Corpo, alma e espírito? EB

alma-morrendo-62c441Em síntese: São Paulo em 1Ts 5,23 menciona a tricotomia “corpo, alma e espírito” – É de notar, porém, que esta é a única ocorrência da tricotomia no epistolário paulino; geralmente o Apóstolo fala de “carne e espírito” – o que bem mostra que S. Paulo não quis fazer da tricotomia um dogma. Espírito (pneuma) nas cartas paulinas tem significados diversos, pode, entre outras coisas, designar o Dom da graça divina, que torna o cristão habitáculo da Ssma. Trindade. Esta significação ocorre, com especial clareza, em 1Cor 2, 12-15, onde o autor sagrado distingue entre o homem psíquico ou o homem deixado aos seus próprios recursos naturais, e o homem pneumático, que é o homem psíquico enriquecido pelo Dom da graça divina. A tricotomia de 1Ts 5,23 pode ser entendida à luz de 1Cor 2, 12-16.

Muitos afirmam haver três elementos constitutivos do ser humano: corpo, alma e espírito (soma, psyché e pneuma). Para corroborar sua tese, citam 1Ts 5,23.

“Que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.

Cita-se também Lc 1,46s.

Que pensar a respeito de 1Ts 5, 23?

Pode-se entender o texto Paulino em dois sentidos:

a) O Apóstolo quis designar o homem inteiro consagrado a Deus e pronto para receber o Cristo vindouro. Ter-se-á então servido da tricotomia platônica que lhe ocorreu ao escrever, todavia sem pretender fazer da mesma um dogma.  Aliás, esta é única vez em que o Apóstolo menciona a tricotomia;  geralmente fala de corpo ou carne (basar, em hebraico), indicando a parte material e frágil do ser humano, e espírito, significando o princípio vital do cristão enriquecido pela graça divina:

“A carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne.  Eles se opõem mutuamente, de modo que não fazeis o que quereis” (Gl 5,17).

Ver outrossim Rm 1, 9;6, 16; 1Cor 2,11;16,18; 2Cor 2, 13;7,13; Gl 6,18…

b) Pode-se entender 1Ts 5,23 de outro modo: psiché seria p princípio vital animador do corpo humano, que em português é dito “alma”. Pneuma seria o Dom da graça divina, que propicia comunhão com o próprio Deus. Tal distinção é muito nítica em 1Cor 2,12-15:

“O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado”.

O Apóstolo menciona também “o corpo psíquico” (o corpo natural) e “o corpo espiritual”, corpo glorificado pela transparente presença da graça divina:

Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual… Primeiro não foi feito o que é espiritual, mas o que é psíquico: o que é espiritual, vem depois” (1Cor 15,44-46).

Em conclusão: seria falso querer deduzir de 1Ts 5,23 um artigo de fé ou mesmo apenas uma antropologia teológica. O apóstolo não visava a isto. Ele é, antes, dicotômico nas suas cartas em geral.

Está claro que ele reconhece também o Pneuma como Pessoa Divina, que habita no cristão e o chama à santidade de vida:

“Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará também vida aos vossos corpos mortais mediante o seu Espírito, que habita em vós” (Rm 8,11).

E Lc 1,46s?

Eis o texto em foco:

“Minha lama engrandece o Senhor

E meu espírito exulta em Deus meu Salvador”.

Como se vê, o texto é poético. Ora a poesia hebraica segue o ritmo do paralelismo sinônimo, paralelismo que pode ser também antitético e sintético. No caso de Lc 1,46s, alma e espírito são sinônimos entre si. O louvor a Deus é proferido duas vezes pelo eu de Maria, ora designado como alma, ora como espírito.

À guisa de complemento, seguem-se breves noções de antropologia católica.

Antropologia católica

O ser humano é composto e corpo material e alma espiritual.

Há quem pergunte:  qual a diferença entre alma e espírito?

Responderemos que o espírito é um ser dotado de inteligência e vontade, mas sem corpo, sem dimensões materiais, sem forma, sem tamanho. Há três tipos de espírito, como se pode ver abaixo:

Não criado:  Deus Espírito:

Para existir sem corpo: o anjo (bom ou mau)

Criado:

Para se aperfeiçoar no corpo: alma humana

O corpo é mortal, pois consta de elementos materiais, que, com o tempo, se vão desgastando.

A alma humana, sendo espiritual, é imortal por si mesma; sendo simples, ela não se decompõe. Pode, sem dúvida, ser aniquilada por Deus, que a criou a partir do nada.  Sabe-se, porém, que Deus não destrói as criaturas que Ele fez com muito amor.

Corpo e alma, embora sejam distintos um do outro, são complementares entre si;  formam um só todo psicossomático. Nenhuma atividade do homem é meramente psíquica ou meramente somática. Embora a alma seja espiritual e imortal por si mesma, ela precisa do corpo para desenvolver suas potencialidades. Uma vez separada do corpo após a morte, ela usufruirá dos valores adquiridos enquanto unido ao corpo.

2. A doutrina assim apresentada nada tem que ver com dualismo. Este implica antagonismo entre partes opostos. Ocorre nas teorias maniquéia, órfica, pitagória e no hinduísmo, que têm a matéria como algo de intrinsecamente mau e o espírito como algo de bom por sua natureza mesma. A doutrina cristã rejeita o dualismo, pois afirma que a matéria é, como o espírito, criatura de Deus e, por conseguinte, ontologicamente boa. Mas nem por isso a doutrina cristã cai no monismo, que identifica entre si matéria e espírito. – Entre dualismo e monismo situa-se a dualidade; esta professa a distinção de espírito e matéria, mas não os julga antitéticos entre si, e, sim, complementares. Analogamente homem e mulher são criaturas distintas uma da outra, mas não antagônicas, e, sim, feitas para se complementar mutuamente.

Recapitulando esquematicamente:

Dualismo: dois princípios opostos entre si por sua própria natureza ou no plano ontológico;

Dualismo: dois princípios distintos, mas não opostos entre si, e, sim,  complementares;

Monismo:  uma só realidade com facetas diversas.

Ora corpo e alma formam uma dualidade, e não dualismo nem monismo. A dualidade de corpo e alma é afirmada em Mt 10,28: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena”.

Frente a recentes concepções monistas, a Igreja se pronunciou.

Com efeito; aos 17/05/1979 foi promulgada uma Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, que incute a distinção entre corpo e alma.  Eis as suas afirmações principais

“Esta Sagrada Congregação, que tem a responsabilidade de promover e defender a doutrina da fé, propõe-se hoje recordar aquilo que a Igreja ensina em nome de Cristo,  especialmente quanto ao que sobrevém entre a morte do cristão e a ressurreição universal:

1) A Igreja crê numa ressurreição dos mortos (cf. Símbolo dos Apóstolos).

2) A Igreja entende esta ressurreição referida ao homem todo; esta, para os efeitos, não é outra coisa se não a extensão, aos homens, da própria ressurreição de Cristo.

3) A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, ainda que sem corpo. Para designar esse elemento, a Igreja emprega a palavra alma, consagrada pelo uso que dela fazem a S. Escritura e a Tradição.  Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos sentidos. Ela julga, não obstante, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumento verbal para sustentar a fé dos cristãos.

4) A Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, se adotadas, tornariam absurdas ou ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua substância, constituem lugares teológicos.

5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera a gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Constituição Dei Verbum 14), que Ela considera como distinta e diferida em relação àquela condição própria do homem imediatamente após a morte.

6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem após a morte, exclui qualquer explicação que tire o sentido à Assunção de Nossa Senhora naquilo que ela tem de único, ou seja, o fato de ser a glorificação corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a todos os outros eleitos.

7) A  Igreja, em adesão fiel ao Novo Testamento e à Tradição, acredita na felicidade dos justos que estarão um dia com Cristo. A mesmo tempo Ela crê numa pena que há de castigar para sempre o pecador que for privado da visão de Deus, e ainda na repercussão dessa pena em todo o ser do mesmo pecador. E, por fim, Ela crê existir para os eleitos absolutamente diversa da pena dos condenados. É isto que a Igreja entende quando Ela fala de inferno e de purgatório”.

Nesta Declaração chamam-nos a atenção especialmente

– o item 3:  afirma a separação de corpo e alma na morte e a subsistência, sem corpo, da alma humana, elemento espiritual, dotado de inteligência e vontade (núcleo da personalidade);

– os itens 5 e 6:  ensinam que não coincidem entre si a hora da morte de cada indivíduo e a parusia ou manifestação final de Jesus Cristo. Se alguém morrer em 2003, não creia que assistirá imediatamente ao fim do mundo, alegando que, após a morte não há futuro nem passado. A ausência de futuro e passado ou o regime da eternidade é de Deus só. A criatura que deixa este mundo, emancipa-se do tempo, mas não passa a viver o regime da eternidade; a sua duração será medida pelo EVO ou por uma sucessão de atos psicológicos. Ver PR 390/1994, pp. 494-504.

Revista:  “PERGUNTE  E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº  495  Ano:  2003 – p. 422

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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