Discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático ante a Santa Sé

Segundo o ACI, em 8 de fevereiro, o Papa Francisco recebeu o Corpo Diplomático acreditado junto a Santa Sé no Salão das Bênçãos do Vaticano para a tradicional audiência anual.

Durante seu longo discurso, o Santo Padre listou cinco crises atuais causadas pela Covid-19 que são a sanitária, ambiental, econômica e social, política e a das relações humanas. Do mesmo modo, pediu pela paz em diferentes regiões do mundo.

“O ano de 2021 é um tempo a não perder; e não se perderá na medida em que soubermos colaborar com generosidade e empenho. Neste sentido, considero que a fraternidade seja o verdadeiro remédio para a pandemia e os inúmeros males que nos atingiram. Fraternidade e esperança são remédios de que o mundo precisa, hoje, tanto como as vacinas”, disse o Papa.

A seguir, a íntegra do discurso pronunciado pelo Papa Francisco:

Excelências, Senhoras e Senhores!

Agradeço ao Decano, o Senhor George Poulides, Embaixador de Chipre, as amáveis palavras e bons votos que expressou em nome de todos vós e quero, antes de mais nada, pedir desculpa pelos incómodos que vos possa ter causado o cancelamento do encontro que estava previsto em 25 de janeiro. Obrigado pela vossa compreensão e paciência e por terdes acolhido o convite, não obstante as dificuldades, para vir esta manhã ao nosso tradicional ajuntamento.

Fazemo-lo na moldura mais espaçosa desta Sala das Bênçãos, para respeitar a exigência de maior distanciamento pessoal a que nos obriga a pandemia. Todavia a distância é apenas física. Antes, o facto de nos encontrarmos simboliza o contrário: é um sinal de proximidade, daquela proximidade e mútuo apoio a que deve aspirar a família das nações. Neste tempo de pandemia, trata-se de um dever ainda mais impelente, pois é claro para todos que o vírus não conhece barreiras nem pode ser facilmente isolado. Por isso, derrotá-lo é uma responsabilidade que conta com cada um de nós pessoalmente, como também com os nossos países.

Daí o meu reconhecimento a todos vós pelo esforço que fazeis diariamente por favorecer as relações entre os vossos países ou as organizações internacionais que representais e a Santa Sé. São numerosos os testemunhos de mútua proximidade que pudemos trocar ao longo destes meses, graças também ao uso das novas tecnologias, que permitiram superar as limitações causadas pela pandemia.

Sem dúvida, todos aspiramos a retomar o mais rápido possível o contacto presencial, e o nosso encontro de hoje pretende ser um bom presságio nesse sentido. De igual modo, é meu desejo retomar em breve as viagens apostólicas, a começar pelo Iraque prevista para o próximo mês de março. Com efeito, tais viagens constituem um aspeto importante da solicitude do Sucessor de Pedro pelo Povo de Deus espalhado pelo mundo inteiro, bem como do diálogo da Santa Sé com os Estados. Além disso, com frequência revelam-se ocasião propícia para, em espírito de partilha e diálogo, aprofundar a relação entre religiões diversas. No nosso tempo, o diálogo inter-religioso é uma componente importante no encontro entre povos e culturas. Quando é concebido não como renúncia à própria identidade, mas como ocasião de maior conhecimento e enriquecimento mútuo, constitui uma oportunidade para os responsáveis religiosos e para os fiéis das várias confissões e pode sustentar o trabalho dos líderes políticos na sua responsabilidade de construir o bem comum.

Igualmente importantes são os acordos internacionais, que permitem aprofundar os vínculos de mútua confiança e consentem à Igreja de cooperar mais eficazmente para o bem-estar espiritual e social dos vossos países. Nesta perspetiva, desejo mencionar aqui a troca dos instrumentos de ratificação do Acordo-Quadro entre a Santa Sé e a República Democrática do Congo e do Acordo sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Burkina Faso, bem como a assinatura entre a Santa Sé e a República Austríaca do VII Acordo Adicional à Convenção para o Regulamento das Relações Patrimoniais, de 23 de junho de 1960. Além disso, no dia 22 de outubro passado, a Santa Sé e a República Popular da China concordaram em prolongar, por mais dois anos, a validade do Acordo Provisório sobre a nomeação dos Bispos na China, assinado em Pequim no ano de 2018. Trata-se de um entendimento de caráter essencialmente pastoral e a Santa Sé espera que o caminho percorrido continue, em espírito de respeito e mútua confiança, contribuindo ainda mais para a solução das questões de interesse comum.

Queridos Embaixadores!

O ano há pouco concluído deixou atrás dele um rasto de medo, desconforto e desespero, juntamente com muitos lutos. Colocou as pessoas numa espiral de separação e suspeita mútua, e impeliu os Estados a erguerem barreiras. O mundo interligado a que estávamos acostumados deu lugar a um mundo novamente fragmentado e dividido. Entretanto as repercussões da pandemia são verdadeiramente globais, quer porque a mesma envolve realmente toda a humanidade e os países do mundo inteiro, quer porque afeta muitos aspetos da nossa vida, contribuindo para agravar «fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória».[1] À luz desta consideração, pareceu-me oportuno dar vida à Comissão Vaticana Covid-19, com o objetivo de coordenar a resposta da Santa Sé e da Igreja às solicitações vindas das dioceses de todo o mundo em ordem a enfrentar a emergência sanitária e as necessidades que a pandemia fez surgir.

Na verdade, desde o início, ficou patente que a pandemia teria um impacto notável sobre o estilo de vida a que estávamos habituados, subtraindo comodidades e certezas consolidadas. Colocou-nos em crise, mostrando-nos a fisionomia dum mundo doente não só por causa do vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e políticos, e mais ainda nos relacionamentos humanos. Salientou os riscos e as consequências duma forma de viver dominada pelo egoísmo e a cultura do descarte e colocou-nos perante uma alternativa: continuar pela estrada percorrida até agora ou empreender um novo caminho.

Assim, gostaria de me deter sobre algumas das crises provocadas ou evidenciadas pela pandemia, contemplando ao mesmo tempo as oportunidades que derivam delas para se construir um mundo mais humano, justo, solidário e pacífico.

Crise sanitária

A pandemia confrontou-nos fortemente com duas dimensões ineludíveis da existência humana: a doença e a morte. Por isso mesmo, recorda o valor da vida, de cada vida humana e da sua dignidade, em todos os momentos do seu itinerário terreno desde a conceção no ventre materno até ao seu fim natural. Infelizmente, é doloroso constatar que, a pretexto de garantir pretensos direitos subjetivos, um número crescente de legislações no mundo está a afastar-se do dever imprescindível de defender a vida humana em cada uma das suas fases.

A pandemia lembra-nos ainda o direito ao cuidado, de que é destinatário todo o ser humano, como destaquei também na Mensagem para o Dia Mundial da Paz, celebrado a 1 de janeiro passado: «toda a pessoa humana é fim em si mesma, e nunca um mero instrumento a ser avaliado apenas pela sua utilidade. Foi criada para viver em conjunto na família, na comunidade, na sociedade, onde todos os membros são iguais em dignidade. E desta dignidade derivam os direitos humanos, bem como os deveres, que recordam, por exemplo, a responsabilidade de acolher e socorrer os pobres, os doentes, os marginalizados».[2] Se se suprime o direito à vida dos mais frágeis, como se poderão garantir eficazmente todos os outros direitos?

Nesta perspetiva, renovo o meu apelo para que sejam oferecidos a cada pessoa humana os cuidados e a assistência de que necessita. Para isso, é indispensável que todos os que têm responsabilidades políticas e de governo se esforcem por favorecer, antes de mais nada, o acesso universal aos cuidados básicos de saúde, incentivando também a criação de postos médicos locais e de estruturas sanitárias adequadas às reais necessidades da população, bem como a disponibilidade de terapias e medicamentos. Com efeito, não pode ser a lógica do lucro a guiar um campo tão delicado como o da assistência e tratamento sanitários.

Também é indispensável que os notáveis progressos médicos e científicos feitos ao longo dos anos, que permitiram sintetizar em muito pouco tempo vacinas que se esperam eficazes contra o coronavírus, beneficiem toda a humanidade. Portanto, exorto todos os Estados a contribuírem ativamente para as iniciativas internacionais tendentes a assegurar uma distribuição equitativa das vacinas, não segundo critérios puramente económicos, mas tendo em conta as necessidades de todos, especialmente das populações mais carenciadas.

Em todo o caso, em presença dum inimigo furtivo e imprevisível como a Covid-19, a real possibilidade de acesso às vacinas deve ser sempre acompanhada por comportamentos pessoais responsáveis, visando impedir a difusão da doença, mediante as medidas necessárias de prevenção a que já nos habituamos nestes meses. Seria fatal confiar apenas na vacina, como se fosse uma panaceia que dispensa o indivíduo do esforço constante em prol da saúde própria e dos outros. A pandemia mostrou-nos que ninguém é uma ilha, evocando a famosa expressão do poeta inglês John Donne, e que «a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade».[3]

Crise ambiental

Não é apenas o ser humano que está doente, a nossa Terra também. A pandemia mostrou-nos mais uma vez como ela é frágil e necessitada de cuidados.

Há certamente diferenças profundas entre a crise sanitária provocada pela pandemia e a crise ecológica causada por uma exploração indiscriminada dos recursos naturais. A segunda tem uma dimensão muito mais complexa e permanente, e requer soluções compartilhadas de longo prazo. Por exemplo, os impactos da alteração climática – sejam eles diretos como os eventos climáticos extremos das inundações e secas, ou indiretos como a desnutrição e as doenças respiratórias – aparecem muitas vezes carregados de consequências que persistem por muito tempo.

A resolução destas crises requer uma colaboração internacional para o cuidado da nossa casa comum. Espero, pois, que a próxima Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), marcada para novembro próximo em Glasgow, permita encontrar um acordo eficaz para enfrentar as consequências da alteração climática. Este é o tempo de agir, pois são já palpáveis os efeitos duma prolongada inação.

Penso, por exemplo, nas repercussões sobre as numerosas pequenas ilhas do Oceano Pacífico que estão gradualmente em risco de desaparecer. É uma tragédia que causa não só a destruição de aldeias inteiras, mas força também as comunidades locais, e sobretudo as famílias, a deslocarem-se continuamente, perdendo identidade e cultura. Penso ainda nas inundações do sudeste asiático, especialmente no Vietname e nas Filipinas, que provocaram vítimas e deixaram famílias inteiras sem meios de subsistência. E também não se pode silenciar o aquecimento progressivo da Terra, que causou incêndios devastadores na Austrália e na Califórnia.

E as mudanças climáticas, agravadas por intervenções imprudentes do homem e agora pela pandemia, são causa de grave preocupação também na África. Refiro-me, em primeiro lugar, à insegurança alimentar que, durante o ano passado, afetou particularmente o Burkina Faso, o Mali e o Níger, com milhões de pessoas a passar fome; bem como à situação no Sudão do Sul, onde existe o risco duma carestia e onde persiste aliás uma grave emergência humanitária: mais de um milhão de crianças sofre escassez de alimentos, enquanto são frequentemente obstaculizados os corredores humanitários e limitada a presença das agências humanitárias no território. Para fazer frente a esta situação é muito urgente também que as autoridades do Sudão do Sul superem as incompreensões e persistam no diálogo político para uma plena reconciliação nacional.

Crise econômica e social

O objetivo de conter o coronavírus impeliu muitos governos a adotarem medidas restritivas da liberdade de circulação, implicando, durante vários meses, o encerramento de casas comerciais e a desaceleração geral das atividades produtivas, com graves repercussões nas empresas, sobretudo médias e pequenas, no emprego e, consequentemente, na vida das famílias e de setores inteiros da sociedade, especialmente os mais frágeis.

A crise económica resultante evidenciou outro morbo que afeta o nosso tempo: o duma economia baseada na exploração e no descarte quer das pessoas quer dos recursos naturais. Com demasiada frequência, se esqueceu da solidariedade e dos outros valores que consentem à economia estar ao serviço do desenvolvimento humano integral, e não de interesses particulares, e perdeu-se de vista a valência social da atividade económica e o destino universal dos bens e recursos.

Assim, a crise atual é a ocasião propícia para repensar a relação entre a pessoa e a economia. É precisa uma espécie de «nova revolução coperniciana» que coloque de novo a economia ao serviço do homem e não vice-versa, começando a «estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta».[4]

Para enfrentar as consequências negativas desta crise, numerosos governos previram várias iniciativas e a atribuição de enormes financiamentos. Não raro, porém, prevaleceram pressões para se buscar soluções particulares para um problema que apresenta, ao contrário, dimensões globais. Em todos os tempos, mas hoje ainda menos, não se pode pensar em agir sozinhos. São necessárias iniciativas comuns e partilhadas inclusive a nível internacional, sobretudo para apoio do emprego e proteção das camadas mais pobres da população. Nesta perspetiva, considero significativo o empenho da União Europeia e dos seus Estados-membros, que, apesar das dificuldades, souberam mostrar que se pode trabalhar arduamente para alcançar compromissos satisfatórios em benefício de todos os cidadãos. A verba proposta pelo plano UE da Próxima Geração representa um exemplo significativo de como a colaboração e a partilha dos recursos em espírito de solidariedade sejam objetivos não só desejáveis, mas realmente acessíveis.

Em muitas partes do mundo, a crise afetou sobretudo os trabalhadores em setores autónomos, os primeiros que viram desaparecer os seus meios de subsistência. Vivendo fora das margens da economia formal, não tiveram acesso sequer aos amortizadores sociais, incluindo subsídios de desemprego e a assistência médica. Assim, levados pelo desespero, muitos procuraram outras formas de rendimento, expondo-se a ser explorados por meio de trabalho ilegal ou forçado, da prostituição e de várias atividades criminosas, nomeadamente o tráfico de pessoas.

Ora todo o ser humano tem direito – tem direito – e deve poder obter «os recursos correspondentes a um digno padrão de vida».[5] Na verdade, é necessário que se garanta a todos a estabilidade económica para evitar os flagelos da exploração e combater a usura e a corrupção, que afligem muitos países no mundo, e muitas outras injustiças que se consumam todos os dias diante dos olhos cansados e distraídos da nossa sociedade contemporânea.

O aumento de tempo passado em casa fez também permanecer mais longamente, de forma alienante, em frente dos computadores e outros meios de comunicação, com graves repercussões sobre as pessoas mais vulneráveis, especialmente os pobres e desempregados. São presas mais fáceis da criminalidade informática – o crime cibernético – nos seus aspetos mais desumanizadores, desde as fraudes ao tráfico de seres humanos, à exploração da prostituição, incluindo de menores, bem como à pornografia infantil.

O encerramento das fronteiras por causa da pandemia, juntamente com a crise económica, acentuou também várias emergências humanitárias, tanto nas áreas de conflito como nas regiões afetadas pela alteração climática e a seca, bem como nos campos de refugiados e migrantes. Penso de modo particular no Sudão, onde se refugiaram milhares de pessoas em fuga da região de Tigray, bem como noutros países da África subsariana, ou na região de Cabo Delgado em Moçambique, onde tantas pessoas foram obrigadas a abandonar a sua terra e se encontram agora em condições muito precárias. Pelo meu pensamento passam também o Iémen e a amada Síria, onde, além doutras emergências graves, a insegurança alimentar aflige grande parte da população e as crianças encontram-se exaustas pela desnutrição.

Em vários casos, as crises humanitárias são agravadas pelas sanções económicas, que acabam, na maioria das vezes, por se repercutir principalmente sobre as camadas mais frágeis da população, e não sobre os responsáveis políticos. Por isso, embora compreendendo a lógica das sanções, a Santa Sé não vê a sua eficácia e espera uma atenuação das mesmas, até para favorecer o fluxo de ajudas humanitárias, a começar pelos medicamentos e instrumentos sanitários, extremamente necessários neste tempo de pandemia.

Oxalá esta conjuntura que estamos a atravessar sirva, igualmente, de estímulo para perdoar ou, pelo menos, reduzir a dívida que pesa sobre os países mais pobres, impedindo efetivamente a sua recuperação e pleno desenvolvimento.

No ano passado, assistiu-se também a um novo aumento dos migrantes, que, devido ao encerramento das fronteiras, tiveram de recorrer a rotas sempre mais perigosas. Entretanto este fluxo massivo deparou-se com um aumento no número das rejeições ilegais, muitas vezes implementadas para impedir os migrantes de pedirem asilo, em violação do princípio de não rejeição (non-refoulement). Muitos são intercetados e repatriados acabando em campos de recolha e detenção, onde sofrem torturas e violações dos direitos humanos, quando não encontram a morte ao atravessar mares e outras fronteiras naturais.

Os corredores humanitários, implementados durante os últimos anos, contribuem certamente para enfrentar algumas das referidas problemáticas, salvando numerosas vidas. Todavia a dimensão da crise torna cada vez mais urgente enfrentar pela raiz as causas que impelem a migrar, e exige também um esforço conjunto de apoio aos países de primeiro acolhimento, que assumem a obrigação moral de salvar vidas humanas. A propósito, aguarda-se com interesse a negociação do Novo Pacto da União Europeia sobre Migração e Asilo, embora observando que políticas e mecanismos concretos só funcionarão se forem sustentados pela necessária vontade política e o empenho de todas as partes envolvidas, incluindo a sociedade civil e os próprios migrantes.

A Santa Sé olha com apreço todos os esforços feitos a favor dos migrantes e apoia o empenho da Organização Internacional para as Migrações (OIM) – celebra-se este ano o septuagésimo aniversário da sua fundação –, no pleno respeito dos valores expressos na sua Constituição e da cultura dos Estados-membros onde atua a Organização. Da mesma forma a Santa Sé, como membro do Comité Executivo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), permanece fiel aos princípios formulados na Convenção de Genebra de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e no Protocolo de 1967, que estabelecem a definição legal de refugiado, os seus direitos e também a obrigação legal que os Estados têm de os proteger.

Desde a Segunda Guerra Mundial que o mundo não tinha assistido a um aumento tão dramático do número de refugiados, como o que vemos hoje. Por isso, é urgente que se renove o empenho em prol da proteção deles, bem como dos deslocados internos e de todas as pessoas vulneráveis forçadas a fugir da perseguição, da violência, dos conflitos e das guerras. A este respeito, apesar dos esforços importantes realizados pelas Nações Unidas na busca de soluções e propostas concretas para enfrentar de forma coerente o problema dos deslocamentos forçados, a Santa Sé expressa a sua preocupação pela situação dos deslocados em várias partes do mundo. Refiro-me, em primeiro lugar, à área central do Sahel, onde, em menos de dois anos, aumentou vinte vezes o número dos deslocados internos.

Crise da política

As situações críticas, que mencionei até agora, colocam em destaque uma crise muito mais profunda, que de certa forma está na raiz das outras e cujo caráter dramático foi evidenciado precisamente pela pandemia. É a crise da política, que já há algum tempo se faz sentir em muitas sociedades e cujos efeitos dilacerantes surgiram durante a pandemia.

Um dos fatores emblemáticos de tal crise é o aumento das contraposições políticas e a dificuldade, senão mesmo a incapacidade, de procurar soluções comuns e partilhadas para os problemas que afligem o nosso planeta. É uma tendência que se verifica já há bastante tempo e se difunde cada vez mais, mesmo em países de antiga tradição democrática. Manter vivas as realidades democráticas é um desafio deste momento histórico,[6] que toca de perto todos os Estados, sejam eles pequenos ou grandes, economicamente avançados ou em vias de desenvolvimento. Nestes dias, o meu pensamento dirige-se em particular para o povo da Birmânia, ao qual expresso a minha estima e solidariedade. O caminho para a democracia empreendido nos últimos anos foi bruscamente interrompido pelo golpe da semana passada. O mesmo levou à prisão de vários líderes políticos, que espero sejam rapidamente postos em liberdade como sinal de encorajamento a um dialogo sincero em prol do bem do país.

Aliás, como afirmava Pio XII na sua memorável Radiomensagem do Natal de 1944, «exprimir a própria opinião sobre os deveres e os sacrifícios que lhe são impostos e não ser obrigado a obedecer sem ter sido ouvido: eis dois direitos do cidadão, que encontram na democracia – como o próprio nome indica – a sua expressão».[7] A democracia baseia-se no respeito mútuo, na possibilidade de todos concorrerem para o bem da sociedade e na consideração de que as opiniões diferentes não só não prejudicam o poder e a segurança dos Estados, mas, num confronto honesto, enriquecem-se mutuamente e permitem encontrar soluções mais adequadas para os problemas que se devem enfrentar. O processo democrático requer que se persiga um caminho de diálogo inclusivo, pacífico, construtivo e respeitoso entre todas as componentes da sociedade civil em cada cidade e nação. Os acontecimentos que de Oriente a Ocidente, segundo formas e em contextos diversos, marcaram o último ano, mesmo – repito – em países de longa tradição democrática, mostram quão ineludível seja este desafio e como não possamos eximir-nos da obrigação moral e social de o enfrentar com uma atitude positiva. O desenvolvimento duma consciência democrática exige que se superem os personalismos e prevaleça o respeito pelo estado de direito. Na verdade, o direito é o pressuposto indispensável para o exercício de todo o poder e deve ser garantido pelos órgãos competentes, independentemente dos interesses políticos dominantes.

Infelizmente, a crise da política e dos valores democráticos faz-se sentir também a nível internacional, com repercussões em todo o sistema multilateral e a consequência evidente de Organizações pensadas para favorecer a paz e o desenvolvimento – com base no direito e não na «lei do mais forte» –, verem comprometida a sua eficácia. Sem dúvida, não se pode dissimular que o sistema multilateral também apresentou algumas limitações nos últimos anos. A pandemia é uma ocasião que não se deve perder para pensar e implementar reformas orgânicas, para que as Organizações internacionais reencontrem a sua vocação essencial de servir a família humana para preservar a vida de cada pessoa e a paz.

Um dos sinais da crise política é precisamente a reticência que se verifica muitas vezes quando se empreendem percursos de reforma. Não é preciso ter medo das reformas, ainda que requeiram sacrifícios e, não raramente, uma mudança de mentalidade. Todo o corpo vivo precisa continuamente de se renovar, colocando-se nesta perspetiva também as reformas em curso na Santa Sé e na Cúria Romana.

Em todo o caso, não faltam sinais encorajadores, como a entrada em vigor, há poucos dias, do Tratado para a Proibição das Armas Nucleares, bem comoa prorrogação por mais cinco anos do Novo Tratado sobre a Redução das Armas Estratégicas (o chamado New START) entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América. Aliás, como voltei a afirmar na recente encíclica Fratelli tutti, «se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI, (…) muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência da dissuasão nuclear para responder de modo eficaz a tais desafios».[8] Com efeito, não é «sustentável um equilíbrio baseado no medo, quando de facto ele tende a aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos».[9]

Este esforço no campo do desarmamento e da não proliferação de armas nucleares, que, apesar das dificuldades e reticências, é preciso intensificar, deveria ser feito igualmente no que diz respeito às armas químicas e convencionais. No mundo, existem demasiadas armas! «A justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana – afirmava em 1963 São João XXIII – terminantemente exigem que se pare com essa corrida ao poderio militar, que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente».[10] E enquanto, com o pulular das armas, aumenta a violência a todos os níveis e vemos ao nosso redor um mundo dilacerado por guerras e divisões, sentimos crescer cada vez mais a exigência de paz, duma paz que «não é apenas ausência de guerra, mas é uma vida rica de sentido, construída e vivida na realização pessoal e na partilha fraterna com os outros».[11]

Como gostaria que 2021 fosse o ano em que se inscrevesse a palavra fim no conflito sírio, iniciado já há dez anos! Para que isso aconteça, é necessário também um renovado interesse por parte da Comunidade internacional de enfrentar, com sinceridade e coragem, as causas do conflito e buscar soluções através das quais todos, independentemente da sua pertença étnica e religiosa, possam contribuir como cidadãos para o futuro do país.

Os meus votos de paz dirigem-se obviamente para a Terra Santa. A confiança mútua entre Israelitas e Palestinenses deve ser a base para um renovado e resolutivo diálogo direto entre as Partes a fim de se solucionar um conflito que já dura há demasiado tempo. Convido a Comunidade internacional a apoiar e facilitar este diálogo direto, sem a pretensão de ditar soluções cujo horizonte não seja o bem de todos. Palestinenses e Israelitas, nutrem ambos – tenho a certeza – o desejo de poderem viver em paz.

De igual modo espero um renovado esforço político nacional e internacional por favorecer a estabilidade do Líbano, que atravessa uma crise interna e corre o risco de perder a sua identidade e encontrar-se ainda mais envolvido nas tensões regionais. Há grande necessidade de que o país mantenha a sua identidade única, até para assegurar um Médio Oriente plural, tolerante e diversificado, no qual a presença cristã possa oferecer o seu contributo e não fique reduzida a uma minoria que se deve proteger. Os cristãos constituem o tecido conectivo histórico e social do Líbano e deve-lhes ser assegurada, através das suas numerosas obras educativas, sanitárias e sociocaritativas, a possibilidade de continuar a trabalhar pelo bem do país, de que foram fundadores. Enfraquecer a comunidade cristã cria o risco de destruir o equilíbrio interno e a própria realidade libanesa. E, nesta perspetiva, deve ser enfrentada também a presença dos refugiados sírios e palestinenses. Além disso, sem um processo urgente de retoma económica e de reconstrução, corre-se o risco do falimento do país, com a possível consequência de perigosas derivas fundamentalistas. Por isso, é necessário que todos os líderes políticos e religiosos, deixando de lado os próprios interesses, se empenhem por buscar a justiça e implementar verdadeiras reformas para o bem dos cidadãos, agindo de forma transparente e assumindo-se a responsabilidade das suas ações.

Desejo paz ainda para a Líbia, também ela dilacerada por um longo conflito, com a esperança de que o recente «Fórum do Diálogo Político da Líbia», realizado na Tunísia em novembro passado sob os auspícios das Nações Unidas, permita efetivamente o início do almejado processo de reconciliação do país.

E outras áreas do mundo são também motivo de preocupação. Refiro-me, em primeiro lugar, às tensões políticas e sociais na República Centro-Africana, bem como às que afetam em geral a América Latina, cujas raízes se encontram nas profundas desigualdades, nas injustiças e na pobreza, que ofendem a dignidade das pessoas. Da mesma forma, acompanho com particular solicitude a deterioração das relações na Península da Coreia, que culminou com a destruição do departamento de ligação inter-coreana em Kaesong; e também a situação no sul do Cáucaso, onde permanecem congelados vários conflitos, alguns reacesos no decurso do ano passado, que ameaçam a estabilidade e a segurança de toda a região.

Por último, não posso esquecer outro flagelo grave deste nosso tempo: o terrorismo, que ceifa anualmente, em todo o mundo, numerosas vítimas entre a população civil inerme. É um mal que tem vindo a crescer desde os anos setenta do século passado e teve um momento culminante nos atentados que atingiram os Estados Unidos da América em 11 de setembro de 2001, matando quase três mil pessoas. Infelizmente, o número dos atentados tem-se intensificado nos últimos vinte anos, atingindo vários países em todos os continentes. Refiro-me de modo particular ao terrorismo que ataca sobretudo na África subsariana, mas também na Ásia e na Europa. Penso em todas as vítimas e seus familiares, que viram arrebatar-lhes pessoas queridas por uma violência cega, motivada por distorções ideológicas da religião. Aliás, com frequência, os alvos de tais ataques são precisamente os lugares de culto, onde se encontram fiéis reunidos em oração. A propósito, gostaria de salientar que a proteção dos lugares de culto é uma consequência direta da defesa da liberdade de pensamento, consciência e religião, sendo um dever das autoridades civis, independentemente da sua cor política e filiação religiosa.

Excelências, Senhoras e Senhores!

Estou para concluir as minhas considerações, mas desejo ainda deter-me numa última crise que talvez seja a mais grave de todas: a crise dos relacionamentos humanos, expressão duma crise antropológica geral, que tem a ver com a própria conceção da pessoa humana e a sua transcendente dignidade.

A pandemia, que nos forçou a longos meses de isolamento e muitas vezes de solidão, evidenciou a necessidade de relacionamentos humanos que tem toda a pessoa. Penso, antes de mais nada, nos estudantes que não puderam frequentar regularmente a escola ou a universidade. «Procurou-se por todo o lado implementar uma resposta rápida através de plataformas educativas informáticas, que evidenciaram não só uma acentuada disparidade de oportunidades educacionais e tecnológicas, mas também o facto de muitas crianças e adolescentes, devido ao confinamento e outras carências anteriores, terem sofrido atrasos no processo normal de desenvolvimento pedagógico».[12] Além disso, o aumento do ensino à distância implicou também uma maior dependência das crianças e adolescentes da internet e, em geral, das formas virtuais de comunicação, tornando-os mais vulneráveis e expostos a atividades criminosas em rede.

Assistimos a uma espécie de «catástrofe educativa». Deixai-me repeti-lo: assistimos a uma espécie de «catástrofe educativa», face à qual não se pode permanecer inerte; exige-o o bem das futuras gerações e da sociedade inteira. «Hoje temos necessidade duma renovada estação de empenhamento educativo, que envolva todas as componentes da sociedade»,[13] pois a educação é «o antídoto natural à cultura individualista, que às vezes degenera num verdadeiro culto do “ego” e no primado da indiferença. O nosso futuro não pode ser a divisão, o empobrecimento das faculdades de pensamento e imaginação, de escuta, diálogo e compreensão mútua».[14]

Entretanto os longos períodos de confinamento permitiram também passar mais tempo em família. Para muitos, foi um momento importante para redescobrir os relacionamentos mais queridos. Aliás o matrimónio e a família «constituem um dos bens mais preciosos da humanidade»[15] e o berço de toda a sociedade civil. O grande Papa São João Paulo II, cujo centenário de nascimento celebramos no ano passado, no seu precioso ensinamento sobre a família recordava: «Diante da dimensão mundial que hoje carateriza os vários problemas sociais, a família vê alargar-se de modo completamente novo o seu dever para com o desenvolvimento da sociedade» e cumpre-o primariamente «oferecendo aos filhos um modelo de vida fundada sobre os valores da verdade, da liberdade, da justiça e do amor».[16] Mas nem todos puderam viver com serenidade na sua casa, tendo algumas coabitações degenerado em violências domésticas. Exorto a todos, autoridades públicas e sociedade civil, a apoiarem as vítimas da violência na família; sabemos que, infelizmente, são as mulheres, muitas vezes juntamente com os seus filhos, que pagam o preço mais alto.

As exigências, que visavam conter a difusão do vírus, estenderam as suas ramificações também sobre várias liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de religião, com a limitação do culto e das atividades educativas e sociocaritativas das comunidades de fé. É preciso, porém, não transcurar a dimensão religiosa pois constitui um aspeto fundamental da personalidade humana e da sociedade, que não pode ser esquecido. Pois, não obstante se esteja procurando proteger as vidas humanas da propagação do vírus, não se pode considerar a dimensão espiritual e moral da pessoa como secundária relativamente à saúde física.

Além disso, a liberdade de culto não constitui um corolário da liberdade de reunião, mas deriva essencialmente do direito à liberdade religiosa, que é direito humano primário e fundamental. Por isso é necessário que a mesma seja respeitada, protegida e defendida pelas autoridades civis, como a saúde e a integridade física. Aliás um bom cuidado do corpo nunca pode prescindir do cuidado da alma.

Ao escrever a Cangrande della Scala, Dante Alighieri sublinha o objetivo da sua Comédia: «afastar, as pessoas que vivem esta vida, do estado de miséria e conduzi-las a um estado de felicidade».[17] O mesmo, embora com funções e em esferas diferentes, é também o dever tanto das autoridades religiosas como das civis. A crise dos relacionamentos humanos e, consequentemente, as outras crises mencionadas não se podem vencer senão salvaguardando a dignidade transcendente de cada pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.

E com esta recordação do grande poeta florentino, cujo sétimo centenário da sua morte tem lugar este ano, desejo também dirigir uma saudação particular ao povo italiano, que foi o primeiro na Europa a ter de enfrentar as graves consequências da pandemia, exortando-o a não se deixar abater pelas dificuldades atuais, mas trabalhar unido para construir uma sociedade onde ninguém seja descartado ou esquecido.

Queridos Embaixadores!

O ano de 2021 é um tempo a não perder; e não se perderá na medida em que soubermos colaborar com generosidade e empenho. Neste sentido, considero que a fraternidade seja o verdadeiro remédio para a pandemia e os inúmeros males que nos atingiram. Fraternidade e esperança são remédios de que o mundo precisa, hoje, tanto como as vacinas.

Sobre cada um de vós e os vossos países, invoco abundantes dons celestes, com votos de que este ano se revele propício para aprofundar os laços de fraternidade que unem toda a família humana.

Obrigado!

Fonte: https://www.acidigital.com/noticias/discurso-do-papa-francisco-ao-corpo-diplomatico-ante-a-santa-se-59343

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.