Católicos e anglicanos concordam entre si – EB (Parte 2)

Concórdia
quanto à Imaculada Conceição

Os
católicos romanos estão igualmente obrigados a crer que “a bem-aventurada
Virgem Maria foi, no primeiro instante de sua conceição, por graça e singular
favor de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do
gênero humano, preservada de toda mancha do pecado original” (doma da Imaculada
Conceição definido pelo Papa Pio IX em 1854).

A definição
ensina que Maria, como todos os outros seres humanos, precisou de Cristo como
seu Salvacor e Redentor (cf. Lúmen Gentium 53; Catecismo da Igreja Católica nº
491). A noção negativa de um estado sem pecado corre o risco de obscurecer a
plenitude da obra salvífica de Jesus Cristo. Mas não se quer tanto dizer que a
Maria faltava alguma coisa que as outras criaturas têm, isto é, o pecado.
Quer-se, antes, dizer a graça gloriosa de Deus encheu sua vida desde o começo.
A santidade, que é a nossa finalidade em Cristo (cf. 1Jo 3,2-3), estava
presente, por dom imerecido, em Maria, que é o protótipo da esperança e da
graça do gênero humano como tal. Segundo o Novo Testamento, ser “cumulado de
graça” implica ser libertado do pecado pelo sangue de Cristo (Ef 1, 6-7). As
Escrituras proclamam a eficácia do sacrifício expiatório de Cristo também em
favor daqueles que O precederam no tempo (cf. 1Pd 3, 19; Jô 8,36; 1Cor 10,4).
Aqui, mais uma vez, a perspectiva escatológica esclarece nossa compreensão da
pessoa e da vocação de Maria. Em atenção à vocação para ser a Mãe daquele que é
o Santo (Lc 1,35), podemos juntos afirmar que a obra redentora de Cristo
repercutiu antecipadamente sobre Maria nas profundidades do seu ser e na raiz
da sua origem. Isto não é contrário ao ensinamento da Escritura e só pode ser
compreendido à luz da Escritura. Os católicos romanos podem reconhecer nisto o
que é afirmado pelo dogma, a saber “preservada de toda mancha do pecado
original” e “desde o primeiro instante da sua conceição” (§ 59).

As
definições dogmáticas de 1854 e 1950

Juntos
concordamos em afirmar que o ensinamento mariológico contido nas definições de
1854 e 1950 compreendidas dentro do paradigma bíblico da dispensação da graça e
da salvação aqui esboçado pode ser tido como correspondente ao ensinamento das
Escrituras e às antigas tradições comuns a todos os cristãos.

Todavia,
segundo os católicos romanos, a proclamação de um dogma implica que a doutrina
em foco é “revelada por Deus” e, conseqüentemente, deve ser “objeto de fé firme
e constante” por parte de todos os fiéis (são verdades de fide).  O problema que os dogmas podem suscitar aos
anglicanos, exprime-se nos termos do Artigo VI1::  a Escritura Sagrada contém tudo o que é
necessário à salvação, de modo que as proposições que aí não se encontram ou
não podem ser provadas por ela não podem ser impostas como artigos de fé nem
podem ser consideradas como requisito necessário à salvação. (§ 60).

As
expressões “revelado por Deus” (1854) e “divinamente revelado” (1950)
utilizadas na definição dos dois dogmas citados devem ser entendidas à luz do
Concílio do Vaticano II. Quando a Igreja Católica Romana afirma que uma verdade
é “revelada por Deus”, não tem em vista uma nova revelação. As definições são
entendidas como testemunho da Revelação feita nas origens do Cristianismo. Tal
Revelação foi recebida pela comunidade dos fiéis e transmitida em diversos
tempos e lugares pelas Escrituras, pela pregação, pela liturgia, pela
espiritualidade, pela vida e o ensinamento da Igreja, que se inspiram nas
Escrituras (§ 61).

Os
anglicanos perguntaram se os dois mencionados dogmas devem ser tidos como
matéria de fé, dado que o Bispo de Roma os definiu independentemente de um
Concílio. Em resposta os católicos romanos chamaram a atenção para o sensus
fidelium2, para a tradição litúrgica existente nas comunidades locais espalhadas
pelo mundo cristão como também para o apoio dos Bispos católicos; tais foram os
elementos mediante os quais essas doutrinas foram reconhecidas como parte
integrante da fé da Igreja e, conseqüentemente, como suscetíveis de ser
definidas … As definições de 1854 e 1950 não foram proferidas como respostas
a uma controvérsia, mas deram expressão à fé dos fiéis em comunhão com o Bispo
de Roma. Foram reafirmadas pelo Concílio do Vaticano II (§ 62).

A
intercessão de Maria na Comunhão dos Santos

A Escritura
ensina que “há um só Mediador entre Deus e os homens: um homem, o Cristo Jesus,
que se deu em resgate por todos” (1Tm 2, 5-6). 
Na base deste ensinamento rejeitamos toda interpretação do papel de
Maria que enfraqueça  tal afirmação.  Contudo também é verdade que todos os
ministérios da Igreja, especialmente os da Palavra e dos sacramentos, são
mediadores da graça de Deus mediante seres humanos. Tais ministérios não fazem
concorrência à singular mediação de Cristo: ao contrário, a ela servem, e nela
têm sua fonte. De modo especial, notemos que a oração da Igreja não se coloca
ao lado ou no lugar da intercessão de Cristo, mas é efetuada por Ele, nosso
Defensor e Mediador (Rm 8,34; Hb 7, 25; 12, 24; 1Jo 2,1). Ela encontra sua
possibilidade e sua prática no e pelo Espírito Santo, que é o outro Paráclito
enviado conforme a promessa de Cristo (cf. Jô 14, 16-17).

Por
conseguinte, pedir a nossos irmãos e irmãs, na terra ou no céu, que orem por
nós não significa contestar a única mediação de Cristo, mas é, antes, um
recurso ao qual, pelo Espírito e no Espírito, a mediação de Cristo pode
desenvolver seu alcance (§ 68).

As
aparições de Maria

Merece
respeito a popular e autêntica devoção a Maria que se exprime, de forma muito
diversa no plano individual, no plano regional e na cultural. As multidões que
se reúnem em certos lugares onde se crê que Maria apareceu, sugerem que as
aparições são parte importante da devoção mariana, pois proporcionam reconforto
espiritual; como se compreende, requer-se um discernimento prudente na
consideração do valor espiritual das aparições alegadas. Esta cautela foi
recomendada por um documento católico recente:

“A
revelação particular … pode ser uma ajuda válida para compreender e melhor
viver o Evangelho num momento especial; eis por que não deve ser menosprezada.
É um subsídio oferecido, mas, de modo nenhum, obrigatório… O critério para
discernir a autenticidade e o valor de uma revelação particular é a sua
orientação para Cristo. Quando a revelação afasta de Cristo, quando se torna
independente ou mesmo quando ela é tida como revelação de um desígnio de
salvação diferente ou mais importante do que o Evangelho, a revelação não
provém do Espírito Santo” (Congregação para a Doutrina da Fé. Comentário
teológico da mensagem de Fátima, 26 de junho de 2000).

Estamos de
acordo quanto ao fato de que, observadas as normas contidas neste ensinamento
para garantir a honra dada ao Cristo e sua constante primazia, podem ser
aceitas essas modalidades de devoção particular; jamais, porém, poderão ser
impostas aos fiéis. (§ 73).

Não existe
motivo para divisão

“Ao
afirmarmos conjuntamente e sem ambigüidades a única mediação de Cristo, que
frutifica na vida da Igreja; não julgamos que o costume de pedir a Maria e aos
Santos que orem por nós, seja fator de divisão da comunhão. Os obstáculos do
passado foram removidos pelo esclarecimento da doutrina, pela reforma litúrgica
e pelas normas práticas que a aplicam; cremos portanto que já não persiste
razão teológica para a divisão da Igreja no tocante a essa temática (§ 75)”.

Conclusão

Como se
pôde depreender, o documento é de grande importância há história da Teologia ou
do aprofundamento da fé. Mostra como a figura de Maria se foi desenvolvendo
entre os cristãos em função de Jesus Cristo e não independentemente deste. Com
efeito,

1) Durante
quinze séculos os cristãos do Oriente e do Ocidente foram unânimes na
contemplação de Maria como Mãe de Cristo, que é Deus feito homem. A Escritura e
a fé comum dos fiéis (sensus fideliium)  favoreceram a progressiva intuição das
prerrogativas de Maria SSma.

2) No fim
da Idade Média os exageros da piedade mariana inspiraram um distanciamento da
Teologia em relação às suas fontes.  A
Mariologia se tornou um tanto sentimental e imaginosa.

3)  Os exageros foram uma das causas da Reforma
luterana no século XVI. Reforma após a qual se foram distanciando católicos e
protestantes no tocante a Maria.

4) O século
XX foi o teatro de uma revisão das posições extremadas por parte de católicos
tanto como por parte dos anglicanos. Donde o documento de concórdia que
acabamos de analisar.

5) Muito
digno de relevo é o fato de que os anglicanos reconhecem os dogmas da Imaculada
Conceição e da Assunção como fundamentos na Escritura  e na sadia Tradição do Povo de Deus. Está
assim aberto o caminho para que as denominações protestantes revejam sua
atitude frente à Mãe de Jesus.

6) Seria
para desejar, no documento, uma referência explícita aos “irmãos de Jesus”,
reconhecendo-os como familiares de Jesus e não como filhos de Maria, de acordo
com os dados fornecidos pela própria Sagrada Escritura.

APÊNDICE

A revista 30
Dias nº 6/7/05 entrevistou o arcebispo católico de Westiminster Mons. Cormac
Murphy-O’Connor a respeito do Acordo apresentado nestas páginas, o qual
declarou, entre outras coisas, o seguinte:

A propósito
do caminho a ser compartilhado, qual é a realidade atual da Igreja Católica num
país de maioria anglicana como a Grã-Bretanha?

MURPHY-O’CONNOR:
Para ser sincero, considero muito fascinante a vida cotidiana de um bispo ou de
um cardeal católico, hoje, na Grã-Bretanha. Por um lado, há um veloz processo
de descristianização do país, que realmente me preocupa: a crise da família, a
falta de respeito pela vida humana – o aborto, a eutanásia, a experimentação
com embriões humanos -, como também a pouca ou inexistente generosidade para
com os imigrantes, e um egoísmo generalizado. Por outro lado, porém, vejo para
a Igreja Católica e para seu cardeal uma possibilidade, desconhecida até bem
pouco tempo, de fazer sua voz ser ouvida.

De que
forma?

MURPHY-O’CONNOR:
Hoje, por muitas razões, eu e os outros bispos católicos podemos nos expressar
sobre os temas ligados à vida, ao aborto, à eutanásia, à família, à reforma das
penitenciárias, ao cuidados dos pobres, de uma maneira que há apenas poucos
anos era inimaginável. Nos tempos da minha juventude, a Igreja Católica estava
à margem da sociedade britânica, as pessoas nos olhavam com suspeita. Hoje
estamos no centro das questões, e ouve-se distintamente o que dizemos. Em
parte, uma das razões disso está no fato de que os católicos não são mais
apenas imigrantes que acabaram de chegar da Irlanda, mas, sim, cidadãos
ingleses que desejam e precisam fazer-se ouvir. Assim, em muitos ambiente
sociais e na vida cotidiana em geral, você hoje pode encontrar católicos, até
mesmo no governo.

De que modo
o senhor acha possível à unidade dos cristãos em terra anglicana?

MURPHY-O’CONNOR:
Santo Agostinho pedia a unidade nas coisas essenciais, a liberdade nas não
essenciais e a caridade em todas. É realmente uma boa máxima. Ainda estamos em
busca da maneira pela qual possamos chegar a um acordo sobre as coisas
essenciais da fé. A Trindade, a Encarnação, a Redenção são três grandes
mistérios que compartilhamos no Credo. Além disso, temos as doutrinas fundamentais
da Igreja, com as quais a maioria dos anglicanos poderia concordar. Ponhamos
assim: o que temos a oferecer à Comunhão Anglicana é o dom que recebemos, a
nossa compreensão e a experiência do que significa ser Igreja. Os últimos meses
nos mostraram de maneira única a eclesiologia do catolicismo: o Papa, os
bispos, o povo de Deus e a incrível unidade que sustenta tudo isso. Creio que
outras Igrejas também precisem disso, como também precisam aprofundar a
colegialidade, ver como a unidade opera, em caridade, liberdade e na partilha
da fé.

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1 O texto
português é a tradução do francês como se acha em La Documentation Catholique
nº 2341, 7 e 21 de agosto 2005, pp. 752-775.

1 Os
substitutos são da Redação de PR.

1 Nestório
professava haver em Jesus duas Pessoas ou dois eu. Maria teria dado à luz a
Pessoa humana, e não a Pessoa Divina do Verbo. Esta concepção foi tida pelos
Padres ortodoxos como insuficiente para exprimir o mistério da Encarnação. Daí
dizer Cirilo que em Jesus havia uma só Pessoa (Divina), que assumiu a natureza
humana no seio de Maria Virgem, da qual Ele (Deus) quis nascer (Nota da Redação
de PR).

1 Da
Constituição da Comunhão Anglicana (Nota do Tradutor).

1 Isto é, a
fé do povo fiel (Nota do Tradutor).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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