Exortação Apostólica Familiaris Consortio – Papa João Paulo II (Parte 6)

A sociedade ao serviço da
família

45. A íntima conexão entre a família e a sociedade, como
exige a abertura e a participação da família na sociedade e no seu
desenvolvimento, impõe também que a sociedade não abandone o seu dever
fundamental de respeitar e de promover a família.

A família e a sociedade têm
certamente uma função complementar na defesa e na promoção do bem de todos
homens e de cada homem. Mas a sociedade, e mais especificamente o Estado, devem
reconhecer que a família é «uma sociedade que goza de direito próprio e
primordial» e portanto nas suas relações com a família são gravemente obrigados
ao respeito do princípio de subsidiariedade.

Por força de tal princípio o
Estado não pode nem deve subtrair às famílias tarefas que elas podem igualmente
desenvolver perfeitamente sós ou livremente associadas, mas favorecer
positivamente e solicitar o mais possível a iniciativa responsável das
famílias. Convencidas de que o bem da família constitui um valor indispensável
e irrenunciável da comunidade civil, as autoridades públicas devem fazer o
possível por assegurar às famílias todas aquelas ajudas – económicas, sociais,
educativas, políticas, culturais de que têm necessidade para fazer frente de
modo humano a todas as suas responsabilidades.

A carta dos direitos da
família

46. O ideal de uma acção
recíproca de auxílio e de desenvolvimento entre a família e a sociedade
encontra-se muitas vezes, e em termos bastante graves, com a realidade de uma
separação, mais que de uma contraposição.

Com efeito, como
continuamente denunciou o Sínodo, a situação que numerosas famílias encontram
em diversos países é muito problemática, e até decididamente negativa:
instituições e leis que desconhecem injustamente os direitos invioláveis da
família e da mesma pessoa humana, e a sociedade, longe de se colocar ao serviço
da família, agride-a com violência nos seus valores e nas suas exigências
fundamentais. Assim a família que, segundo o desígno de Deus, é a célula base
da sociedade, sujeito de direitos e deveres antes do Estado e de qualquer outra
comunidade, encontra-se como vítima da sociedade, dos atrasos e da lentidão das
suas intervenções e ainda mais das suas patentes injustiças.

Por tudo isto a Igreja
defende aberta e fortemente os direitos da família contra as intoleráveis
usurpações da sociedade e do Estado. De modo particular, os Padres Sinodais
recordam, entre outros, os seguintes direitos da família:

o direito de existir e
progredir como família, isto é o direito de cada homem, mesmo o pobre, a fundar
uma família e a ter os meios adequados para a sustentar;

o direito de exercer as suas
responsabilidades no âmbito de transmitir a vida e de educar os filhos;

o direito à intimidade da
vida conjugal e familiar;

o direito à estabilidade do
vínculo e da instituição matrimonial;

o direito de crer e de
professar a própria fé, e de a difundir;

o direito de educar os
filhos segundo as próprias tradições e valores religiosos e culturais, com os
instrumentos, os meios e as instituições necessárias;

o direito de obter a
segurança física, social, política, económica, especialmente tratando-se de
pobres e de enfermos;

o direito de ter uma
habitação digna a conduzir convenientemente a vida familiar;

o direito de expressão e
representação diante das autoridades públicas económicas, sociais e culturais e
outras inferiores, quer directamente quer através de associações;

o direito de criar
associações com outras famílias e instituições, para um desempenho de modo
adequado e solícito do próprio dever;

o direito de proteger os
menores de medicamentos prejudiciais, da pornografia, do alcoolismo, etc
mediante instituições e legislações adequadas;

o direito à distracção
honesta que favoreça também os valores da família;

o direito das pessoas de
idade a viver e morrer dignamente;

o direito de emigrar como
família para encontrar vida melhor

A Santa Sé, acolhendo o
pedido explícito do Sínodo, terá o cuidado de aprofundar tais sugestões,
elaborando uma «Carta dos direitos da família» a propor aos ambientes e às Autoridades
interessadas.

Graça e responsabilidade da
família cristã

47. O dever social próprio
de cada família diz respeito, por um título novo e original, à família cristã,
fundada sobre o sacramento do matrimónio. Assumindo a realidade humana do amor
conjugal com todas as suas consequências, o sacramento habilita e empenha os
cônjuges e os pais cristãos a viver a sua vocação de leigos, e por tanto a
«procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as
segundo Deus».

O dever social e político
reentra naquela missão real ou de serviço da qual os esposos cristãos
participam pela força do sacramento do matrimónio, recebendo ao mesmo tempo um
mandamento ao qual não podern subtrair-se e uma graça que os sustenta e
estimula.

Em tal modo a família cristã
é chamada a oferecer a todos o testemunho de uma dedicação generosa e
desinteressada pelos problemas sociais, mediante a «opção preferencial» pelos
pobres e marginalizados. Por isso, progredindo no caminho do Senhor mediante
uma predilecção especial para com todos os pobres, deve cuidar especialmente
dos esfomeados, dos indigentes, dos anciãos, dos doentes, dos drogados, dos sem
família.

Para uma nova ordem
internacional

48. Diante da dimensão
mundial que hoje caracteriza os vários problemas sociais, a família vê
alargar-se de modo completamente novo o seu dever para com o desenvolvimento da
sociedade: trata-se também de uma cooperação para uma nova ordem internacional,
porque só na solidariedade mundial se podem enfrentar e resolver os enormes e
dramáticos problemas da justiça no mundo, da liberdade dos povos, da paz da
humanidade.

A comunhão espiritual das
famílias cristãs, radicadas na fé e esperança comuns e vivificadas pela
caridade, constitui uma energia interior que dá origem, difunde e desenvolve
justiça, reconciliação, fraternidade e paz entre os homens. Como «pequena
Igreja», a família cristã é chamada, à semelhança da «grande Igreja» a ser
sinal de unidade para o mundo e a exercer deste modo o seu papel profético,
testemunhando o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha.

As famílias cristãs poderão
fazê-lo quer através da sua obra educativa, oferecendo aos filhos um modelo de
vida fundada sobre os valores da verdade, da liberdade, da justiça e do amor,
quer com um empenho activo e responsável no crescimento autenticamente humano
da sociedade e das suas instituições, quer mantendo de vários modos associações
que especificamente se dedicam aos problemas de ordem internacional.

IV – A PARTICIPAÇÃO NA VIDA
E NA MISSÃO DA IGREJA

A família no mistério da
Igreja

49. Entre os deveres
fundamentais da família cristã estabelece-se o dever eclesial: colocar-se ao
serviço da edificação do Reino de Deus na história, mediante a participação na
vida e na missão da Igreja.

Para melhor compreender os
fundamentos, os conteúdos e as características de tal participação, ocorre
aprofundar os vínculos múltiplos e profundos que ligam entre si a Igreja e a
família cristã, e constituem esta última como «uma Igreja em miniatura»
(Ecclesia domestica), fazendo com que esta, a seu modo, seja imagem viva e
representação histórica do próprio mistério da Igreja.

É antes de tudo a Igreja Mãe
que gera, educa, edifica a família cristã, operando em seu favor a missão de
salvação que recebeu do Senhor. Com o anúncio da Palavra de Deus, a Igreja
revela à família cristã a sua verdadeira identidade, o que ela é e deve ser
segundo o desígnio do Senhor; com a celébração dos sacramentos, a Igreja
enriquece e corrobora a família cristã com a graça de Cristo em ordem à sua
santificação para a glória do Pai; com a renovada proclamação do mandamento
novo da caridade, a Igreja anima e guia a família cristã ao serviço do amor, a
fim de que imite e reviva o mesmo amor de doação e sacrifício, que o Senhor
Jesus nutre pela humanidade inteira.

Por sua vez a família cristã
está inserida a tal ponto no mistério da Igreja que se torna participante, a
seu modo, da missão de salvacão própria da Igreja: os cônjuges e os pais
cristãos, em virtude do sacramento, «têm assim, no seu estado de vida e na sua
ordem, um dom próprio no Povo de Deus». Por isso não só «recebem» o amor de
Cristo tornando-se comunidade «salva», mas também são chamados a «transmitir»
aos irmãos o mesmo amor de Cristo, tornando-se assim comunidade «salvadora».
Deste modo, enquanto é fruto e sinal da fecundidade sobrenatural da Igreja, a
família cristã torna-se símbolo, testemunho, participação da maternidade da
Igreja.

Uma função eclesial própria
e original

50. A família cristã é chamada a tomar parte viva e
responsável na missão da Igreja de modo próprio e original, colocando-se ao
serviço da Igreja e da sociedade no seu ser e agir, enquanto comunidade íntima
de vida e de amor.

Se a família cristã é
comunidade, cujos vínculos são renovados por Cristo mediante a fé e os
sacramentos, a sua participação na missão da Igreja deve dar-se segundo uma
modalidade comunitária: conjuntamente, portanto, os cônjuges enquanto casal, os
pais e os filhos enquanto família, devem viver o seu serviço à Igreja e ao
mundo. Devem ser na fé «um só coração e uma só alma», através do espírito
apostólico comum que os anima e mediante a colaboração que os empenha nas obras
de serviço à comunidade eclesial e civil.

A família cristã, pois,
edifica o Reino de Deus na história mediante aquelas mesmas realidades
quotidianas que dizem respeito e contradistinguem a sua condição de vida: é
então no amor conjugal e familiar – vivido na sua extraordinária riqueza de
valores e exigências de totalidade, unicidade, fidelidade e fecundidade – que
se exprime e se realiza a participação da família cristã na missão profética,
sacerdotal e real de Jesus Cristo e da sua Igreja: o amor e a vida constituem
portanto o núcleo da missão salvífica da família cristã na Igreja e pela Igreja

O Concílio Vaticano II
recorda-o quando escreve: «Cada família comunicará generosamente com as outras
as próprias riquezas espirituais. Por isso, a família cristã, nascida de um
matrimónio que é imagem e participação da aliança de amor entre Cristo e a
Igreja, manifestará a todos a presença viva do Salvador no mundo e a autêntica
natureza da Igreja, quer por meio do amor dos esposos, quer pela sua generosa
fecundidade, unidade e fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus
membros».

Posto assim o fundamento da
participação da família cristã na missão eclesial, é agora o momento de
ilustrar o seu conteúdo na tríplice e unitária referencia a Jesus Cristo
Profeta, Sacerdote e Rei, apresentando por isso a família cristã como 1)
comunidade crente e evangelizadora, 2) comunidade em diálogo com Deus, 3)
comunidade ao serviço do homem.

A Família cristã, comunidade
crente e evangelizadora

A fé, descoberta e admiração
do desígnio de Deus sobre a família

51. Partícipe da vida e da
missão da Igreja, que está em religiosa escuta da Palavra de Deus e a proclama
com firme confiança, a família cristã vive a sua tarefa profética acolhendo e
anunciando a Palavra de Deus: torna-se assim, cada dia mais comunidade crente e
evangelizadora.

Também aos esposos e aos pais
cristãos é pedida a obediência da fé: são chamados a acolher a Palavra do
Senhor, que a eles revela a extraordinária novidade – a Boa Nova – da sua vida
conjugal e familiar, feita por Cristo santa e santificante. De facto, somente
na fé eles podem descobrir e admirar com jubilosa gratidão a que dignidade Deus
quis elevar o matrimónio e a família, constituindo-os sinal e lugar da aliança
de amor entre Deus e os homens, entre Jesus Cristo e a Igreja sua esposa.

A preparação para o
matrimónio cristão é já qualificada como um itinerário de fé: põe-se, de facto,
como ocasião privilegiada para que os noivos descubram e aprofundem a fé
recebida no baptismo e alimentada com a educação cristã. Desta forma reconhecem
e acolhem livremente a vocação de seguir o caminho de Cristo e de se pôr ao
serviço do Reino de Deus no estado matrimonial.

O momento fundamental da fé
dos esposos é dado pela celebração do sacramento do matrimónio, que na sua
natureza profunda é a proclamação, na Igreja, da Boa-Nova sobre o amor conjugal:
é Palavra de Deus que «revela» e «cumpre» o sábio e amoroso projecto que Deus
tem sobre os esposos, introduzidos na misteriosa e real participação do próprio
amor de Deus pela humanidade. Se em si mesma a celebração sacramental do
matrimónio é proclamação da Palavra de Deus, enquanto os noivos são a título
vário protagonistas e celebrantes, deve ser uma «profissão de fé» feita dentro
da Igreja e com a Igreja comunidade dos crentes.

Esta profissão de fé exige o
seu prolongamento no decurso da vida dos esposos e da família: Deus, que de
facto, chamou os esposos «ao» matrimónio, continua a chamá-los «no» martimónio.
Dentro e através dos factos, dos problemas, das dificuldades, dos
acontecimentos da existência de todos os dias, Deus vai-lhes revelando e propondo
as «exigências» concretas da sua participação no amor de Cristo pela Igreja em
relação com a situação particular – familiar, social e eclesial – na qual se
encontram.

A descoberta e a obediência
ao desígnio de Deus devem fazer-se «conjuntamente» pela comunidade conjugal e
familiar, através da mesma experiência humana do amor vivido do Espírito de
Cristo entre os esposos, entre os pais e os filhos

Por isto, como a grande
Igreja, assim também a pequena Igreja doméstica tem necessidade de ser contínua
e intensamente evangelizada: daqui o seu dever de educação permanente na fé.

O ministério de
evangelização da família cristã

52. Na medida em que a
família cristã acolhe o Evangelho e amadurece na fé torna-se comunidade
evangelizadora. Escutemos de novo Paulo VI: «A família, como a Igreja, deve ser
um lugar onde se transmite o Evangelho e donde o Evangelho irradia. Portanto no
interior de uma família consciente desta missão, todos os componentes
evangelizam e são evangelizados. Os pais não só comunicam aos filhos o
Evangelho, mas podem também receber deles o mesmo Evangelho profundamente
vivido. Uma tal família torna-se, então, evangelizadora de muitas outras
famílias e do ambiente no qual está inserida»,

Como repetiu o Sínodo,
retomando o meu apelo lançado em Puebla, a futura evangelização depende em
grande parte da Igreja doméstica. Esta missão apostólica da família tem as suas
raízes no baptismo e recebe da graça sacramental do matrimónio uma nova força
para transmitir a fé, para santificar e transformar a sociedade actual segundo
o desígnio de Deus.

A família cristã, sobretudo
hoje, tem uma especial vocação para ser testemunha da aliança pascal de Cristo,
mediante a irradiação constante da alegria do amor e da certeza da esperança,
da qual deve tornar-se reflexo: «A família cristã proclama em alta voz as
virtudes presentes do Reino de Deus e a esperança na vida bem-aventurada»,

A absoluta necessidade da
catequese familiar surge com singular vigor em determinadas situações que
infelizmente a Igreja experimenta em diversos lugares: «Onde uma legislação
anti-religiosa pretende impedir até a educação na fé, onde uma incredulidade
difundida ou um secularismo invasor tornam praticamente impossível um
verdadeiro crescimento religioso, aquela que poderia ser chamada “Igreja
doméstica” fica como único ambiente, no qual crianças e jovens podem
receber uma autêntica catequese».

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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