Nestas
situações, não há eutanásia, pois esta implica – vamos repetir – numa
deliberada vontade de acabar com a vida do enfermo. É um atentado contra a
dignidade da pessoa a procura deliberada de sua morte, mas é próprio dessa dignidade a aceitação de
sua chegada nas condições menos penosas possíveis. E é no fundo do coração do
médico e do paciente que se estabelece esta diferença entre provocar a morte ou
esperá-la em paz e do modo menos penoso possível mediante alguns cuidados que
se limitem a mitigar os sofrimentos finais” (Comitê Episcopal Para a
Defesa da Vida, A eutanásia, San Pablo, Madri, 1993).
Marciano
Vidal documenta sua posição citando outrossim a Conferência Episcopal Alemã,
segundo a qual “o direito a uma morte humana não deve significar que se
busquem todos os meios à disposição da medicina, se com eles se obtém como
único resultado o de retardar artificialmente a morte. Isto se refere ao caso
no qual por uma intervenção de caráter médico, uma operação, por exemplo, a
vida se prolonga por pouco tempo e com duros sofrimentos,… a graves
transtornos físicos ou psicológicos. Em semelhante situação, uma decisão
eventual, do enfermo, de não se submeter à operação deve ser respeitada sob o
ponto de vista moral.
Existem,
além disso, hoje em dia, possibilidades técnicas da medicina que nos colocam
diante de problemas novos. Podemos justificar diante de nossa consciência
moral o uso prolongado de um pulmão artificial, por exemplo, para manter com
vida um paciente? Desde o momento em que se pode vislumbrar que, com este
tratamento, o enfermo grave se pode curar, é nosso dever utilizar semelhantes
meios, e é tarefa de um Estado de caráter social agir de sorte que aparatos e
meios, inclusive caros, sejam postos à disposição daqueles que deles
necessitam.
Mas é
diferente o caso no qual, eliminada toda esperança de melhora, o emprego de
particulares técnicas médicas não serve para outra coisa senão para retardar a
morte à custa de mais sofrimentos. Se o paciente, seus parentes e o médico,
depois de ter avaliado todas as circunstâncias, renunciam ao emprego de
medicinas e de medidas excepcionais, não hão de ser acusados de estar usurpando
um direito ilícito para dispor da vida humana. Para o médico, isto pressupõe,
naturalmente, o consentimento do paciente, e, quando isso já não seja
possível, o consentimento de um de seus parentes. Em tal caso, respeita-se o
direito de que a vida termine com a morte, que Deus colocou como limite dela” (Conselho
Permanente da Conferência Episcopal Alemã, 1974, Ecclesia n. 1758 [27-IX-1975]
19-20).
Como se vê,
o livro de Marciano Vidal é valioso, pois reafirma de maneira sólida e
persuasiva a doutrina da Igreja, enriquecendo-a com citações interessantes e ilustrativas.
A leitura é, por vezes, um tanto pesada, pois o texto recorre a vocábulos
técnicos, cujo sentido nem sempre é claro à primeira vista. Contudo isto não
impede a compreensão do pensamento do autor. Além do mais, a obra oferece
ocasião de refletir sobre a morte – o que é salutar.
2. APÊNDICE
A
documentação que M. Vidal apresenta, inclui dois textos que parece oportuno
reproduzir aqui, dado o seu elevado significado. O primeiro se refere se refere
aos Centros de Terapia Intensiva, e vem a ser uma advertência à
despersonalização ou à desumanização das condições em que se acha o paciente aí
internado.
I. CARTA DE
UMA ALUNA DE ENFERMAGEM EM ESTADO TERMINAL ÀS SUAS COLEGAS
“Sou
uma estudante que vai morrer. Escrevo esta carta a todas vocês que se preparam
para ser enfermeiras, com a esperança de vocês participarem daquilo que
experimento, a fim de que um dia estejam
– oxalá! – mais preparadas para
ajudar aqueles que vão morrer.
Restam-me
ainda de um a seis meses de vida, talvez um ano, mas ninguém quer falar disto.
Encontro-me, por isso, diante de um muro sólido e frio. O pessoal não quer ver
o moribundo como pessoa e, por conseguinte, não pode comunicar-se comigo. Eu
sou o símbolo do seu medo. Vocês entram em meu quarto na ponta dos pés para me trazer
a medicação e tomar-me o pulso e desaparecem, uma vez cumprida sua tarefa.
Seria por ser aluna de enfermagem ou simplesmente como ser humano que eu tenho
consciência do medo de vocês e sei que o medo de vocês aumenta o meu medo? De
que vocês têm medo? Sou eu que estou para morrer. Percebo o mal-estar de vocês,
mas não sei o que dizer nem o que fazer. Suplico que acreditem em mim. Se vocês se preocupam
comigo, não me podem fazer mal. Digam-me somente que vocês têm essa
preocupação; não necessito de mais nada…
Não fujam.
Tenham paciência. Tudo de que necessito, é saber que alguém estará a meu lado
para pegar minha mão entre as suas, quando eu precisar.
Tenho medo.
Talvez vocês estejam cansadas de ver pessoas morrer, mas para mim é uma
novidade. Morrer… nunca isso me ocorreu. É, de certo modo, uma ocasião única.
Vocês falam de minha juventude, mas, quando alguém está para morrer, não é
alguém tão jovem.
Há coisas
de que eu gostaria de falar. Não tiraria muito tempo de vocês… Se nos
atrevêssemos a reconhecer onde estamos e a admitir, vocês como eu, nossos
medos, acaso isso tornaria menos valiosa sua competência profissional? Estaria
realmente excluído que nos comuniquemos como pessoas, de forma que, quando nos
chegue a hora da morte no hospital, tenhamos a nosso lado pessoas amigas?” (R.
DELGADO, em JANO [6-17-ll-1985] 61).
O outro
texto é o depoimento de um homem famoso indiferente à religião nos dias de sua
glória, mas voltado para Deus ao se sentir próximo da morte.
II.
DECLARAÇÕES DE FREDERICO FELLINI
O famoso
diretor de cinema italiano manifestou numa sugestiva entrevista as vivências e
profundas experiências que lhe proporcionou a grave enfermidade que sofreu em
agosto de 1993, meses antes de morrer. Internado num hospital depois de ter
sofrido um ataque cerebral, sofreu uma paralisia no lado esquerdo, o que não
era um bom sinal. Pouco depois foi transladado para outro hospital para dar
início ao tratamento de reabilitação da parte esquerda de seu corpo.
Fellini
sempre esteve, e não teve dificuldade em afirmar isso quando o achou oportuno,
afastado do mundo da fé. Por isso, as suas declarações tornam-se
significativas nestes momentos em que se encontrou, como ele diz, “com alguém
maior que este pobre homem, que ocupou meu lugar na cadeira de diretor”.
Reproduzimos,
em seguida, parte de sua jocosa entrevista:
“- No seu “script”, ou, se prefere, na encenação
de sua existência, você previra este golpe de cena.
– Em
verdade, não. Não esperava. Esta é a verdade. Não estava preparado, nem sequer
me passara pela imaginação, e creio que, pela primeira vez, alguém maior do que
este pobre homem que sou eu, ocupou minha cadeira de diretor e me contou uma
piada que não é de todo má.
–
Melindrou-o esta intromissão?
– Não, não creio que me tenha incomodado, mas
cansou-me…
– Que significa para você agora o
medo?
– Antes de tudo, não lhe escondo que tive
medo. Quando no hospital me veio visitar meu amigo Titta, precisamente ele, o
materialista e blasfemador, me disse: “Sabe, Fellini? Rezei por você”. Naquele
momento tive medo. Meu medo é mais que o temor de não ver mais as luzes que
dão colorido ao filme de minha vida ou de vê-las desaparecer pouco a pouco,
como se meu ser se afastasse lentamente delas.
Rezou
durante esses dias?
Sim, rezei.
Que é a
oração?
Uma maneira
extremamente racional e inteligente de pôr no chão os fardos mais pesados da
vida e de confiar a alguém o peso das angústias e das dúvidas.
Pensou em
Deus?
E como se poderia viver sem pensar nele?
No filme de
sua vida, o protagonista se converteu num crente?
O caminho é
longo e as tentações muitas, e creio que meu protagonista terá fortes crises,
mas não me faça dizer mais, porque, de outra maneira, revelaria todas as minhas
surpresas” (Labor Hospitalaria, nº
228, 122-123).
Como se vê,
o diálogo termina em reticências (…) é importante, porque revela como a chegada
da morte transforma as pessoas: as mais autossuficientes e indiferentes a Deus
sentem o vazio de toda a glória humana e concebem a necessidade de se voltarem
para Deus, o único amigo que não falha, Aquele que fica quando tudo passa,
Aquele com quem todo homem se encontra definitivamente no momento final da sua
caminhada terrestre.
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¹ Eutanásia.
Um Desafio para a Consciência. – Ed. Santuário, Aparecida 1996, 135 x 210, 174
pp.