Eutanásia: um desafio para a consciência – EB (Parte 1)

Revista:
“PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão
Bettencourt, osb

Nº 420 –
Ano 1997 – p. 210

 

por Marciano
Vidal

Em síntese:
O conhecido teólogo moralista Pe. Marciano Vidal disserta sobre morte e
eutanásia com riqueza de documentos e sábios alvitres. Rejeita a eutanásia
ativa, que consiste em matar diretamente o paci­ente, ainda que a título de
compaixão. Rejeita também a distanásia, isto é, a obstinação terapêutica,
aplicada a pacientes que já não têm esperança de recuperação e são submetidos a
complexa aparelhagem, donde resulta inútil sofrimento. – Propugna a eutanásia
passiva, que consiste em evi­tar a obstinação terapêutica sem, porém, deixar de
ministrar ao enfermo terminal os meios rotineiros de subsistência (soro,
transfusão de sangue, alimentação simples…). Tal é a posição oficial da
Igreja. – O livro, além disto, se recomenda como fonte de informações e
repertório de documentos interessantes.

Marciano
Vidal é conhecido teólogo moralista espanhol, redentorista, cujas obras têm
sido traduzidas para o português e que, desta vez, vem a público com um livro
sobre a eutanásia¹. A obra é rica em documentação e bem orientada. – A seguir,
por-se-á em relevo a posição do autor, enriquecida por textos de fontes
oficiais, apresentados por Marciano Vidal para ilustrar a questão da morte e do
tratamento que se pode ou deve aplicar ao paciente terminal.

1. A TESE DO AUTOR

Antes de
tratar da eutanásia propriamente, o autor escreve longas páginas que dissertam
sobre a morte e seu significado à luz de diversas escolas filosóficas e da fé
cristã (capítulo 1). São muito variadas as posições dos autores citados;
merecem atenção dois depoimentos, que contrastam entre si:

Epicuro,
filósofo de época decadente, não cristão, escreve por cerca de 270 a.C.:

“Enquanto
tu existes, não existe a morte, e, quando a morte sobrevém, és tu que já não
existes. Eu e minha morte somos incompatíveis. Quando ela chegar, eu já não
estarei para experimentá-la. Serão os ou­tros que terão de se entender com
minha morte, que terão de se ocupar dela e comi ela. Portanto porque me
pré-ocupar do que nunca terei de me ocupar?” (Citado à p. 120 do livro em
foco).

No polo
oposto. S. Agostinho (+ 430) pondera:

“Desde o
instante em que começamos a existir neste Corpo mortal, nunca deixaremos de
caminhar pare a morte. Esta é a obra da mutabilidade durante todo o tempo da
vida (se é que vida se deve chamar): o caminhar para a morte… Porque o tempo
vivido é um nada dado à vida, e claramen­te diminui o que resta, de tal forma
que esta vida não é mais do que uma corrida para a morte (citado à p. 23).

Eis duas
posições contrastantes: a de quem não quer pensar na morte e a de quem a
enfrenta corajosamente. A primeira se explica pelo fato de que Epicuro não
tinha clara noção de vida póstuma, ao passo que S. Agostinho sabia que a
caminhada pelas estradas deste mundo leva à plenitude da vida.

A posição
de Epicuro é consolo artificial e precário. Têm mais bom senso os marxistas
que, julgando insustentável viver neste mundo sem consciência de outra vida,
postulam a ressurreição. Lemos à p. 14 do livro citado:

“… A
sobrevida individual no além-história. Alguns marxistas reconhecem isso. “São
essas interrogações que movem Garaudy – não somente ele, mas também os
pós-marxistas Adomo e Horkheimer – a proclamar o postulado da ressurreição”
como pressuposto, a seu ver, de uma opção revolucionária coerente e honesta”.

Para o
cristão, lembra Marciano Vidal, a concepção da morte é inseparável da
consciência da morte e ressurreição de Cristo; a morte é participação da Páscoa
de Jesus: “Em Jesus, o Crucificado, Deus aceitou nossa morte como sendo
sua própria morte… Isto não nos exime da morte tal como ela é na realidade.
Mas já podemos morrer com a esperança posta no Filho. E a incompreensível
angústia da nossa morte será participação na agonia de Jesus” (Karl
Rahner, Reflexões sobre a Morte, citado à. p. 18 da obra de M. Vidal).

O capítulo
2 do livro trata da “morte clínica” (melhor dizendo:… morte real),
procurando os critérios que a definem. Os sintomas de morte real hão de ser
assinalados pela medicina e não pela Teologia, como já dizia Pio XII num
discurso proferido em 1957.
A legislação espanhola no real decreto sobre
“Expropriación y Transplante de organos” art. 10 considera falecida
uma pessoa “mediante comprovação da morte cerebral, basea­da na
constatação conjunta, durante trinta minutos, pelo menos, e a persistência seis
horas depois do começo do estado de coma, dos seguintes sinais:

ausência de
resposta cerebral, com a perda absoluta de consciência;

ausência de
respiração espontânea;

ausência de
reflexos cefálicos, com hipotonia muscular e midriase;

eletroencefalograma
“plano”, demonstrativo da inatividade bioelétrica  cerebral.

Os sinais
citados não serão suficientes diante de hipotermia induzida artificialmente ou
sob efeitos de administração de drogas depressoras do sistema nervoso
central” (livro em foco, pp. 41s).

O capitulo
3 trata do termo e do conceito de eutanásia. Expõe a terminologia vigente:

Eutanásia ativa
é a procura da morte mediante algum ato diretamente mortífero (injeção na veia,
geralmente). Pode ser solicitada pelo próprio paciente como pode ser infligida
a este pelos familiares e o médi­co a título de compaixão ou para pôr termo a
sofrimentos irreversíveis.

Eutanásia passiva:
consiste em subtrair ao paciente os meios de subsistência – o que leva à morte.
Tais meios podem ser os de rotina (alimentação, soro, transfusão de sangue…)
como também podem ser os complexos recursos dos Centros de Terapia Intensiva.

Distanásia
é, etimologicamente falando, o contrário de eutanásia. O prefixo grego dys
significa doloroso, difícil (como em dispepsia, dispnéia, disfunção…), ao
passo que o prefixo eu implica suavidade. Distanásia vem a ser a morte dolorosa
e difícil que resulta da obstinação terapêutica; prolonga-se a vida do
paciente, fazendo-o sofrer, sem que disto resulte alguma melhora para seu
estado de saúde.

Adistanásia
é a negação da distanásia. Vem a ser a morte conse­qüente a uma interrupção dos
meios extraordinários de subsistência ou a chamada eutanásia passiva (suspensão
dos meios extraordinários ou desproporcionais, não proporcionados aos parcos
resultados obtidos).

Ortotanásia
é a prática que sabe conciliar dois elementos inerentes à dignidade humana: o
respeito à vida humana e o direito de morrer dignamente, ou seja, sem ser
atormentado por uma incondicional obstinação terapêutica. Em gráfico:

A ortotanásia
é

A
realização do duplo valor do:

respeito à
vida humana e do        direito de morrer
dignamente

valor que a eutanásia não                valor que a distanásia não

 realiza (exagerando                                 realiza
(exagerando

  o valor:                                                           o outro
valor:

  “direito a morrer”)                         “apreço exagerado à
vida”)

 

Nos
capítulos subsequentes, Marciano Vidal define sua posição frente à eutanásia,
que não é outra senão a da Igreja, expressa pela Congregação para a Doutrina da
Fé em Carta datada de 05/05/1980, a saber:

A eutanásia
ativa viola os direitos da pessoa humana à vida. Esta é o valor básico, ao qual
não se pode preferir outro valor; além do quê, a eutanásia ativa pode encobrir
intenções espúrias (desejo, da família, de se ver livre do paciente ou repartir
logo a herança…), utilitaristas (aproveitamento de órgãos do paciente), falsa
compaixão a encobrir interesses particulares…

A eutanásia
passiva, na medida em que subtrai ao enfermo os meios rotineiros de
subsistência, é injusta. Também viola o direito do pacien­te à vida.

A eutanásia
passiva, é lícita se consiste em suspender meios de sobrevivência
extraordinários ou, melhor, desproporcionais,… meios complexos cujos resultados
são nulos, pois é irreversível o estado patológico do enfermo terminal. Assim é
rejeitada a distanásia, que alguns chamam “crueldade terapêutica”: esta é a atitude
do médico que, diante da certeza moral que lhe dão os seus conhecimentos
científicos, de que os trata­mentos ou os remédios de qualquer natureza já não
proporcionam bene­fícios ao enfermo e só servem para prolongar sua agonia
inutilmente, se obstina em continuar o tratamento e não deixa que a natureza
siga seu curso; é a isto que alude o Comitê Episcopal da Espanha para a Defesa
da Vida, citado à p. 93 da obra em foco.

Apregoa-se
então a adistanásia ou, mais positivamente, a ortotanásia.

O mesmo
Comitê Episcopal proclama os Direitos do Enfermo nos seguintes termos:

“Existem
alguns direitos do enfermo moribundo?

– Certamente. O direito a uma autêntica
morte digna inclui:

*  O direito de não sofrer inutilmente.

*  O direito de que se respeite a
liberdade de sua consciência.

* O direito
de conhecer a verdade sobre seu estado.

*  O direito de decidir sobre si mesmo e
sobre as intervenções a que tenha de se submeter.

* O direito de manter um diálogo
confidencial com os médicos, familiares, amigos, e sucessores no trabalho.

*  Direito de receber assistência
espiritual.

O direito
de não sofrer inutilmente e o direito de decidir sobre si mes­mo amparam e
legitimam a decisão de renunciar aos remédios excepcio­nais na fase terminal,
sempre que atrás deles não se oculte uma vontade suicida.

E estes
direitos não poderiam legitimar alguma forma de eutanásia passiva (por
omissão)?

– Não.
Quando a morte aparece como inevitável, porque já não há remédios eficazes, o
enfermo pode determinar, se estiver em condições de fazê-lo, o curso de seus
últimos dias ou horas: mediante alguma des­tas quatro decisões:

· Aceitar que
se testem as medicações e técnicas em fase experimental, que não estão imunes
de todo risco. Aceitando-as, o enfermo poderá dar exemplo de generosidade para
o bem da humanidade.

·  Recusar ou
interromper a aplicação desses remédios.

· Contentar-se
com os meios paliativos que a medicina lhe possa oferecer para mitigar a dor,
embora não tenham, nenhuma virtude curativa; e recusar medicações ou operações
em fase experimental, porque sejam perigosas ou sejam excessivamente caras.
Esta recusa não eqüi­vale ao suicídio, mas sim é expressão de uma ponderada
aceitação da inevitabilidade da morte.

. Na iminência da morte, recusar o
tratamento obstinado que unicamente irá produzir um prolongamento precário e
penoso de sua existên­cia, embora sem recusar os meios normais e comuns que lhe
permitem sobreviver.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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