Concílio Vaticano II: O povo de Deus – EB

REVISTA: PERGUNTE E RESPONDEREMOS

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 493 – Ano : 2003 – p.
310 por
José Comblin

 Em síntese:  O autor julga que a teologia do Concílio do
Vaticano II foi escamoteada pelos opositores do Concílio receosos de uma falsa
democratização da Igreja.  A Igreja é,
segundo Comblin, o povo de Deus, isto é, Igreja dos pobres, que os poderosos
excluem e oprimem, principalmente na América Latina, onde é candente o problema.
– O autor não leva em conta a índole própria da Igreja, que não é a de uma
república democrática, mas é a de um Sacramento, realidade humana pela qual
passa a graça divina.

O Pe. José Comblin nasceu na
Bélgica: foi ordenado sacerdote em 1941. 
Desde 1958 trabalha na América Latina, onde tem lecionado em seminários
do Equador, do Chile e do Brasil. 
Atualmente reside no interior da Paraíba, onde continua muito
ativo.  Em 2002 publicou o livro “O povo
de Deus”, no qual exprime sua concepção democratizante de Igreja e que passamos
a analisar.

As mudanças sufocadas

O Pe. Comblin julga que o
Concílio do Vaticano II, assumindo a expressão “povo de Deus” para definir a
Igreja, tinha em vista reformar a própria Igreja no sentido de democratizá-la a
abri-la para as reivindicações do mundo contemporâneo.  Este projeto, porém, terá sido sufocado pelos
opositores após o Concílio/ silenciaram “povo de Deus”, substituindo esta
fórmula por “comunhão” … São palavras do autor às pp. 127s do seu livro:

“Uma Igreja puramente
comunhão não tem corpo, não tem matéria, não evoca nada concreto.  Ela é puramente imaterial, uma comunhão de
almas tocadas de vez em quando por sinais materiais – os mesmos para
todos.  Essa Igreja é ainda sem corpo,
espírito sem matéria.  Sobrevoa a
história humana, mas não entra nela.  Não
entra no mundo, toca nele tangencialmente de vez em quando, mas permanece acima
dele.

Da mesma maneira essa Igreja
espiritual não tem história.  Uma
comunhão não tem história.  Um povo tem
história”.Igreja “povo de Deus” é
Igreja dos que são materialmente pobres, em oposição a Igreja “prisioneira dos
poderes deste mundo” (p. 410).  Eis como
se exprime Comblin no final do seu livro (p. 410).

“Entre as duas vertentes, a
Igreja deve escolher, definir-se.  Não
definir-se já quer dizer ter-se definido. Se guarda o silêncio, é sinal de que
escolheu a aliança com os poderes.  Quem
está com os poderosos nunca reconhece que está com os poderosos:  fica calado, porque não pode ou não quer
dizer que está com os pobres.

Por isso a expressão “povo
de Deus” é tão importante.  Ela significa
uma opção, a opção de Medelin.  Quem está
com os poderes não pode ter uma preocupação de povo.  Não precisa do povo e o povo atrapalha a sua
vida.  Quer ser ele mesmo, de acordo com
o modelo neoliberal, e mais nada.  Povo
quer dizer realidade humana corporal, material, histórica, angústia e
esperança.  Quem tem poder vê no povo
somente um sujeito que limita a liberdade individual, a liberdade dos
poderosos, que é dependência da vontade de poder”.

No último parágrafo do seu livro
o Pe. Comblin alude “ao próximo pontificado” e ao dever de restaurar a
concepção de “povo de Deus”.  Coloca-se
assim na linha dos que propõem ao Papa atual ou a seu sucessor a convocação do
Concílio do Vaticano III.  Com efeito,
cerca de trinta1 Bispos (dos quais a grande maioria é do Brasil), juntamente
com presbíteros, Religiosos e leigos, pleiteiam a reunião do episcopado do
mundo inteiro longe de Roma (para não sofrerem a influência da Cúria Romana) a
fim de estudar as reivindicações de certos setores da sociedade e lhes dar a
aprovação da Igreja: tais seriam o aborto, o homossexualismo e as uniões gays,
o reconhecimento das uniões de divorciados e recasados, o uso do preservativo,
o celibato facultativo ao clero …  Uma
vez aceitas essas práticas pelos conciliares, fariam pressão sobre o Papa para
que lhes desse seu beneplácito ou tentariam legitimá-las perante o público,
mesmo sem o consentimento do Papa. 
Propugna-se assim indiretamente a teoria do conciliarismo, que atribui a
um Concílio geral autoridade sobre o próprio Papa.  Tal teoria teve seus arautos em teólogos dos
séculos XIV e XV, por ocasião do grande cisma do Ocidente, quando havia um Papa
legítimo e dois antipapas; a confusão era tal que, para resolvê-la, muitos
queriam atribuir a um Concílio geral a faculdade de julgar até o Papa legítimo
e depô-lo.  Ora em nossos dias há quem
julgue que a Igreja está em fase de recuo e só um Concílio geral a poderá
livrar deste mal, pressionando o Papa ou passando por cima dele.

Pergunta-se agora:

Que dizer ?

Proporemos quatro
observações a quanto acaba de ser dito.

Povo de Deus

A Igreja é povo de Deus não
no sentido de uma república popular, mas no sentido de que é uma assembléia de
homens e mulheres convocados pelo Espírito Santo para ser portador e
transmissores da Palavra de Deus e da comunhão de vida do próprio Deus.  Com outros termos, a Igreja é um sacramento
ou uma realidade humana que Deus utiliza para santificar os homens.  A autoridade não é delegada pelo povo aos
seus pastores, mas vem de Deus.  Por isto
não se pode admitir o conciliarismo.

O Conciliarismo

Esta teoria transfere para a
Igreja o modelo da sociedade civil; o Parlamento (o Concílio) julgaria o
presidente (o Papa) – o que, segundo as Escrituras e a Tradição é inconcebível.

Segundo as Escrituras
…  Ao entregar a Pedro o primado sobre
a Igreja, Jesus não propõe alguma instância humana superior a quem Pedro deva
dar contas; cf. Mt 5, 15-19; Lc 22, 31; Jo 21, 15-17.  Tudo o que Pedro liga ou desliga na terra é
ligado ou desligado nos céus.

A Tradição …  faz eco. 
O Sínodo Palmar (Synodus Palmaris) em Roma (501) declarou: Prima sedes a
nemine iudicatur (a sé primacial por ninguém é julgada); este axioma tornou-se
claro às gerações seguintes de modo que passou para o Código de Direito
Canônico; em conseqüência uma decisão conciliar tomada sem a aprovação do Papa
carece de valor ou a ninguém obriga. 
Tudo o que o apregoado Concílio do Vaticano III fizer sem a aprovação do
Papa, será inútil ou poderá desencadear um cisma.

A Igreja em recuo

 Longe de qualquer retrocesso, a Igreja está
numa fase de desdobramento normal.  Com
efeito, na sociedade internacional a Santa Sé tem imposto respeito e simpatia a
tal ponto que mantém relações diplomáticas com 175 países.  O Papa João Paulo II é figura acatada por
católicos e não católicos, dada a coragem com que se pronuncia em favor das
verdades de fé ou em favor da pessoa humana como tal. – Acontece, porém, que o
Papa tem proclamado os ditames da lei natural relativos à sexualidade, o que o
tornou pouco simpático aos “condescendentes”. 
Esta atitude de fidelidade, penosa como é, é dever da Igreja.  Não se pode dizer Sim a tudo o que a
mentalidade moderna preconiza.  Sem
dúvida, João Paulo II sofre por ter que resistir às aberrações do tempo
presente.  Mas esse sofrimento é
perpassado pela alegria de que está servindo aos irmãos.  É oportuno lembrar aquelas palavras de Jesus:
“Vós sois o sal da terra.  Se o sal
perder o seu sabor, com que o salgaremos?” 
(Mt 5,13).  Ser sal é incômodo
porque eqüivale a ser diferente, mas essa diferença é benéfica para a
sociedade.  Se o cristão deixar de ser
cristão, com que será de novo salgado ? 
E com que será salgado o mundo ? 
Ficará na sociedade uma lacuna que nada poderá preencher.  Ora o Papa tem exercido corajosamente o seu
papel.  Se viesse a se calar, a sociedade
se ressentiria de um vazio impreenchível.

Concílio do Vaticano II e
Povo de Deus

Quem procura nos documentos
do Concílio o significado de “povo de Deus”, encontrará aí profundas noções teológicas,
sem conotação de ordem sócio-político-econômica.  Eis o que se depreende:

“Aprouve a Deus santificar e
salvar os homens não singularmente, sem nenhuma conexão de uns com os outros,
mas constitui-los num povo que o conhecesse na verdade e santamente lhe
servisse” (Const. Lumen Gentium nº 9).

A palavra laós, povo, ocorre
140 vezes no Novo Testamento; verdade é que nem sempre significa propriamente a
Igreja, mas tem sempre significado religioso, nunca designa o povo
profano.  Este apelativo implica que a
Igreja continua a história do Povo de Deus do Antigo Testamento; é a consumação
da Aliança de Deus com o povo de Israel:

“O Senhor Deus escolheu
Israel como seu povo.  Estabeleceu com
ele uma aliança.  E instruiu-o passo a
passo … em preparação e figura para a nova e perfeita aliança, que se
estabeleceria em Cristo, e para transmitir uma revelação mais completa através
do próprio Verbo de Deus feito carne …

Na verdade, os que crêem em
Cristo, os que renasceram … não da carne, mas da água e do Espírito Santo
(cf. Jo 3,5s) são constituídos em linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação
santa, povo adquirido,… que outrora não era, mas agora é povo de Deus (1 Pd
2, 9s)” (Lumen Gentinum nº 9).

Além de indicar comunhão,
como acabamos de ver, o apelativo Povo de Deus põe em relevo a característica
de peregrinação ou de dinamismo da história que caminha para a sua plenitude.

Afirma-se, mediante a noção
de “Povo de Deus”, que a Igreja não são, em primeiro lugar, os clérigos, aos
quais se agregariam, a título complementar, os leigos.  Existem, ao contrário, unidade e igualdade
fundamentais entre todos os membros da Igreja. 
A diferença entre leigos e clérigos, devida à diversidade de funções,
vem em segundo lugar.  É o que o Concílio
do Vaticano II ensina na Constituição Lumen Gentium nº 32.

“Um é o povo eleito de Deus:
“Um só Senhor, uma só fé, um só Batismo” (Ef 4,5).  Comum é a dignidade dos membros pela
regeneração em
Cristo.  Comum a graça
de filhos.  Comum a vocação à
perfeição.  Uma só é a salvação, uma só é
a esperança e indivisa a caridade.  Não
há, em Cristo e na Igreja, nenhuma desigualdade em vista de raça ou nação,
condição social ou sexo, porquanto “não há judeu nem grego, não há servo nem
livre, não há varão nem mulher, porque todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl
3,28; cf. Cl 3,11).

Se na Igreja nem todos
seguem o mesmo caminho, todos no entanto são chamados à santidade e receberam a
mesma fé pela justiça de Deus (cf. 2Pd 1,1). 
E, ainda que alguns, por vontade de Cristo, sejam constituídos mestres,
dispensadores dos mistérios e pastores em benefício dos demais, reina contudo
em todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum a todos os fiéis
na edificação do Corpo de Cristo, porquanto a distinção que o Senhor estabeleceu
entre os ministros sacros e o restante Povo de Deus implica em si certa união,
pois os pastores e os demais fiéis estão intimamente relacionados entre
si.  Os Pastores da Igreja, segundo o
exemplo do Senhor, sirvam uns aos outros e aos fiéis.  Estes, por sua vez, ofereçam com alegria sua
colaboração aos Pastores e mestres”.

S. Agostinho (+ 430)
recomendava a seus fiéis essa igualdade fundamental, quando lhes dizia:

“Atemoriza-me o que sou para
vós; consola-me o que sou convosco.  Pois
para vós sou Bispo; convosco sou cristão. 
Aquilo é um dever, isto, uma graça. 
O primeiro é um perigo; o segundo, salvação” (sermão 340, 1).

Como se vê, o povo de Deus
não consta de uma única categoria de fiéis, materialmente pobres ficando os
ricos e poderosos excluídos do “povo de Deus”. 
Também os materialmente ricos integram o povo santo e para eles valem
também normas de desapego e da caridade fraterna.

A opção preferencial pelos
pobres feita em Medelin (1968) visa não somente a quem não tem dinheiro, mas
também àqueles pobres de valores espirituais, como são muitas vezes as pessoas
que não sabem de onde vêm e para onde vão … A tais pessoas a Igreja deseja
atender com especial zelo pastoral.

Há quem se queixe de que as
autoridades da Igreja estiveram sempre ao lado dos poderosos … Respondemos
observando que até o século XVI Igreja e Estado procuraram construir a Cidade
de Deus apregoada por S. Agostinho, colaborando à luz da mesma fé; os
governantes eram cristãos filhos da Igreja, de modo que era normal o bom relacionamento
da Igreja com as autoridades, poderosas como eram.  Não havia, porém, opção preferencial pelos
ricos.  A evangelização na América Latina
foi, em parte, favorecida pela instituição do padroado: os Papas concedam aos
reis católicos de Espanha e Portugal grandes privilégios para exercerem a
missão de monarcas e portadores do Evangelho. 
Assim, por exemplo, podiam transferir clérigos, criar paróquias, indicar
nomes de possíveis Bispos … A Igreja estava unida ao Estado, de modo que
pudessem colaborar na propagação do Evangelho.

Quanto aos pobres, não se
pode dizer que a Igreja os tenha abandonado. 
Muito ao contrário, até época relativamente recente era a Igreja que se
encarregava deles em asilos, hospitais e outras instituições.  Houve, e ainda há, diversas Congregações
Religiosas fundadas especialmente para a assistência aos pobres, aos enfermos,
às crianças, aos prisioneiros …

Como se vê, o estudo
objetivo da história contribui para dissipar preconceitos e chavões contra a
Igreja.

 

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1 Ed. Paulus, São Paulo 2002,
130 x 210 mm,
408 pp

1 30 sobre 4.500 é muito
pouco.

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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