Poderíamos
dizer que o definitivo é uma qualidade da totalidade da doação. É a superação
de uma entrega parcial, a pedaços, por “cômodas quotas” que são
homenagens ao egoísmo, ao amor ofuscado por uma realidade do pecado. Um amor
assim, perde profundidade, espontaneidade e poesia. Entre os noivos é outra a
tonalidade. O amor que se promete, tem ânsia de durabilidade, de “eternidade”
ou no fundo não existe. A doação é para toda vida e para todas as
circunstâncias. Assegura contra o provisório, o desgaste, a mentira. O que
dizer de quem, como um novo passo de “pluralismo” e atitude
condescendente no campo jurídico, propõe-se de introduzir legislações de
matrimônios ad tempus, de comunhões temporâneas? “Afirmar que o amor é
elemento constitutivo do matrimônio é dizer que se não existir aquela mútua
entrega irrevogável, não existirá entre os esposos o “foedus coinugale”.
As leis, portanto, de unidade e indissolubilidade não são exigências
intrínsecas do matrimônio, mas nascem da sua própria essência. E assim, o amor
constituinte deve ser o amor conjugal, exclusivo e indissolúvel”15.

O
matrimônio dá a garantia da estabilidade, da perseverança, da perpetuidade.
Poderíamos dizer que o dom recíproco, “que liga mais forte e profundamente
tudo que pode ser adquirido a qualquer preço” (Grat. sane, n. 11),
exprime-se numa palavra de compromisso. A. Quilici observa: “um não se doa
verdadeiramente enquanto não dá em primeiro lugar e na verdade, a sua palavra.
Se não, isto pode parecer uma violação. O dom do corpo não é verdadeiramente
humano senão na medida em que cada um dá o seu consentimento, a sua permissão
para ir além no diálogo, até intimidade”.16 É uma palavra expressiva, que
permanece e compromete profundamente os esposos, de tal maneira que uma doação
limitada voluntariamente no tempo faz perder a própria qualidade de um dom
total. A palavra exprime um sim profundo que surge da raiz de um amor que quer
ser fiel por todo tempo. Assim caracteriza o Cardeal Ratzinger este
“Sim”. “O homem, na sua totalidade, inclui a dimensão temporal.
Além disso, o “Sim” de um ser humano supera o conceito do tempo. Na
sua integridade, o “sim” significa: sempre. Este constitui o espaço
da fidelidade. a liberdade do “sim” faz-se sentir como uma liberdade
defronte ao definitivo”.17 O amor18 não é necessariamente sujeito à
degradação do tempo, como as coisas que se desgastam e perdem pouco a pouco
suas energias. Não cai na órbita da lei da entropia. O tempo pode ajudar o
crescimento, o amadurecimento diante de Deus, a fazer do amor um compromisso
mais sério e profundo. Escutei , em Cana uma interessante promessa e expressão
de esposos com idades avançadas: “te amo mais do que ontem porém, menos do
que amanhã”. A alegria da serenidade, de um testemunho que possui a
sabedoria dos anos, descobre-se em tantos matrimônios de pessoas anciãs nas
quais conservam a fresqueza e a ternura confirmadas no tempo.

Em
virtude da doação total compreende-se melhor a exigência da indissolubilidade
que libera e protege o amor e que não é uma prisão ou empobrecimento. É falso
que o matrimônio é a tumba do amor e que o definitivo, a sua indissolubilidade,
prive o amor da sua espontaneidade e do seu dinamismo. Isto leva sem dúvida, a
uma cultura da precariedade, na qual a palavra se esvazia e é portanto
superficial até a irresponsabilidade. Não tolera o peso da verdade que não é
caprichosa e mutável como o faz um falso amor que engana. “A possível
ausência ou debilitação de fato nas manifestações do amor conjugal não destroem
as propriedades e a tendência natural, mesmo se podem obstaculizar, pois umas e
outras reclamarão sempre de serem vivificadas pelo amor conjugal.”19

A
doação total comporta o dever da fidelidade. É uma forma concreta de dom, que
empenha e libera. Um amor fiel é também radicalmente indissolúvel. Libera do
temor de trair e ser traído e fornece à fonte da vida, a garantia e a
transparência que têm direito os filhos.

Antonio
Miralles escreve; “A doação mútua pessoal também exige aos cônjuges a
indissolubilidade do vínculo recíproco que estes estabeleceram com tal doação.
Ela é total e portanto exclui toda provisoriedade, toda doação temporânea. (.)
O vínculo conjugal apresenta um caráter definitivo, enquanto surge de uma
doação integral que compreende também a temporalidade da pessoa. O doar-se com
a reserva de poder desvincular no futuro, significaria que a doação não é
total, mas o contrário daquela que faz nascer um verdadeiro matrimônio”.20

É
necessário dizer, que a fidelidade, a indissolubilidade, o caráter definitivo,
são essenciais à qualidade do dom. Aqui enraíza-se o compromisso, a
obrigatoriedade do dom, empenho que abre-se, também, essencialmente ao dom da
vida e que transforma-se em testemunho público na Igreja e na sociedade. É luz.
Chama posta sobre a vela.

São
João Crisóstomo, comenta maravilhosamente o estilo desta doação dando este
conselho ao casal: “Te tomei em meus braços, te amo e te prefiro à minha
vida. Já que a vida presente não é nada, o meu desejo mais ardente é vive-la
contigo de tal forma que estaremos seguros de não ser separados na vida que nos
foi reservada.Ponho o teu amor acima de tudo.”21 A duração, o caráter
definitivo da doação conduz, a favor da sua totalidade, à indissolubilidade que
é atribuída ao matrimônio natural e que assume uma dimensão mais profunda e
expressiva no matrimônio cristão, diante e sobre o olhar do Senhor.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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