Duas questões candentes – EB

Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 499 – Ano 2004 – p. 30

 

Em síntese: Vão abordadas, a
seguir, a questão de dizer a verdade ao paciente e a da manipulação política da
Psiquiatria. A primeira se resolve positivamente: o paciente tem o direito de
ser informado a respeito do seu estado de saúde principalmente no fim da vida
terrestre, quando lhe é necessário preparar-se mais atentamente para o encontro
com o Além. Quanto à manipulação política da Psiquiatria, era praticada pelos
regimes totalitários, que tratavam como doentes mentais os que divergiam da
ideologia reinante.

Duas candentes questões da
Bioética vão, a seguir, consideradas na base de quanto afirma Elio Sgreccia em
seu “Manual de Bioética”, vol. I, pp. 624-626 e vol. II, pp. 84-87.

Dizer a verdade ao paciente?

Ao lado dos que à pergunta
acima respondem positivamente, há os que optam pela recusa, alegando os efeitos
nocivos que, para o enfermo, acarretaria a comunicação da verdade; chegam mesmo
a querer despertar nele uma falsa expectativa de cura para uma moléstia muito
adiantada e (humanamente falando) incurável.

O melhor alvitre é, sem dúvida,
o primeiro, embora mais penoso e delicado. Vejamos como o fundamentar.

1. Antes do mais, é preciso
evitar a mentira e a falsidade; não são premissas sobre as quais possa haver
digno relacionamento de médico a paciente ou de familiares a familiar. O ser
humano foi feito para a verdade; por isto há de se sentir espontâneo repúdio
pela falsidade ou o fingimento ou “fazer de conta que (…)”. Daí a necessidade de
não querer consolar o paciente terminal com a proposta de viagem turística,
altos estudos, crescente êxito na carreira… Isto eqüivaleria a tratar um
adulto como criança, impedindo-o de exercer suas faculdades mais nobres frente à
questão mais importante de todas, que é a do sentido da vida (de onde venho?
Para onde vou?).

A situação se torna
particularmente penosa quando o paciente descobre que foi enganado e tratado
como criança. Perde a confiança naqueles que o cercam e sente-se envolvido na
solidão.

2. Também não é recomendável
o silêncio sistemático, que não diz nem mentira nem a verdade. Aliás tal silêncio
não se sustenta por muito tempo. O paciente acaba por descobrir ao menos alguns
dados referentes ao seu estado de saúde.

3. Rejeitadas as duas
atitudes anteriores, é preciso tender a dizer a verdade ao paciente. Este tem
direito a tal, pois a vida é como um livro, do qual cada dia é uma página bem
ou mal escrita, com erros de pontuação, acentuação, grafia; é preciso que,
chegando ao fim do livro, o autor o possa rever para corrigir o que ficou
falho, inacabado, mal entendido – o que só é possível se o paciente está
consciente de que deve redigir a conclusão de seu livro. Ele o deve fazer de
maneira tranqüila e adulta, devidamente informado da situação em que se
encontra, procurando perdoar e pedir perdão, agradecendo, recomendando…

 4. As informações devidas serão transmitidas
ao paciente segundo duas modalidades:

– gradativamente ou de
acordo com as disposições do enfermo, de modo que este não se surpreenda com
uma notícia aparentemente esmagadora. Quando mais não se possa fazer, ao menos
dê-se ao paciente ocasião de ler as bulas dos remédios que toma. Assim irá
compreendendo o seu estado de saúde;

– a comunicação não seja
feita ao paciente em termos frios e técnicos apenas, mas procure-se usar
linguagem de solidariedade fraterna e estima, disposta a ajudar o(a) irmão(ã)…

5. Para que alguém receba
com ânimo tranqüilo a notícia de seu desenlace próximo, requer-se uma preparação
remota. Não é na última hora que alguém vai dispor-se a enfrentar a morte. A
perspectiva desta deve estar presente ao cristão todos os dias de sua caminhada
terrestre, como também aos não cristãos, pois, como se diz, “a morte é a única
certeza que a criança tem quando nasce”.

É nos dias de saúde plena e
lucidez de mente que a pessoa sábia deve considerar a sua consumação; não
aguarde a chegada dos primeiros avisos da morte para refletir sobre ela, pois
então poderá estar esclerosado, cego, cansado e assim incapacitado de meditar
sobre o assunto.

Aprofundando estas considerações,
importa acrescentar mais dois itens:

6. A morte é correlativa ao tipo de vida. Muito temerário
seria fazer da misericórdia divina um pretexto, mais ou menos consciente, para
negligência e tibieza na vida espiritual. É sábio crer que cada um morre como
viveu. Quase cada ato do homem, no decorrer desta vida, deixa uma marca ou um
vestígio em sua personalidade; e a morte não faz senão manifestar
definitivamente esse tipo de personalidade do indivíduo. Por conseguinte, os últimos
instantes não são algo de essencialmente novo na vida do homem; mas, preparados
pelas fases anteriores desta peregrinação, vêm a ser o seu desabrochamento
normal e a sua última expressão. Na morte a pessoa recapitula toda a sua vida e
a entrega ao Pai Celeste; ora, a menos de uma intervenção extraordinária de
Deus, não pode recolher senão o que tenha semeado dia-a-dia na terra. Os atos
cotidianos, aparentemente transitórios, pela morte se tornam imperecíveis, depondo
para sempre em abono ou desabono do seu ator.

Surge então a pergunta:

7. Como nos preparamos para
a morte? – Respondemos que a melhor preparação para a morte é a vida de cada
dia, vivida quando estamos lúcidos ou precisamente quanto a morte ainda parece
distante. É nos dias bons que nos preparamos para os dias finais e para a
morte, e não apenas quando as faculdades mentais e físicas começam a desfalecer
(pois então é mais difícil pensar, ler, orar…). A ação de sedativos e analgésicos
dificulta o raciocínio e obnubila a mente. A tendência a afastar o pensamento
da morte é paradoxal, pois, como dito, “a morte é a única certeza que temos
desde a infância”.

Cada qual viva como
desejaria morrer, prestando atenção às coisas que realmente terão algum valor
naquele momento e distinguindo-as bem de bagatelas e ninharias, que nada
significarão no momento final, mas que muito empolgam e apaixonam no decorrer
desta caminhada. Procure o cristão julgar tudo como Deus julga, ou seja, a
partir da eternidade; coloque-se assim na rota e na luz do definitivo, e a
morte não será um susto nem uma desinstalação. Assuma o cristão as provações
desta vida como aprendizado para o instante terminal. Trabalhe por deixar este
mundo um pouco melhor do que o encontrou, pois este aspecto entrará na prestação
de contas que cada qual fará a Deus. Ame os irmãos com sinceridade e benevolência.
E principalmente ore, pois o contato com Deus cultivado na oração é a mais viva
antecipação do grande encontro final.

É tradicional pedir a Deus
que nos preserve da morte subitânea e imprevista. É para desejar que estejamos
tão maduros na fé que vamos conscientemente ao encontro da morte. Como dizíamos,
a nossa vida de cada dia é como um livro, do qual escrevemos diariamente uma página;
no fim da redação, é oportuno que tenhamos um espaço de tempo e lucidez de espírito
para rever esse livro, corrigir o que nele esteja errado ou inadequado, e ainda
melhorar o que precise de ser melhorado; assim o cristão poderá entregar aos pósteros
o livro de sua vida emendado e rematado – o que será, sem dúvida, um grande
presente.

Possa ainda cada qual morrer
reconfortado pelos últimos sacramentos, exclamando as palavras finais da
Escritura Sagrada: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22. 20).

A boa morte é fruto de graça
especial ou do dom da perseverança final. Não é algo que se possa merecer, mas
algo que o Senhor concede, atendendo às orações dos seus fiéis. Merecer o dom
da perseverança final seria o mesmo que merecer a graça – o que é contraditório
(a graça é sempre gratuita). A oração, porém, humilde e confiante obtém o
grande dom; por isto, pedir a graça de uma boa morte é coisa freqüentemente
recomendada pelos Santos e teólogos. Aliás, ao invocarmos diariamente a Virgem
Santíssima na “Ave Maria”, pedimos-lhe que rogue por nós “agora e na hora da
nossa morte”.

2. A Psiquiatria manipulada pela Política

Na antiga URSS e nos países
satélites (e ainda em nossos dias talvez, em países totalitários) a Psiquiatria
era (é) aplicada à “cura” ou à punição de dissidentes políticos ou de adversários
do Governo; estes eram assim “regenerados” ou faziam pretensas confissões de
delitos e denunciavam seus cúmplices. Os procedimentos então aplicados se
tornaram conhecidos ao grande público pelo depoimento daqueles que escaparam de
tais “terapias” e das respectivas prisões. Eis o que se pôde apurar:

O tratamento “científico”
começava por um diagnóstico médico, que declarava ser o réu um doente mental;
como esquizofrênico não por sofrer dissociações psíquicas, mas por se dissociar
da ideologia do Governo. Em conseqüência era internado num manicômio sob
estrita vigilância. O Código de Processo Penal da antiga URSS dizia em seu
artigo 403: “As medidas coercitivas de caráter médico são aplicadas pela Corte
em relação às pessoas que cometeram ações socialmente perigosas”.

As técnicas aplicadas
visavam todas a enfraquecer a personalidade do sujeito para que concordasse com
tudo quanto lhe fosse sugerido pelos examinadores; procuravam extinguir sua
capacidade crítica mental de tal modo que ele chegasse a dizer que a filosofia
do Governo era a única plausível orientação para o país (…), orientação que ele
havia combatido, merecendo severa censura.

Os tratamentos eram, em
parte, farmacológicos: ministravam-se remédios neurolépticos, que provocavam
contínua perda de memória, degradação intelectual, emotiva e moral. Além disto,
aplicavam-se pancadas, privação de alimentos e sobretudo de sono (o indivíduo
que não dorme o suficiente, perde a resistência aos estímulos do ambiente). Os “enfermeiros”
recorriam também à privação de luz ou ao quarto escuro e silencioso como
igualmente praticavam a imersão dentro da água.

Para receber o laudo de “cura”
completa”, o paciente tinha que confessar tudo o que lhe fosse sugerido e
denunciar os supostos cúmplices dos seus crimes. Era posto em liberdade como
amigo do Partido e réu de delitos contra a pátria.

Eis o que se chama “lavagem
cerebral”, tema que será mais amplamente explanado no próximo artigo.  

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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