Catequeses (Parte 2)

O Espírito e as ”sementes de verdade” do pensamento humano

L’osservatore Romano nº 38 (508)-  19/09/1998

1. Retomando uma afirmação do Livro da Sabedoria (cf. 1, 7), o Concílio Ecumênico Vaticano II ensina-os que “o Espírito do senhor”, o qual cumula dos Seus dons o povo de Deus peregrino na história, “replet orbem terrarum”, enche todo o universo (cf. Gaudium et spes, 11). Ele guia incessantemente os homens rumo à plenitude de verdade e de amor, que Deus Pai comunicou com Cristo Jesus.

Esta profunda consciência da presença da ação do Espírito Santo ilumina desde sempre a consciência da Igreja, fazendo com que tudo aquilo que é genuinamente humano encontre eco no coração dos discípulos de Cristo (cf. ibid., n. 1).

Já na primeira metade do século II, o filósofo São Justino podia escrever: “Tudo o que foi afirmado de modo excelente e tudo o que descobriram aqueles que fazem filosofia ou instituem leis, foi realizado por eles através da pesquisa ou da contemplação de uma parte do Verbo” (II Apol., 10, 1-3).

2. A abertura do espírito humano à verdade e ao bem realiza-se sempre no horizonte da “Luz verdadeira que a todo o homem ilumina” (Jo 1, 9). Esta luz é o próprio Cristo Senhor, que iluminou desde as origens os passos do homem e entrou no seu “coração”. Com a Encarnação, na plenitude dos tempos, a Luz apareceu no mundo com todo o seu fulgor, brilhando aos olhos do homem como esplendor da verdade (cf.. Jo 14, 6).

Prenunciada já no Antigo Testamento a manifestação progressiva da plenitude da verdade, que é Cristo Jesus, realiza-se ao longo do curso dos séculos, por obra do Espírito Santo. Essa específica ação do “Espírito da verdade” (cf. Jo 14, 17; 15, 26; 16, 13) refere-se não só aos crentes mas, de modo misterioso, a todos os homens que, embora ignorem sem culpa o Evangelho, sinceramente  buscam a verdade e se esforçam por viver retamente (cf. Lumen gentium, 16).

Na esteira dos Padres da Igreja, S. Tomás de Aquino  pode afirmar que nenhum espírito é “tão  tenebroso a ponto de não participar em nada na Luz divina. Com efeito, toda a verdade conhecida por quem quer que seja é devida totalmente a esta “luz que brilha nas trevas”; visto que toda a verdade, seja quem for aquele que a disser, vem do Espírito Santo” (Super Ioannem, 1, 5 lect. 3, n. 103).

3. Por este motivo, a Igreja é amiga de toda a autêntica pesquisa do pensamento humano e estima sinceramente o patrimônio de sabedoria, elaborado e transmitido pelas diversas culturas. Nele encontrou expressão a inexaurível criatividade do espírito humano, orientado pelo Espírito de Deus para a plenitude da verdade.

O encontro entre a palavra da verdade anunciada pela Igreja e a sabedoria expressa pelas culturas, e elaborada pelas filosofias, solicita estas últimas a abrirem-se e a encontrarem o próprio cumprimento na revelação que vem de Deus. Como sublinha o Concílio Vaticano II, esse encontro enriquece a Igreja, tornando-a capaz de penetrar sempre mais profundamente na verdade, de a exprimir através das linguagens das diversas  tradições culturais e de a apresentar – imutável na substância – na forma mais adaptada ao mudar dos tempos (cf. Gaudium et spes, 44).

A confiança na presença e na ação do Espírito Santo, também na agitação da cultura do nosso tempo, pode constituir, no alvorecer do terceiro Milênio, a premissa para um novo encontro entre a verdade de Cristo e o pensamento humano.

4. Na perspectiva do Grande Jubileu do Ano 2000, é preciso aprofundar o ensinamento do Concílio a respeito deste encontro, sempre renovado e fecundo, entre a verdade revelada, conservada e transmitida pela Igreja, e as múltiplas formas do pensamento e da cultura humana. Infelizmente, ainda hoje é válida a constatação de Paulo VI na Carta Encíclica Evangelii nuntiandi, segundo a qual “a ruptura entre Evangelho e cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época” (n. 20).

Para remediar esta ruptura, que incide com graves conseqüências sobre as consciências e os comportamentos, é necessário despertar nos discípulos de Jesus Cristo aquele olhar de fé, capaz de descobrir as “sementes de verdade” difundidas pelo Espírito Santo nos nossos contemporâneos. Poder-se-á  contribuir também para  a sua purificação e maturação através da paciente arte do diálogo, que tem particularmente em vista a apresentação do rosto de Cristo com todo o seu esplendor.

Em particular, é necessário ter bem presente o grande princípio formulado pelo último Concílio, que eu quis recordar na Encíclica Dives in misericordia: “Enquanto as várias correntes do pensamento humano, do passado e do presente, têm sido e continuam a ser marcadas pela tendência para separar e até mesmo para contrapor o teocentrismo e o antropocentrismo, a Igreja, seguindo a Cristo, procura ao contrário uni-los conjuntamente na história do homem, de maneira orgânica e profunda” (n. 1).

5. Esse princípio mostra-se fecundo não só para a filosofia e a cultura humanista, mas também para os setores da investigação científica e da arte. Com efeito, o homem de ciência que “se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são” (GS, 36).

Por outro lado, o verdadeiro artista tem o dom de intuir e exprimir o horizonte luminoso e infinito em que está imersa a existência do homem e do mundo. Se for fiel à inspiração que o habita e o transcende, ele adquire uma secreta conaturalidade com a beleza de que o Espírito Santo reveste a criação.

O Espírito Santo Luz que ilumina as  mentes e divino “artista do mundo” (S. Bulgakov, Il Paraclito, Bolonha 1971, pág. 311), guie a Igreja e a humanidade do nosso tempo ao longo das sendas de um novo e surpreendente encontro com o esplendor da Verdade!

O ”selo do Espírito” e o Testamento até o martírio

L’osservatore Romano – nº 42 (579) – 17/10/1998

1. Na catequese anterior detivemo-nos sobre o sacramento da Confirmação como cumprimento da graça batismal. Agora aprofundamos o seu valor salvífico e o efeito espiritual expressos pelo sinal da unção, que indica o “selo do Dom do Espírito Santo”  (cf. Paulo VI, Const. Apost. Divinae consortium naturae [15.8.1971]: AAS 63, 663).

Por meio da unção o crismado recebe plenamente aquele dom do Espírito Santo que, de forma inicial e fundamental, já recebeu no Batismo. Como explica o Catecismo da Igreja Católica, “o selo é o símbolo da pessoa (cf. Gn 38, 18; Ct 8, 6), sinal da sua autoridade (cf. Gn 41, 42), da sua propriedade sobre o objeto (cf. Dt 32, 34)…” (n. 1295). Jesus mesmo declara que sobre Ele “o Pai, o próprio Deus, marcou com o Seu selo” (Jo 6, 27). E assim nós cristãos, enxertados em virtude da fé e do Batismo no Corpo de Cristo Senhor, ao recebermos a unção somos marcados pelo selo do Espírito. Isto é ensinado explicitamente pelo apóstolo Paulo ao dirigir-se aos cristãos de Corinto: “Quem nos confirma convosco em Cristo e nos consagrou, é Deus. Ele é que nos marcou com o Seu selo e deu aos nossos corações o penhor do Espírito” (2 Cor 1, 21-22; cf. Ef 1, 13-14; 4, 30).

2. O selo do Espírito Santo, portanto, significa e atua a pertença total do discípulo a Jesus Cristo, o estar ao Seu serviço para sempre na Igreja, e ao mesmo tempo implica a promessa da proteção divina nas provas que deverá enfrentar para testemunhar no mundo  a sua fé.

O próprio Jesus o predisse, na iminência da Sua paixão: “Entregar-vos-ão aos tribunais, sereis açoitados nas sinagogas e compareceis diante dos governadores e dos reis por Minha causa, para dardes testemunho diante deles… Quando vos levarem para serdes entregues, não vos inquieteis com o que haveis de dizer, mas dizei o que vos for dado nessa hora, pois não sereis vós a falar, mas sim o Espírito Santo” (Mc 13, 9.11 e par.).

Promessa análoga retorna no Apocalipse, numa visão que abrange a inteira história da Igreja e ilumina a vicissitude dramática que os discípulos de Cristo são chamados a enfrentar, unidos ao seu Senhor Crucificado e Ressuscitado. Eles são apresentados com a imagem sugestiva daqueles sobre cuja fronte foi impresso o selo de Deus (cf. Ap 7, 2-4).

3. A Confirmação, vindo trazer crescimento e aprofundamento da graça batismal, une-nos de modo mais firme a Jesus Cristo e ao seu Corpo que é a Igreja. Esse sacramento aumenta em nós também os dons do Espírito Santo, a fim de “nos dar uma força especial do Espírito Santo para propagar e defender a fé, pela palavra e pela ação, como verdadeiras testemunhas de Cristo, e para nunca nos envergonharmos da Cruz” (CIC, n. 1303; cf. Concílio de Florença, DS 1319; Conc. Ecum. Vat. II, Lumen gentium, 11; 12).

Santo Ambrósio exorta o crismado com estas vibrantes palavras: “Recorda que recebeste o selo espiritual, “o espírito da sabedoria e do intelecto, o Espírito do conselho e da fortaleza, o Espírito do conhecimento e da piedade, o Espírito do temor de Deus” e conserva aquilo que recebeste. Deus Pai marcou-te, Cristo Senhor confirmou-te e pôs  no teu coração o Espírito como penhor” (De mysteriis, 7, 42; PL 16, 402-403).

O dom do Espírito empenha no testemunho de Jesus Cristo e de Deus Pai, e assegura a capacidade e a coragem de o fazer. Os Atos dos Apóstolos dizem-nos claramente que o Espírito foi difundido sobre os apóstolos, para que se tornassem “testemunhas” (1, 8; cf. Jo 15, 26-27).

S. Tomás de Aquino, por sua parte, ao sintetizar de maneira admirável a tradição da Igreja, afirma que mediante a Confirmação são comunicados ao batizado a ajuda necessária para professar publicamente e em todas as circunstâncias a fé recebida no batismo. “É-lhe dada a plenitude do Espírito Santo – ele explica – ad robur spitituale (para a fortaleza espiritual), que convém à idade madura” (S. Th., III, 72, 2). Essa maturidade obviamente não deve ser medida com critérios humanos, mas no interior da misteriosa relação de cada um com Cristo.

Este ensinamento, enraizado na Sagrada Escritura e desenvolvido pela sagrada Tradição, encontra expressão na doutrina do Concílio de Trento, segundo o qual o sacramento da Confirmação imprime na alma como que uma “marca espiritual indelével”: o “caráter” (cf. DS 1609), que é precisamente o sinal impresso por Jesus Cristo no cristão com o selo do seu Espírito.

4.  Este dom específico conferido pelo sacramento da Confirmação habilita os fiéis para exercerem a sua “função profética” – recebe o poder de professar publicamente a fé cristã, como que por um encargo oficial (quasi ex officio)” (S. Th., III, 72, 5, ad. 2; cf. CIC, n. 1305). É o Vaticano II, ilustrando na Lumen gentium a índole sagrada e orgânica da comunidade sacerdotal, sublinha que “com o sacramento da Confirmação (os fiéis) são mais perfeitamente vinculados à Igreja, enriquecidos com uma força especial do Espírito Santo e deste modo ficam obrigados a difundir e defender a fé por palavras e obras como verdadeiras testemunhas de Cristo” (n. 11).

O batizado que recebe com plena e amadurecida consciência o sacramento da Confirmação declara solenemente perante a Igreja, sustentado pela graça de Deus, a sua disponibilidade a deixar-se atrair, de modo sempre novo e mais profundo, pelo Espírito de Deus, para se tornar testemunha de Cristo Senhor.

5.  Graças ao Espírito que penetra e colma o coração, esta disponibilidade leva até ao martírio, como nos mostra a ininterrupta plêiade de testemunhas cristãs que, desde o alvorecer do cristianismo até ao nosso século, não temeram sacrificar a própria vida terrena por amor de Jesus Cristo. “O Martírio – escreve o Catecismo da Igreja Católica – é o testemunho supremo prestado à verdade da fé; um testemunho que vai até à morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao qual está unido pela caridade” (n. 2473).

No limiar do Terceiro Milênio, invoquemos o dom do Paráclito para reavivar a eficácia da graça do selo espiritual impresso em nós no sacramento da Confirmação. Animada pelo Espírito, a nossa vida efundirá o “bom odor de Cristo” (2 Cor 2, 15) até aos últimos confins da terra.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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