Existe saída? Para uma Pastoral dos Divorciados – EB (Parte 1)

por
Bernhard Hãring

Em síntese:
O Pe. Hãring deseja acudir aos casais infelizes em seu matrimônio,
facilitando-lhes segundas núpcias. Para tanto, apela para o princípio da
oikonomia ou da dispensação misericordiosa da graça divina vigente entre os
cristãos orientais. Conforme o autor; a Igreja, seguindo o exemplo dos
ortodoxos, deveria conceder novo casamento aos cônjuges que tivessem a
convicção de que o seu casamento foi nulo, embora isto não possa ser provado
objetivamente ou no foro externo e jurídico: os pastores de almas estariam
habilitados a abençoar sacramentalmente essas novas núpcias, mesmo à revelia da
legislação oficial da Igreja.

Ora tal
tese é inaceitável, porque o Senhor Jesus afirma que novas núpcias de pessoas
validamente casadas são adultério: ct: Mc 10,11s;

Lc 16,18;
Mt 5,32; 19,9 e também 1 Cor 7,11. E, para que conste que um casamento
contraído na Igreja não foi válido, é preciso que haja provas evidentes e objetivas;
não basta a convicção subjetiva dos interessados, que facilmente se podem
enganar. Quem admite nova união conjugal sem ter certeza de que a primeira foi
nula, admite a possibilidade de se cometer adultério. Ora praticar um ato cuja
identidade não é clara e que pode ser pecaminoso, já é ação pecaminosa. Com
outras palavras; admitir um matrimônio que possa ser adultério, é aceitar o
adultério hipotético; da mesma forma, ministrar a um enfermo um remédio que
possa ser contra-indicação, é ato culposo, pois quem o faz admite a
possibilidade de estar lesando a saúde ou a vida do próximo.

O livro do
Pe. Hãring pode ter sido inspirado por ótima intenção, mas incita à desordem,
ao subjetivismo e à burla de leis, sem as quais o bem comum já não é possível.

A Igreja
dedica atenção aos divorciados, como bem demonstra a Exortação Apostólica
familiar Consortio; se contraíram novas 
núpcias, não podem receber os sacramentos, mas freqüentem a S. Missa e
rezem por si e pelos seus, pois o Senhor não os abandona.

***

O Pe.
Bernhard HBring, famoso moralista, publicou um livro traduzido para o português
com o título “Existe Saída? Para uma Pastoral dos Divorciados”. ‘
Propõe ideias inovadoras, que “fazem parte de sua preparação imediata para
a morte, com a firme confiança na promessa do Senhor: ‘Bem-aventurados os
misericordiosos porque alcançarão misericórdia’ (Mt 5,7)”.

O livro tem
chamado a atenção do público em geral, pois trata de assunto delicado e
candente. Eis por que exporemos o seu conteúdo, ao qual se seguirão alguns
comentários.

1. O LIVRO
E SUA TESE

O Pe.
HBring está impressionado com o grande número de casais infelizes em nossos
dias. Não podendo levar vida conjugal, separam-se e desejam contrair novas
núpcias. Esbarram, porém, com a legislação da Igreja, que não reconhece
divórcio e direito a novo casamento, se o primeiro matrimônio foi contraído
validamente e consumado. Desejando atender a tais situações, o Pe. HBring
apoia-se no princípio de que Deus é misericordioso para com os infelizes. A luz
desta premissa, propõe a seguinte tese:

Estamos na
época do ecumenismo. É, portanto, oportuno que os católicos considerem a
mentalidade e a prática pastoral dos cristãos não católicos, para aprender
deles o que seja conveniente; cf. pp. 38-40. 54…2 Ora os orientais ortodoxos
instituem sua praxe pastoral sobre a base da oikonomfa, palavra grega que em
Teologia significa “dispensação misericordiosa da graça divina”. Eis
como HBring define a oikonomía professada pelos cristãos orientais.

_____________________

1 Tradução
de Gabriel Galache S.J. e Marcos Marcionilo. – Ed. Loyola, São Paulo 1990, 140
x 210 mm,
100 pp.

2
“Nesses tempos de ecumenismo, a Igreja ocidental pode aprender; nesses
problemas e em outros similares, com o exemplo da espiritualidade e da praxis
das Igrejas ortodoxas, o que melhor serve à sua missão pastoral no mundo de
hoje ou em amplos setores da Igreja Gat6lica, para mostrar-se leal ao Pai de
fam/1ía que, tirando do seu tesouro divino de sabedoria, quer combinar as
coisas antigas com as novas” (p. 45).

“Oikonomra
significa todo o projeto salvifico de Deus, como bom pai de família que é, e
designa uma espiritualidade que se caracteriza pelo louvor ao ‘administrador’ ,
misericordiosíssimo da Igreja; é caracterizada também pela fé no Bom Pastor
que conhece e chama pelo nome cada uma das suas ovelhas e, quando necessário,
abandona no redil as 99 que estão a salvo e se põe a caminho para ir; solícito
e amoroso, atrás da ovelha perdida” (pp. 42s).

Quem adota
o princípio da oikonomra, prestará à Igreja uma obediência não inerme, mas
criativa (cf. p. 57).

Essa
criatividade compreende, entre outras coisas, o conceito de epiqueia. Este
conceito, de origem grega e jurídica, utilizado pela teologia oriental, é
propugnado por Bernhard Hãring, que o entende do seguinte modo:

“A
epiqueia é uma dimensão eminente da virtude da prudência para tomar uma
decisão, quando há colisão entre valores, leis e deveres (…). Santo Afonso de
Ligório, patrono dos moralistas, ensina de maneira inequívoca:

Epiquéia
significa a exceção de um caso, quando numa situação dada se pode julgar com
segurança, ou ao menos com grande probabilidade, que o legislador n§o teve a
intenção de o incluir na lei” (p.78).

Com outras
palavras: quando uma lei se torna muito onerosa para determinada pessoa, a
autoridade responsável pode declarar tal súdito dispensado de cumprir a lei.
Aplicando isto à doutrina do matrimônio, diz B. Hãring: quando um casamento
“morreu” por falta de amor dos cônjuges ou de um deles e a vida una se
torna muito penosa para os interessados, é-Ihes lícito contrair segundas
núpcias desde que possam criar em si a convicção subjetiva de que a primeira
união nupcial não foi válida. O segundo casamento será não somente civil, mas
poderá ser também religioso, diz Hãring.

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1)
Olkonomla, em grego, quer dizer administração da casa ou simplesmente
administração. Donde se segue que o olkónomos é o administrador. Conforme esta
Imagem, toda a história da salvação é comparada à administração dos dons de
Deus, que vem a ser o administrador da graça.

Em
consequência, continua o autor, a Igreja tem que abrir mão da sua prudência
tuciorista. Tuciorismo1 vem a ser o sistema que opta sempre pelas sentenças de
Moral mais seguras ou menos sujeitas a engano ou erro. Assim, por exemplo, o
tuciorismo não declara nulo um casamento enquanto não haja plena evidência de
que foi nulo. Com outras palavras;

enquanto há
razões que permitem supor a legitimidade de um casamento, este é tido como legítimo;
é preciso provar que tais razões tênues são inconsistentes. Ora HBring crítica
o tucionismo na praxe matrimonial da Igreja:

“Por
trás desse tucionismo – deste querer proceder com segurança absoluta –
esconde-se o medo de um possível pecado contra a sacramentalidade do matrimônio
ao tolerar um segundo casamento. E assim se chega à aplicação de um tuciorismo
lega lista precisamente num terreno tão sensível e doloroso. Neste caso se está
esquecendo o axioma – incontrovertível – de que ‘os sacramentos são para o
homem’. E se esquece do mesmo modo o principio fundamental,  mais claro ainda, de que as leis são para o
homem e não o homem para determinadas leis de obrigatoriedade muito
duvidosa” (p. 65). ,

Ainda em
outros termos: para que a Igreja reconheça a nulidade de um casamento, basta a
certeza subjetiva dos cônjuges (ou, ao menos, um juízo altamente provável) de
que o matrimônio foi inválido; basta, pois, uma apreciação pessoal, sem
necessidade de provas objetivas (testemunhos fidedignos, documentos escritos,
exames médicos…):

“A
questão da epiquéia se põe antes de tudo quando os interessados, depois de
adequada reflexão do pastor; estão convictos de que o primeiro matrimônio era
inválido desde o começo. Neste caso, por força da virtude da epiquéia, os
interessados estão autorizados, em principio, a contrair um segundo matrimônio.
E, em minha opinião, também o pastor pode proceder discretamente à cerimônia
matrimonial” (p. 82).

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1 A palavra vem de tutus, seguro,
certo; donde se faz o comparativo tutior (= mais seguro); o sistema respectivo
é o tuciorismo.

Chega-se
assim ao ponto culminante da tese de Hãring: quando dois cônjuges julgam com
elevada probabilidade que não estão validamente casados, estão habilitados a
contrair cada qual nova união matrimonial; o sacerdote poderá dar-lhe valor de
sacramento, como fazem os cristãos orientais ortodoxos ou cismáticos. Assim se
reproduziria entre os católicos latinos o que se dá entre os orientais
separados, que têm um ritual oficial para ministrar o sacramento do matrimônio
aos divorciados. Todavia a esta altura da sua explanação pergunta Hãring:

“É
preciso inscrevê-los no livro de registros de casamentos ou basta consignar a
cerimônia no fórum internum (no foro interno da consciência)?” (p. 82).

E responde:

Nos casos
em que o Ordinário do lugar não quer proceder à aplicação da epiquéia e
tampouco está inclinado a tolerá-la, há três possíveis modos de agir a
respeito:

“Primeiro:
o pastor do lugar assume um certo risco, disposto tanto a dar contas do assunto
como a suportar cristãmente as conseqüências desagradáveis que possam advir”.

Segundo:
ele informa aos parceiros que querem se casal; de que em tal situação podem
proceder de acordo com a forma canônica da benção nupcial para casos de
necessidade, ou seja, em presença de duas testemunhas, porque simplesmente não
se dispõe de um sacerdote autorizado.

Terceiro: o
casal, depois de se aconselhar com o confessor e o orientador espiritual,
celebre seu matrimonio civil como forma substitutiva da benção nupcial para os
casos de necessidade em que não se dispõe de um sacerdote autorizado para a
celebração do matrimonio canônico, confiando em que, com a graça de Deus,
poderão viver o seu segundo matrimônio de maneira a se aproximarem o mais
possfvel do ideal do matrimônio cristo.

Concordando
com a opinião de não poucos moralistas, sou do parecer de que se pode aplicar
um desses três modelos segundo as circunstâncias, quando a decisão do tribunal
eclesiástico é adiada durante anos, já foi adiada ou, com toda probabilidade,
se fará esperar;

sempre
supondo que os interessados estejam convictos da invalidade de seu primeiro
matrimônio (‘com alta probabilidade” (pp. 82s).

Como se vê,
a tese de Hãring, embora procure guardar fidelidade à Igreja e à Tradição,
burla por completo a autoridade da Igreja e redunda em subjetivismo total;
solapa as normas objetivas da Igreja e dá ocasião 8 que cada cristão faça o seu
Cristianismo de acordo com o seu modo de ver pessoal, apoiado numa concepção
flexível e bonachã de “misericórdia divina”.

Eis ainda
uma passagem significativa do pensamento de Hãring:

“No
caso do acompanhamento psicoterapéutico dos divorciados que voltaram a casar ou
que estão pensando em contrair um segundo matrim6nio, ater-nos-emos a uma idéia
fundamental de Viktor Frankl e de outros psicoterapeutas: em vez de impor às
pessoas, sem mais nem menos, uma norma, como por exemplo a norma que responde à
nossa consciência ou que é simplesmente uma norma geral da Igreja, auscultaremos
pacientemente como nosso interlocutor busca por si o caminho para o mais Intimo
de sua consciência e quais são os seus motivos e razões.

Quando
escutamos com uma consciência desperta (consciêntia como conhecimento
existencial de experiência em união com outros) e examinamos cuidadosamente
todas as possibilidades, ajudamos nosso interlocutor em sua busca honrada e
sincera de mais luz. Nossa ‘palavra’, nossos gestos, nosso rosto tem de
comunicar alento e não expressar nenhum tipo de reprovação ou desgosto. A nossa
tem de ser sempre uma palavra daquele amor que é simplesmente a verdade”
(p. 60).

B. Hãring
considera, no final do seu livro, o caso de dois cônjuges que vivam sob o mesmo
te to (pois talvez precisem um do outro como amigos), mas não têm relações
conjugais. – A Santa Sé permite que recebam os sacramentos, caso se conservem
“como irmão e irmã” e frequentem uma igreja em que não sejam
conhecidos. Ora Hãring tenta convencer o leitor de que a Igreja não faz mais
caso da cláusula “viver como irmão e irmã”, mas aceita que vivam
conjugalmente e recebam os sacramentos; cf. pp. 88-90. É, porém, evidente que
tal cláusula subsiste como é expressa na Exortação Apostólica Familiaris
Consortio n° 84:

“A Igreja
reafirma a praxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão
eucarística os divorciados que contraíram nova união”.

Não podem
ser admitidos, do momento em que o seu estado e as suas condições de vida
contradizem objetivamente àquela união de amor entre Cristo e a Igreja,
significada e realizada na Eucaristia. Há, além disso, outro peculiar motivo
pastoral: se se admitissem essas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam
induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a
indissolubilidade do matrimônio.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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