Ética na internet (Parte 2)

Em tais circunstâncias, a sensibilidade cultural e o respeito pelos valores e credos dos outros povos são fundamentais. Para construir e conservar o sentido da solidariedade internacional, é necessário o diálogo intercultural, uma vez que as « expressões históricas diversas e geniais da unidade originária da família humana, as culturas, encontram no diálogo a salvaguarda das suas peculiaridades e da sua mútua compreensão e comunhão ».25

12. Analogamente, o problema da liberdade de expressão na Internet é complexo e dá origem a uma outra série de preocupações.
Apoiamos de forma vigorosa a liberdade de expressão e o livre intercâmbio de ideias. A liberdade de procurar e de conhecer a verdade é um direito humano fundamental,26 e a liberdade de expressão constitui uma pedra angular da democracia. « Salvas a lei moral e o bem comum, que o homem possa livremente procurar a verdade, manifestar e divulgar a sua opinião… e, por fim, que possa ser informado, com verdade, acerca dos acontecimentos públicos».27 E a opinião pública, « uma expressão fundamental da natureza humana organizada em forma de sociedade », exige absolutamente « a liberdade da expressão das ideias e dos sentimentos ».28
À luz destas exigências do bem comum, deploramos as tentativas que as autoridades públicas empreendem em ordem a impedir o acesso às informações – na Internet ou nos outros instrumentos de comunicação social – porque o consideram como uma ameaça ou um obstáculo, para manipular o público mediante a propaganda e a desinformação, ou para impedir a legítima liberdade de expressão e de opinião. A este propósito, os regimes autoritários são absolutamente os piores agressores; contudo, o problema existe também nas democracias liberais, onde o acesso aos mass media para a expressão política geralmente depende da riqueza, enquanto os políticos e os seus conselheiros violam a lealdade e a imparcialidade, apresentando os seus opositores de maneira errónea a reduzindo as questões a uma dimensão fragmentária.

13. Neste novo ambiente, o jornalismo está a passar por profundas transformações. A combinação das novas tecnologias e da globalização « aumentou as capacidades dos meios de comunicação social, mas também acresceu a sua exposição às pressões ideológicas e comerciais »,29 e isto é verdade também no que se refere ao jornalismo.
A Internet é um instrumento muito eficaz para transmitir rapidamente as notícias e as informações às pessoas. Contudo, a concorrência económica e a natureza de continuidade perene do jornalismo através da Internet também contribuem para o sensacionalismo e a intriga, para a fusão de notícias, publicidades e divertimentos, bem como para o aparente declínio das reportagens e dos comentários sérios. O jornalismo honesto é essencial para o bem comum das nações e da comunidade internacional. Os problemas actualmente visíveis na prática do jornalismo através da Internet exigem uma emenda urgente por parte dos próprios jornalistas.
A quantidade esmagadora de informações presentes na Internet, uma boa parte das quais não é avaliada em termos em exactidão e de relevância, constitui um problema para muitas pessoas. Contudo, tememos também que as pessoas recorram à capacidade tecnológica dos mass media para uniformizar as informações, simplesmente em ordem a erguer barreiras electrónicas contra ideias pouco familiares. Este seria um desenvolvimento malsão num mundo pluralista, onde as pessoas precisam de crescer na compreensão recíproca. Enquanto os utentes da Internet têm o dever de ser selectivos e disciplinados, não podem chegar ao extremo de se isolar dos outros. As implicações dos mass media para o desenvolvimento psicológico e também para a saúde precisam de um estudo contínuo, considerando ainda que a hipótese da permanência prolongada no mundo virtual do espaço cibernético pode ser prejudicial para determinadas pessoas. Embora haja muitas vantagens na capacidade que a tecnologia oferece aos indivíduos de « formar blocos de informação e serviços destinados exclusivamente a elas mesmas », isto também « levanta um interrogativo inevitável: o auditório do futuro será uma grande quantidade de auditórios de um só?… O que seria da solidariedade – o que seria do amor – num mundo como esse? ».30

14. Além das questões que dizem respeito à liberdade de expressão, a integridade e a exactidão das notícias, e a partilha das ideias e das informações constituem uma ulterior série de preocupações geradas pelo liberalismo. A ideologia do liberalismo radical é tanto errónea quanto prejudicial – não em menor medida, quando visa tornar legítima a livre expressão ao serviço da verdade. O erro encontra-se na exaltação da liberdade « até ao ponto de se tornar um absoluto, que seria a fonte dos valores… Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desaparece em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de “acordo consigo próprio” ».31 Neste modo de pensar não há espaço para a comunidade autêntica, o bem comum e a solidariedade.

IV. Recomendações Conclusão
15. Como pudemos ver, a virtude da solidariedade constitui a medida do serviço da Internet em prol do bem comum. É o bem comum que oferece o contexto para a consideração da seguinte interrogação ética: « Os mass media estão a ser utilizados para o bem ou para o mal? ».32
Muitos indivíduos e grupos compartilham a responsabilidade no que se refere a esta questão – por exemplo, os organismos transnacionais, de que já falámos mais acima. Todos os utentes da Internet são obrigados a utilizá-la de maneira ponderada e disciplinada, para finalidades moralmente positivas; além disso, os pais deveriam orientar e verificar o uso que os seus filhos fazem da mesma.33 As escolas e as outras instituições e programas de educação para as crianças e os adultos deveriam oferecer uma formação para discernir o uso da Internet como parte de uma educação abrangente sobre os mass media, incluindo não apenas a formação da capacidade técnica – « rudimentos de computadorização » e outras matérias análogas – mas também a capacidade de uma avaliação ponderada e judiciosa do seu conteúdo. Aqueles pessoas, cujas decisões e acções contribuem para formar a estrutura e o conteúdo da Internet, têm o dever particularmente sério de praticar a solidariedade ao serviço do bem comum.

16. Os governos devem evitar a censura « a priori »; « a censura… só deve ser usada em casos muito extremos ».34 Todavia, a Internet não está mais isenta do que outros meios de comunicação, das leis razoáveis contra a linguagem ofensiva, a difamação, a fraude, a pornografia infantil e a pornografia em geral, assim como outras ofensas. O comportamento criminoso noutros contextos é igualmente um comportamento criminoso no espaço cibernético, e as autoridades civis têm o dever e o direito de fomentar estas leis. Podem ser necessários novos regulamentos para abordar crimes singulares, praticados no contexto da Internet, como a disseminação de vírus de computador, o furto dos dados pessoais armazenados nos discos rígidos, e outros semelhantes.
É necessário uma regulamentação da Internet e, em princípio, a sua melhor forma seria a auto-regulamentação por parte da indústria. « A solução dos problemas que nasceram desta comercialização e privatização não regulamentadas não reside, todavia, no controle dos mass media por parte do Estado, mas numa maior regulamentação, conforme às normas do serviço público, assim como numa maior responsabilidade pública ».35 Os códigos éticos definidos pela indústria podem desempenhar um papel útil, contanto que sejam seriamente orientados, comprometam os representantes do público na sua enunciação e promoção e, além de encorajar os comunicadores responsáveis, prevejam penalidades apropriadas para os seus violadores, inclusivamente a censura pública.36 Às vezes, as circunstâncias podem exigir a intervenção do Estado: por exemplo, a criação de comissões de consulta sobre os mass media, representando um vasto leque de opiniões da comunidade.37

17. A característica transnacional e vinculadora e o seu papel na globalização exigem a cooperação internacional na definição dos padrões e na determinação dos mecanismos destinados a promover e a proteger o bem comum internacional.38 A propósito da tecnologia dos mass media, assim como no que se refere a muitos outros sectores, « existe a premente necessidade de equidade a nível internacional ».39 É preciso uma acção determinada nos campos particular e público, para pôr termo e eventualmente eliminar a divisão digital.
Muitas questões difíceis, relativas à Internet, exigem um consenso internacional: por exemplo, como garantir a privacidade de inúmeros indivíduos e grupos que vivem no respeito da lei, sem impedir que a aplicação da lei e os responsáveis pela segurança exerçam o vigilância sobre os criminosos e os terroristas; como estabelecer e manter os vastos repertórios de notícias da Internet, livremente disponíveis para todos os seus utentes, numa variedade de línguas; como tutelar os direitos da mulher no que se refere ao seu acesso à Internet e aos outros aspectos da nova tecnologia das informações. De modo particular, o problema da forma como eliminar a divisão digital entre as pessoas ricas de informação e as outras pobres de informação exige que se preste urgentemente atenção aos seus aspectos técnicos, educativos e culturais.
Hoje existe « um medrado sentido de solidariedade internacional », que oferece ao sistema das Nações Unidas, em particular, « uma oportunidade única de contribuir para a globalização da solidariedade, servindo de ponto de encontro para os Estados e a sociedade civil, e de convergência para os diversificados interesses e necessidades… A cooperação entre as Agências internacionais e as Organizações não-governamentais ajudarão a assegurar que os interesses dos Estados – mesmo que sejam legítimos – e dos diferentes grupos dentro deles não sejam invocados ou defendidos em detrimento dos interesses ou direitos dos outros povos, especialmente dos menos afortunados ».40 Neste caso, formulamos votos a fim de que o Encontro Mundial sobre a Sociedade das Informações, cuja realização foi marcada para 2003, ofereça uma contribuição positiva para o debate sobre estas questões.

18. Como quisemos indicar mais acima, o documento associado a este, intitulado A Igreja na Internet, fala de maneira específica sobre o uso que a Igreja faz da Internet e acerca do seu papel na vida da Igreja. Aqui, só queremos recordar que a Igreja católica, juntamente com os seus outros Organismos religiosos, deve estar visível e activamente presente na Internet e participar no diálogo público sobre o seu desenvolvimento. « A Igreja não pretende ditar estas decisões e escolhas, mas procura fornecer uma verdadeira ajuda, indicando critérios éticos e morais aplicáveis neste domínio, critérios que se encontrarão nos valores tanto humanos como cristãos ».41
A Internet pode oferecer uma contribuição extremamente valiosa para a vida humana. Há-de promover a prosperidade e a paz, o crescimento intelectual e estético, além da compreensão recíproca entre os povos e as nações a nível mundial.
Ela pode ajudar também os homens e as mulheres na sua busca permanente de se compreenderem a si mesmo. Em todas as épocas, inclusivamente na nossa, as pessoas formulam as mesmas interrogações fundamentais: « Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Por que existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? ».42 Não cabe à Igreja impor respostas, mas pode – e deve – proclamar ao mundo as respostas que ela mesma recebeu; e, tanto hoje como sempre, oferece a derradeira resposta satisfatória aos mais profundos interrogativos da vida – Jesus Cristo, que « manifesta perfeitamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sublimidade da sua vocação ».43 Assim como o próprio mundo contemporâneo, também o mundo dos mass media, inclusive a Internet, foi iniciado por Cristo – na sua forma rudimentar mas verdadeira – dentro dos confins do reino de Deus, e colocado ao serviço da palavra da salvação. Todavia, « a esperança de uma terra nova não deve enfraquecer mas, antes, estimular a preocupação de cultivar esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, o qual já nos dá um esboço do século vindouro ».44

***
Cidade do Vaticano, 22 de Fevereiro de 2002, Festa da Cátedra de São Pedro Apóstolo.

John P. Foley
Presidente
Pierfranco Pastore
Secretário
 
____________________

(1) Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Instrução Pastoral Aetatis novae, sobre as comunicações sociais, no vigésimo aniversário de Communio et progressio, n. 4.
(2) Cf. Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Igreja e Internet.
(3) Cf. Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Ética nos meios de comunicação social, n. 5.
(4) Ibid., n. 21.
(5) Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 26; cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1906.
(6) João Paulo II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis, 38.
(7) João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais, n. 2, 27 de Abril de 2001.
(8) João Paulo II, Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, 20.
(9) João Paulo II, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, n. 3, 10 de Janeiro de 2000.
(10) Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais, n. 2.
(11) Ibid., n. 3.
(12) Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Instrução Pastoral Communio et progressio, sobre os meios de comunicação social, n. 19.
(13) Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, n. 4, 10 de Janeiro de 2000.
(14) João Paulo II, Carta Apostólica Novo millennio ineunte, 43.
(15) Ética nos meios de comunicação social, n. 2.
(16) Cf. Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Pornografia e violência nas comunicações sociais: uma resposta pastoral, n. 20.
(17) Ecclesia in America, 56.
(18) João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2001, n. 11.
(19) Ibid., n. 16.
(20) João Paulo II, Mensagem para o XXXIII Dia Mundial das Comunicações, n. 4, 24 de Janeiro de 1999.
(21) João Paulo II, Mensagem para o XXXI Dia Mundial das Comunicações, 1997.
(22) Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais, n. 5.
(23) Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2001, n. 11.
(24) Novo millennio ineunte, 47.
(25) Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2001, n. 10.
(26) Cf. João Paulo II, Carta Encíclica Centesimus annus, 47.
(27) Gaudium et spes, 59.
(28) Cf. Communio et progressio, nn. 25-26.
(29) João Paulo II, Discurso no Jubileu dos Jornalistas, n. 2, 4 de Junho de 2000.
(30) Ética nos meios de comunicação social, n. 29.
(31) João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis splendor, 32.
(32) Ética nos meios de comunicação social, n. 1.
(33) Cf. João Paulo II, Exortação Apostólica pós-sinodal Familiaris consortio, 76.
(34) Communio et progressio, n. 86.
(35) Aetatis novae, n. 5.
(36) Cf. Communio et progressio, n. 79.
(37) Ibid., n. 88.
(38) Cf. Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais, n. 2.
(39) Ética nos meios de comunicação social, n. 22.
(40) João Paulo II, Discurso ao Secretário-Geral da O.N.U. e à Comissão Administrativa de Coordenação das Nações Unidas, nn. 2-3, 7 de Abril de 2000.
(41) Aetatis novae, n. 12.
(42) João Paulo II, Carta Encíclica Fides et ratio, 1.
(43) Gaudium et spes, 22.
(44) Ibid., n. 39.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.